Eldorado dos Carajás: professor analisa os 20 anos de impunidade SVG: calendario Publicada em 20/04/16 16h31m
SVG: atualizacao Atualizada em 20/04/16 16h45m
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Massacre de 19 sem-terra no Pará foi lembrado no último dia 17 de abril

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É difícil falar sobre determinadas situações no Brasil sem chegar à conclusão de que a impunidade se faz presente em diversos momentos da nossa história. Se pensarmos na ditadura militar, praticamente todos os crimes relacionados ao período ficaram impunes. Já no período de redemocratização vamos lembrar de um caso de repercussão mundial, que foi o Massacre de Eldorado dos Carajás. Nesse episódio, no dia 17 de abril de 1996, 19 sem-terra foram assassinados no município de Eldorado dos Carajás, sul do Pará, decorrente da ação da polícia militar do estado do Pará.

A repressão da PM ocorreu quando 1.500 sem-terra que estavam acampados na região decidiram fazer uma marcha em protesto contra a demora da desapropriação de terras, principalmente as da Fazenda Macaxeira. A Polícia Militar foi encarregada de tirá-los do local, porque estariam obstruindo a rodovia BR-155, que liga a capital do estado Belém ao sul do estado.

O episódio se deu no governo de Almir Gabriel (PSDB), o então governador e a ordem para a ação policial partiu do então secretário de Segurança do Pará, Paulo Sette Câmara, que declarou, depois do ocorrido, que autorizara "usar a força necessária, inclusive atirar". De acordo com os sem-terra ouvidos pela imprensa na época, os policiais chegaram ao local jogando bombas de gás lacrimogêneo.

Segundo o legista Nelson Massini, que fez a perícia dos corpos, pelo menos 10 sem-terra foram executados à queima roupa. Sete lavradores foram mortos por instrumentos cortantes, como foices e facões. O comando da operação estava a cargo do coronel Mário Colares Pantoja, que foi afastado, no mesmo dia, ficando 30 dias em prisão domiciliar, determinada pelo governador do Estado, e depois liberado. Ele perdeu o comando do Batalhão de Marabá.

Uma semana depois do massacre, o Governo Federal comandado por Fernando Henrique (FHC) confirmou a criação do Ministério da Reforma Agrária e indicou o então presidente do Ibama, Raul Jungmann, para o cargo de ministro. José Gregori, que na época era chefe de gabinete do então ministro da Justiça, Nelson Jobim, declarou que "o réu desse crime é a polícia, que teve um comandante que agiu de forma inadequada, de uma maneira que jamais poderia ter agido", ao avaliar o vídeo do confronto.

Passadas duas décadas do massacre, a impunidade continua a pairar sobre esse caso. A assessoria de imprensa da Sedufsm procurou o professor Marcos Piccin, do departamento de Extensão Rural, do Centro de Ciências Rurais da UFSM, para avaliar a situação da reforma agrária no país, sobre a violência no campo e o papel da universidade em todo esse processo. Acompanhe a seguir.

Sedufsm- Podemos dizer que no caso de Eldorado dos Carajás são 20 anos de impunidade?

Piccin- Sim, sem dúvida. Apenas os dois comandantes da operação policial que assassinou 19 agricultores sem-terra foram condenados depois de 16 anos do ocorrido; por incrível que pareça, um deles cumpre prisão domiciliar e o outro encontra-se recolhido em algum quartel da cidade de Belém. Quanto aos demais policiais – foram 155 homens envolvidos na operação - como as armas não foram periciadas, não se sabe quem apertou o gatilho. Mas o mais escandaloso é o fato de que os principais responsáveis pela chacina continuam impunes. A ordem para desobstruir a rodovia partiu literalmente do então Governador Almir Gabriel. Nem ele, nem o secretário de segurança, Paulo Sette Câmara, ou o comandante-geral da PM, Coronel Fabiano Lopes, foram sequer arrolados no processo. Mais, o fazendeiro Ricardo Marcondes de Oliveira denunciou que houvera coleta de dinheiro entre os fazendeiros da região para pagar os policiais para que matassem os líderes dos sem-terra – dos 19 mortos, 13 eram lideranças do MST e do acampamento. Mas a lista dos impunes não para por aí: a empresa Vale do Rio Doce, à época ainda estatal, foi acusada de pagar os ônibus que transportaram os policiais. Nada a esse respeito foi investigado.

Sedufsm- Por que temos impunidade no caso de crimes no campo?

Piccin- A impunidade no Brasil não se dá apenas no caso de crimes no campo brasileiro. Nas cidades, a polícia é a grande responsável por assassinar a população pobre, especialmente os jovens negros. Nesses casos, raramente há algum julgamento. No campo ou na cidade, a impunidade está relacionada com nossa estrutura de classes e herança histórica. O Brasil é um país em que os diferenciais de poder entre as classes é muito grande, associado a uma herança autoritária e oligárquica. A classe dominante do Brasil sempre foi extremamente violenta com seus subordinados, com a classe trabalhadora e com quem se levanta contra elas. Uma prática violenta que é prática de classe, que constitui as relações sociais no campo e na cidade e que tem um longo caminho, desde os castigos físicos impingidos aos insubordinados à grande lavoura de exportação colonial, ao uso de capangas privados e o uso da força policial. Nesse sentido, o Estado é utilizado como chicote que corta a carne não só dos insubordinados, mas da população pobre porque a pobreza é criminalizada. Sem prejuízo de compreender o Estado como um Campo e, como todos os campos, atravessado por disputas, interesses, contradições internas, e com dada autonomia relativa, o certo é que a violência perpetrada pelas classes dominantes no país utiliza o Estado e suas forças policiais como Capitão-do-Mato. Não é à toa que nas atuais manifestações, a polícia tira a boina e bate continência aos de direita e fascistas e mete cassetete e bala de borracha em qualquer manifestação que apresente qualquer pauta que lembre a esquerda.



Sedufsm- A realidade mudou nesses 20 anos no que se refere aos conflitos de terra?

Piccin- Sim e não. Diferentemente da década de 1990, hoje tem um esforço muito grande por parte dos setores dominantes do campo brasileiro e dos setores industriais a eles relacionados de produzir uma imagem positivada a partir da ideia do chamado agronegócio. No centro desse esforço procurasse passar uma imagem de que agora temos uma agropecuária moderna e empresarial e de que os setores “atrasados” foram superados pelo próprio desenvolvimento econômico. Isso coloca uma série de desafios aos que lutam por terra, porque são ainda mais criminalizados. Não só as propriedades improdutivas continuam aí, mas mesmo os grandes proprietários que associam práticas extremamente modernas, não raro mantêm práticas de manter trabalhadores em situações análogas à escravidão. Temos, portanto, um campo ambivalente em uma sociedade ambivalente.

Mas, especificamente aos conflitos por terra no campo brasileiro, a realidade não mudou e alguns indicadores pioraram. Se tomarmos os dados da Comissão Pastoral da Terra, temos que em 1996, ano da chacina de Eldorado dos Carajás, foram 750 conflitos no campo brasileiro, com 54 assassinatos; em 2006, foram 1.657 conflitos, com 39 assassinatos; em 2015 foram 1.217 conflitos, com 50 assassinatos.

Veja, se observamos essa pergunta pelo número das organizações que lutam por reforma agrária, vemos que no Brasil de hoje existem 10.623 movimentos que reivindicam terra. Ou seja, há uma forte demanda por terra.


Sedufsm- Não temos mais latifúndios?

Piccin- A concentração da propriedade da terra no Brasil aumentou. Se tomarmos o índice Gini, temos que em 1998, o Gini era de 0,838 e em 2014, temos um Gini de 0,860 (Relatório 2015 do Dataluta). Portanto, se entendermos por latifúndios as grandes propriedades, eles passaram a concentrar ainda mais terra. Mas a palavra “latifúndio” também carrega outros significados que ainda estão presentes hoje em várias situações. “Latifúndio”, como demonstraram várias pesquisas de campo, significava aos trabalhadores rurais e suas famílias a sujeição, o poder desmedido do Senhor, a fome, a pobreza e, em contraposição, a necessidade da reforma agrária. Por mais que hoje essa palavra não esteja mais na “moda”, a realidade ainda carrega várias situações que remetem a ela.


Sedufsm- A reforma agrária avançou?

Piccin- Se entendermos por reforma agrária uma política de reforma da estrutura fundiária de um país ou um estado, ou seja, uma política que vise alterar substancialmente a posse e propriedade da terra, nunca tivemos Reforma Agrária no país. O que temos é uma política de assentamentos rurais. Essa política aumenta ou diminui a depender da pressão que os setores sociais que lutam por terra fazem frente ao Estado brasileiro, que adquire terras para assentamentos como forma de diminuir as tensões sociais. Esse é o objetivo da política de assentamentos rurais no país. Ela tem importantes variantes ao longo dos anos, por exemplo, houve um maior incremento do número de assentamentos rurais nos dois governos de Lula, mas esse número caiu muito nos anos dos governos Dilma. Mesmo a política de assentamento seguindo essa lógica, podemos até falar que houve certa desconcentração da propriedade em algumas poucas regiões, como, por exemplo, onde teve a criação de municípios devido aos assentamentos rurais. Mas foi muito restrito isso; ocorreu mais como resultado colateral da política de assentamentos rurais e menos por uma deliberação política de reformar a estrutura fundiária brasileira ou de determinadas regiões.



Sedufsm- O que falar da postura do estado brasileiro em relação ao tema?

Piccin- Como falei acima, frente aos conflitos, o Estado assume uma política de implantação de assentamentos que é pontual e com o objetivo de distensionamento dos conflitos sociais e não com o objetivo de reformar uma determinada região e empreender projetos de desenvolvimento rural. Mas para entender as ações do Estado brasileiro deve-se entender os conflitos de classe na sociedade brasileira. Até o momento, o que os movimentos de luta pela terra conseguiram “arrancar” da correlação de força e das alianças de classe que controlam o Estado foi a política de assentamentos.

Sedufsm- Qual o papel da universidade nesse processo?

Piccin- À universidade brasileira cumpre oferecer uma leitura e abordagem acerca desse processo que desnaturalize a realidade. Não é “natural” termos uma estrutura da posse e propriedade da terra extremamente desigual; não é “natural” termos uma sociedade tão desigual. Cabe à universidade fazer estudos sérios a respeito dessa realidade, muito mais do que a denúncia.

Entrevista a Fritz R. Nunes

Imagens: Divulgação

Assessoria de imprensa da Sedufsm

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