Brasil, país com mais de 600 mil encarcerados SVG: calendario Publicada em 20/03/17 15h19m
SVG: atualizacao Atualizada em 20/03/17 16h00m
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Professor de Ciências Sociais da UFSM reflete sobre criminalidade e cultura do medo

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O ano de 2017 começou expondo as fragilidades do sistema prisional brasileiro e trazendo questionamentos acerca da efetividade da política de encarceramento estatal. Após as rebeliões na penitenciária de Alcaçuz (Natal, RN) e no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Manaus, AM), que vitimaram dezenas de pessoas, o debate em torno desses temas parece ter se acalorado, mas, mesmo antes de tais eventos, o medo da criminalidade já figurava como elemento cotidiano, interferindo, até mesmo, na organização das rotinas diárias e na transformação de temores em fobias.

Na entrevista que o(a) leitor(a) verá na íntegra, o professor do departamento de Ciências Sociais da UFSM, Francis Moraes de Almeida, propõe uma análise crítica de como lidar, hoje, com a existência de crimes na sociedade. Estudioso, há 20 anos, de temas como medo do crime e história do conceito de “periculosidade”, ele observa que tendemos a polarizar nossos temores em situações improváveis de acontecerem, porém, que o cultivo do medo é interessante tanto na esfera política, quanto na de mercado.

Por fim, o docente traça relações entre a desigualdade social e o aumento da criminalidade e comenta a “sanha punitivista” observada no Brasil contemporâneo e motivada, em grande parte, pela sensação de ausência de justiça. Mas, será mesmo? O país possui 630 mil encarcerados e gasta, ao menos, R$ 18 bilhões de reais anualmente para mantê-los. Acompanhe, abaixo, a entrevista concedida à Assessoria de Imprensa da Sedufsm e publicada, em versão reduzida, em nosso jornal impresso de Janeiro/Fevereiro, disponível na aba 'Jornal' de nosso site. 

Sedufsm - Em sua opinião, os níveis de temor e de insegurança observados hoje corresponderiam à realidade – de fato mais violenta e perigosa – ou seriam superestimados?

Francis – O medo é sempre verdadeiro. Você pode ter medo de algo que acredita ser um vulto na sua casa e, quando acende a luz, descobre que era um casaco pendurado. O medo que você sentiu foi verdade. Não há nenhuma irrealidade nisso. Agora, o problema é a fonte dessa percepção. No âmbito individual, pensamos que quando o medo é desproporcional configura fobia. Sim, se a pessoa sabe que é superdimensionado, porque fobia sempre traz a percepção egodistônica por parte daquele que a sente, por exemplo, eu sei que o rato não vai pular na minha jugular e dilacerar o meu pescoço, mas eu tenho fobia de rato, então eu reajo de forma desproporcional à ameaça real representada pelo rato. Mas se nós não temos acesso ao que seja esse real da ameaça, passamos ao imaginário.

O que seria esse imaginário da violência? É difícil precisar o que seja a criminalidade real, porque sempre temos estimativas a partir das ocorrências policiais, agora, se você intensificar o trabalho policial, as ocorrências vão aumentar, os crimes vão aumentar, porque o total de crimes nunca é efetivamente identificado ou se torna ocorrência. Então os indicadores mais fidedignos sempre são os crimes contra o patrimônio, que levam as pessoas a registrarem a perda do bem. Localmente podemos pensar - sem entrar nas cifras ocultas que é a subnotificação – que se tiver 50% de ocorrências registradas, do total da ocorrência de crimes, já é muita coisa, não tende a ser isso.

Pegando dados do Datasus e a questão de Santa Maria, vemos que dos 66 homicídios ocorridos no último ano, mais de 85% por cento tiveram como vítimas pessoas que tinham antecedentes criminais, então os demais correspondem àquela estatística dos feminicídios [crimes de ódio motivados pela questão de gênero], ou os antigos crimes por honra, motivados por rixas entre homens ou familiares. E essa estatística dos 15% restantes tem relativa estabilidade, mas a maioria dos homicídios tem como vítimas justamente aqueles com antecedentes criminais porque, como diz o documentário ‘Notícias de uma guerra particular’, as pessoas estão se matando entre si devido ao avanço do crime organizado. As modificações que a gente observa aqui na cidade nos últimos anos têm relação com certas dinâmicas do crime organizado e das facções criminais que estão nos presídios.

O fato é que as pessoas não temem ou não há relatos de coisas que antes, nos anos 1980 e 1990, vocês observavam na mídia local, por exemplo, a faixa de Camobi ser conhecida como ‘estrada da morte’. As mortes no trânsito eram noticiadas e tinham destaque. Mas as pessoas hoje em dia, na cidade, têm muito menos medo de morrer vitimados no trânsito do que vitimados por homicídio ou latrocínio, embora as estatísticas de mortes no trânsito sejam muito mais “democráticas”, porque afetam, sem distinção, classe social, gênero, idade, então é mais provável que o cidadão santa-mariense morra vitimado no trânsito. Quanto aos homicídios, é muito menos provável ser vitimado se a pessoa não for moradora de periferia com antecedentes criminais, ensino fundamental incompleto e tiver entre 15 e 30 anos.

Sedufsm - Por que tememos mais os fatos difíceis de acontecerem e que relação isso tem com o imaginário do medo?

Francis – Quando os jornais (de meados a fim do século XIX) deixam de ter como maior interesse serem porta-voz de partidos (não que hoje em dia não sejam) e de ter sua circulação subsidiada por um partido, passando a ser controlados por empresas capitalistas com interesse de vender notícia, nós temos o segmento da chamada imprensa sensacionalista. Desde que os romances policiais surgiram no século XIX, até os atuais seriados televisionados (estilo Law and Order), seus temas são justamente sobre crimes. Crimes na maior parte das vezes improváveis ou improváveis na frequência em que são relatados. Isso que estou chamando de imaginário vai um pouco além da notícia. As pessoas familiarizam-se com certo princípio de realidade e/ou de verossimilhança no qual é possível acreditar que seu filho estar acessando a internet pode deixá-lo vulnerável a ação de predadores sexuais que agem na internet.

Os casos peculiares são justamente os que chamam mais atenção e dão as melhores histórias. Agora vem se popularizando essa literatura do True Crime, mas desde o século XIX, na Espanha, França, Inglaterra e mesmo na Alemanha, ela era muito disseminada e o jornalismo sensacionalista do final do século XIX na Europa surge muito nessa esteira. Isso constitui um imaginário que é, talvez, irrealista ou do improvável e pode deslocar muito mais atenção ou polarizar o medo mais nessas ocorrências improváveis do que necessariamente naquelas que seriam mais possíveis. Ou seja, é muito mais provável que o filho de alguém que está preocupado com o predador da internet seja vitimado pelo pitbull que faz a segurança da casa, ou morra eletrocutado brincando com alguma coisa que pegue na cerca elétrica ou mesmo colocando duas facas na tomada, porque ninguém mais põe protetor de tomada hoje em dia. Essa era uma preocupação de décadas atrás. E são esses os incidentes que levam a maior causa de morte violenta na infância, afora afogamento que é, sem dúvida, o que mais mata até os 12 anos. E você vê grandes preocupações com afogamento? Não. Uma matéria de vez em quando alerta os banhistas quanto aos afogamentos. Eu diria que é a conversão do improvável em verossímil, quando você conhece histórias que fazem sentido sobre aquilo, aquilo parece fazer sentido e parece algo que pode acontecer.

Sedufsm - Poderíamos falar em uma ‘cultura do medo’ e que agentes teriam interesse em cultivá-la?

Francis – Sim, há muitos interessados em que as pessoas tenham medo, sobretudo quem vende seguro de qualquer tipo. O medo vende. O medo elege pessoas. Temos vários índices de que vivemos, provavelmente, num dos períodos mais seguros da humanidade. A expectativa de vida é longa, as condições de trabalho são melhores (a despeito das modificações propostas pelas pautas em curso). Nós conseguimos muito melhores condições de vida do que há 20, 30, 40 anos atrás. Claro, aí começamos a nos perguntar: Quais pessoas morrem? Por que elas morrem? E por que a sociedade é violenta? O que mudou para que tantas pessoas morram agora? A mesma coisa no trânsito: As pessoas ficaram imprudentes no Brasil nos últimos 30 anos? É isso que faz com que aumente o número de mortes no trânsito? E por que se morre tanto aqui e em outros lugares não? Italianos, alemães, americanos, japoneses são diferentes de nós só por causa de sua prudência? Isso é uma característica individual? Isso não explica porque temos bons pilotos de avião, por exemplo, ou bons pilotos de Fórmula 1. As pessoas são todas imprudentes? Isso é um traço genético? Claro que não.

Se pegarmos elementos estruturais começamos a ver, por exemplo, de que modo é feito o transporte de cargas no Brasil, quais vias são usadas por caminhões e quais são usadas por carros de passeio. Mais: quais são as principais causas de óbitos em acidentes? Colisão frontal de veículos com categorias diferentes. Aí começamos a ter elementos que permitem a construção de uma explicação causal. Efetivamente você ter vias de mão dupla que permitem colisão frontal aumenta o número de óbitos. Se você pensar numa Autoban na Europa, o óbito tende a zero, existe sim pessoas que morrem lá, mas porque se matam sozinhas ou estão a velocidades altíssimas. Por que morrem menos? Não há colisão frontal.  Aumentar o número de fluxos sem modificação estrutural nas vias, empregando o mesmo modelo que se usava há 40, 50 anos, torna muito difícil que não haja óbitos, e se compararmos com outros países fica mais evidente ainda, porque nesses o modelo de faixa única não é empregado.

Mas aí vem novamente a individualização. ‘A sociedade é violenta’. ‘O motorista é imprudente’. Individualizando você tira qualquer responsabilidade dos gestores, quer dizer, não há nada estrutural, as pessoas são assim e o Brasil não vai para frente por causa do brasileiro. Não há demonstração causal disso em nenhum sentido. Um dos poucos pontos de consenso do brasileiro em sua identidade é a autodepreciação.

Sedufsm - Hoje em dia vemos notícias de linchamentos públicos contra pessoas acusadas de terem cometido crimes. Por que isso vem sendo, de certa forma, aceito e referendado pela sociedade? Por que a concepção de crime, por exemplo, não se estende a essas práticas que visam fazer ‘justiça’ com as próprias mãos?

Francis – Talvez porque não houve avanço. Desenvolvimento tecnológico não tem a menor relação com desenvolvimento humanitário. Assim como o desenvolvimento econômico não tem relação direta com desenvolvimento social, já que você pode ter desenvolvimento da economia com altíssima concentração de renda. O que fazia sucesso com os romanos em sua arena eram justamente os derramamentos de sangue e as execuções. Há certo fascínio pela morbidez, e que diz respeito justamente a essas histórias que eu mencionava antes. É o mesmo motivo pelo qual faziam tanto sucesso, no século XIX, as histórias sobre assassinatos. Ou mesmo antes disso, quando pensamos em jovens operários na Inglaterra que iam assistir a peças de teatro sobre crimes porque diziam respeito àquilo que era vivido por essas pessoas. Na atualidade não me parece muito diferente. Sim, há certo anseio por justiça, mas o Brasil pune muito, nós temos mais de 630 mil pessoas encarceradas e provavelmente perto do dobro disso envolvidas com o sistema de justiça criminal, e sobrerrepresentando estratos populares, porque aqueles que têm condições de pagar defensores e de mobilizar recursos econômicos para sua defesa são mais difíceis de caírem nas malhas da lei, a despeito das operações excepcionais que temos visto hoje por aí.

Agora, o problema não é se pune ou não, porque o crime – podemos reportar a Émile Durkheim – é normal como fato social. Pode não ser desejável, mas é normal. O fato é como lidamos com o dado de que existem e existirão crimes, e mesmo que fôssemos uma sociedade de anjos poderíamos pensar em distopias onde você tem, por exemplo, o crime-ideia, quer dizer, o seu pensamento foi criminoso. O problema é quando as leis não acabam se refletindo naquilo que seria sua intenção. Na maior parte dos casos não é vantajoso às pessoas envolvidas numa situação conflitiva a criminalização da conduta. Então há certa sobrerrepresentação do papel do direito criminal, o que é injusto com o próprio sistema de justiça criminal e seus operadores. Não dá para esperar que tudo seja resolvido dessa maneira. Há crimes porque sempre houve crimes. Agora talvez haja mais crimes porque estamos prendendo mais, os criminosos estão se organizando mais, operando de modo sistêmico e isso tem efeitos e resultados.

Sedufsm - Que papel o arrocho social e o enxugamento do Estado que vemos em curso têm no aumento da violência?

Francis - O aumento da desigualdade social sempre é correlacionado com um aumento dos crimes contra o patrimônio. As pessoas veem-se privadas de meios legais para obter acesso àquilo que permitiria tanto a subsistência quanto formas mínimas de distinção social, como o vestuário. Medidas de austeridade levam ao aumento do desemprego, da concentração de renda e da desigualdade social. Isso não sou eu que estou dizendo, mas os gestores e figuras-chave do FMI [Fundo Monetário Internacional]. Esses fatores estão diretamente associados à elevação das taxas de criminalidade. Então, sim, há impactos objetivos. Mas, assim como o promotor não pode ter como utopia uma sociedade sem crime, e o médico uma sociedade sem mortos, o crime tem caráter estrutural e não será erradicado. Vamos trabalhar para evitar a existência de crimes e de mortos? Ou lidar com o fato de que existem crimes na segurança e mortes na saúde? Talvez seja mais realista pensar em políticas dessa natureza.

Por exemplo, se pegarmos as estatísticas atuais, 40% estão presos por tráfico de drogas e muitos outros, talvez até 30% adicionais, indiretamente ligados a isso. Os principais interessados na manutenção da proibição são justamente aqueles que traficam. Basta vermos o exemplo da constituição das máfias nos Estados Unidos durante a lei seca e seu declínio imediatamente posterior. Os americanos aprenderam com seus erros e estão modificando suas políticas criminais. O Uruguai também e isso tem demonstrado impactos. O Brasil ainda não começou a discutir isso seriamente. Temos de pensar sobre isso, porque senão teremos um Estado mínimo socialmente e máximo em termos de encarceramento e punitivismo, porque pelo menos R$ 18 bilhões de reais são necessários para manter, anualmente, os atuais encarcerados, a despeito do restante do aparato de justiça criminal. Mas aquilo que está sendo pensado para uma crise atualmente é ampliar um sistema que todos sabem não funcionar. Isso é bom para quem? Para as facções, já que aumentam o número de potenciais recrutados.

É um dilema, porque dificilmente algum cargo no Executivo em âmbito estadual ou federal elege-se dizendo que vai mexer na legislação. E essa sanha punitivista, o fato de as pessoas quererem fazer justiça com as próprias mãos porque acham que não há punição, pressiona num outro sentido: de que isso se cronifique e agudize como tem acontecido visivelmente há pelo menos duas décadas.

 

Entrevista concedida a Bruna Homrich

Foto: Ivan Lautert

Assessoria de Imprensa da Sedufsm

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