Não há vírus ‘democrático’ em sociedades desiguais, analisam professores SVG: calendario Publicada em
SVG: atualizacao Atualizada em 16/07/20 10h25m
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Historiadora e geógrafo concordam: diferenças de classe determinam diferenças no enfrentamento à doença

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Nikelen Witter, docente do departamento de História da UFSM, discorda dos estudiosos que hoje atestam o caráter democrático da COVID-19. Para ela, embora a doença afete todas as pessoas, é fato que as classes mais privilegiadas economicamente têm muito mais condições de enfrentarem-na devido ao acesso mais facilitado a uma alimentação de qualidade, a condições sanitárias e a hospitais, além de melhores condições para resistir a períodos de isolamento. Dizer, então, que a pandemia de coronavírus é democrática por afetar a todos da mesma forma seria um equívoco.

A mesma opinião é compartilhada por Rivaldo Faria, docente do departamento de Geociências da UFSM, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Geografia da Saúde e integrante do Observatório de Dados da COVID-19. Para ele, o vírus não é democrático pois não existe em si mesmo. “É um vírus, um agente biológico que se socializou, tornando-se um evento social, geográfico, histórico, econômico. E como se socializou, vai refletir a própria produção social da história, do mundo, da política”, diz o professor, que traz alguns dados específicos sobre Santa Maria: em 2018, ele participou da elaboração de um indicador de pobreza na cidade, através do qual se verificou que quase 40% da população mora em áreas de vulnerabilidade social – especialmente ao redor da ferrovia e do Arroio Cadena, no Morro do Cechella e no bairro Santa Marta.

“Do ponto de vista do comportamento biológico e físico-químico, o vírus é o mesmo e os sintomas são os mesmos, mas uma coisa é o vírus atingir uma família de 10 pessoas vivendo em 3 ou 4 cômodos; outra coisa é atingir uma família de 3 pessoas morando num apartamento com uma boa sacada e dois banheiros. As condições de salubridade são muito diferentes entre as realidades. Seria um erro imenso dizer que o vírus é democrático porque atingiu a alta classe média e burguesa e também a classe pobre. Sim, ele vai se alastrar, mas a capacidade de resposta é muito diferente a depender das classes sociais e da localização das pessoas”, explica Faria.

O vírus não é democrático porque a sociedade não é”

A influência das diferentes condições de existência pode levar a que, dentro de uma mesma cidade, existam expectativas de vida diferentes a depender do bairro em que cada pessoa mora. Faria diz que Santa Maria, por exemplo, tem expectativas de vida abaixo dos 60 anos e também expectativas de vida acima dos 80. “As expectativas vão se alterar dentro da própria cidade. Você vive tão mais ou tão menos a depender de suas condições de vida. O que o vírus faz é apenas refletir a sociedade já posta. As coisas não acontecem ao acaso nos espaços. O modo como nós nascemos e morremos depende muito do lugar em que vivemos, das condições que temos. É por isso que a expectativa de vida jamais será a mesma entre os lugares”, explica o docente, concluindo: “O vírus não pode ser democrático porque a sociedade não é”.

Rupturas

Referenciando o historiador norte-americano William McNeill, que cunhou o termo ‘rupturas epidemiológicas’ para se referir aos rompimentos violentos no equilíbrio biológico entre microparasitas e pessoas (seus hospedeiros humanos), Nikelen diz que “esses rompimentos acabam tendo um potencial revolucionário, porque inevitavelmente vão provocar choques nas estruturas da sociedade, vão abalar suas economias, suas organizações sociais, políticas e culturais”.

Para ela, epidemias e pandemias trazem à tona elementos que já estão latentes na sociedade, como revoltas e desconfianças da população em relação a governos e outros agrupamentos sociais. Nessas épocas, tendem a se aprofundar debates que envolvam a saúde pública e a validade das orientações médico-sanitárias (quarentena, por exemplo). Com diferentes atores sociais e políticos coletivizando suas impressões sobre o processo, instaura-se uma disputa na base da sociedade. E o resultado dessa disputa - ou seja, quais desses atores serão mais bem sucedidos em suas táticas de convencimento - determina o cenário pós-pandêmico/epidêmico. "As epidemias carregam em si a capacidade de evidenciar os problemas sociais por meio do caos que elas causam, e trazem um potencial revolucionário, desestabilizador, dos modelos que existem hoje e que são a base da nossa coesão social”, diz Nikelen.

A professora lembra ainda que alguns comportamentos da sociedade se repetem toda vez que surge um novo processo de adoecimento coletivo. “Quando a epidemia chega e causa o pior dos cenários que a gente pode imaginar, a tendência da população vai ser dizer que as quarentenas não foram determinadas a tempo, que não houve vigilância o suficiente ou que não foi dado a eles o conhecimento de que o que viria seria horrível e que, portanto, eles deveriam se isolar".

"Se depois que tudo [isolamento] é feito, a doença provoca um cenário dos melhores possíveis, a população vai dizer que não se devia ter feito isso, que foram medidas excessivamente duras, que foi um excesso por parte da ciência e dos governos em exigir esse sacrifício de ficar isolado nesse período. O mal passa a não ter sido tão grande assim”, reflete a docente.

Ela estudou, em sua tese de doutorado, a epidemia de cólera que chegou ao Brasil em 1855. O trabalho, intitulado “Males e epidemias: sofredores, governantes e curadores no Sul no Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX)”, está disponível para leitura online aqui

Conhecimento é fundamental

Para entender o comportamento de uma epidemia ou pandemia é necessário analisar o passado e a forma como outras sociedades, em outros momentos históricos, lidaram com esses tipos de doenças. “Ler sobre epidemias que já passaram nos fará ter uma consciência mais clara do que vai acontecer ao fim da pandemia de COVID-19, mas também durante ela. Conhecer tudo isso nos torna mais adaptáveis às condições que nos são colocadas. A adaptabilidade é o fator fundamental da nossa existência e sobrevivência no planeta. O conhecimento é isso: o poder de nos adaptarmos às condições que nos são colocadas e sobre as quais nós temos pouco ou quase nenhum domínio. O historiador vê as nossas atitudes diante da morte, do medo, da doença, da desorganização da vida cotidiana e da forma como nós lidamos com essas doenças. Essas interpretações são importantes para as sociedades vindouras entenderem o que aconteceu e poderem agir frente a isso”, pondera Nikelen.

Segundo a professora, seriam sete os pontos a serem considerados quando se analisa uma epidemia ou pandemia:

1 - o tipo de doença;

2 - o tipo de contágio (“porque mudando o tipo de contágio mudamos a forma como encararemos a doença”);

3 - a apresentação física da doença (“temos doenças mais espetaculares, como foi o cólera – espetacular no sentido de que a visão física do corpo que morre por cólera é pior que a visão do corpo que morre, por exemplo, de gripe espanhola, ou não é tão terrível quanto os corpos mortos durante a peste negra. A visualidade da doença também interessa);

4 - a violência da epidemia (morbidade - número de doentes, e letalidade - número de mortos);

5 - o tempo de duração (semanas, meses, anos);

6 - a discriminação da doença em relação ao tipo de doente (ex: "a epidemia de AIDS nos anos 80 foi chamada de Peste Gay porque se dizia que atingia apenas os gays, e hoje a gente sabe que é uma falácia, pois ela atinge todas as pessoas. Era muito comum dizer também que o cólera era uma doença de pobres, porque atingia uma maior quantidade de pobres devido às condições sanitárias. A COVID-19, embora alguns historiadores estejam dizendo que é uma doença democrática pois atinge todos, eu não considero democrática, porque as classes abastadas sempre vão ter mais condições de resistência do que as classes mais pobres ou as regiões mais pobres do nosso planeta");

7 - relações entre a doença e o ambiente.

Doença coletiva

A historiadora lembra ainda que epidemias e pandemias são doenças coletivas e sociais, pois se desenvolvem “em face da excessiva aglomeração humana e das alterações descuidadas na nossa relação com o meio ambiente”. Em momentos de adoecimento e luto coletivos, a sociedade se desequilibra e o cotidiano ordinário tende a colapsar.

“Não importa se eu peguei a doença e para mim tanto faz, não importa como nós a encaramos individualmente, temos de pensar que é o grupo inteiro que está sendo ameaçado, e que essa ameaça tem consequências que vão muito além de nossas vidas individuais e que vão marcar nossa sociedade inteira daqui para frente”, reflete Nikelen.

Assim como no momento do cólera o mundo passava por “muitas variantes políticas, econômicas e sociais”, a pandemia de coronavírus também parece revelar, na avaliação da professora, “um mundo às portas de grandes transformações sociais”. Mas tais transformações dependeriam das escolhas que faremos em relação ao futuro – escolhas políticas e sociais que expressem, também, novas formas de pensar a organização urbana e a interação com o meio ambiente.

O drama das pandemias

Nikelen explica que alguns historiadores analisam as epidemias como um desenrolar de um drama ou de uma peça de teatro, porque há movimentos recorrentes que caracterizam todas as aparições de doenças coletivas pelo mundo.

“O primeiro desses movimentos é justamente a negação da epidemia, de que ela não vai chegar ou se chegar não vai ser tão grande, de que as medidas de isolamento são excessivas dentro da conjuntura daquele momento. A população participa dessa negação. Depois temos o período da culpabilização, que é o de procurar culpados e fazer ataques a esses culpados, sempre vendo o “outro” ameaçador como o responsável pela epidemia. O terceiro ato é a parte do pânico e esse pânico vai levar tanto ao nosso melhor, estabelecendo laços de solidariedade, quanto ao nosso pior, que é deixar esses outros que consideramos ameaçadores ou com os quais não queremos nos preocupar. Último ato é de culpabilização dos elementos que tentaram fazer algo contra a epidemia porque serão considerados lentos, ineficientes, incapazes”, esquematiza Nikelen.

Pedagogia

Para Nikelen, epidemias e pandemias, por serem processos coletivos e sociais, e por expressarem as contradições já latentes na sociedade, carregam uma pedagogia.

“Quando surge uma epidemia ou pandemia, ela está falando pra gente, falando do nosso momento histórico e apontando nossa má interação com o meio ambiente e com as outras espécies. Se ela se espalhar, vai estar apontando problemas com nossa gestão pública e nossos modelos econômicos. Quando ela nos adoece e nos mata ela nos mostra os problemas da nossa sociedade, que são a profunda desigualdade que continuamos a mascarar e a má gestão da distribuição dos recursos que essa sociedade é capaz de produzir, que não são distribuídos de forma igualitária, mas para quem pode pagar mais. Uma epidemia é um grande sintoma de questões mais profundas e sobre as quais nós temos que pensar e agir. Nada vai ser exatamente como era depois que essa onda passar”, conclui a docente.

 

Texto: Bruna Homrich

Fotos: Arquivos pessoais

Assessoria de Imprensa da Sedufsm

 

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