Família contesta absolvição de policial que matou Gustavo Amaral SVG: calendario Publicada em 26/06/20 18h34m
SVG: atualizacao Atualizada em 28/06/20 10h15m
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Entidades alertam para militarização e racismo institucional presente na atuação das polícias

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“Foi uma tragédia, e ponto”. Assim o delegado Norberto dos Santos Rodrigues, encarregado na Polícia Civil pela investigação da morte de Gustavo Amaral, encerrou o inquérito que inocentou totalmente o policial responsável pelos tiros que mataram o engenheiro santa-mariense de 28 anos. Gustavo, formado em Engenharia Elétrica pela UFSM, havia viajado a trabalho até a cidade de Marau, norte do estado. Lá, naquele momento, a Brigada Militar perseguia um carro roubado, que colidiu com o veículo em que estavam Gustavo e mais colegas de trabalho. Após a colisão, o rapaz, vestindo uniforme da empresa, desceu do carro e, sob os gritos de seus colegas, que afirmavam “ele é trabalhador”, foi baleado pela polícia.

Para encerrar o inquérito na Polícia Civil, na última quinta-feira, 22, o delegado alegou que a morte de Gustavo resultou de “legítima defesa imaginária”, situação em que o policial fantasia uma possível agressão e a ela reage. A situação de perigo pode ter sido imaginária, mas o resultado da ação do policial foi bastante concreta. Foi o fim da vida de Gustavo.

Guilherme Amaral, irmão de Gustavo, conta que o fechamento do inquérito na Polícia Civil foi recebido com surpresa pela família, que acreditava num resultado que apontasse, no mínimo, para homicídio culposo. O que ocorreu foi a absolvição completa do policial. Em outra instância, contudo, a investigação apontou um caminho diferente. Para a Corregedoria-Geral da Brigada Militar, a morte de Gustavo traz indícios de crime militar e o policial que atirou deverá ter sua conduta avaliada por um conselho de disciplina. Ao fim do processo, a depender dos entendimentos, o soldado pode ser expulso da corporação.

“No inquérito militar a gente espera que o resultado seja diferente. A gente espera que seja entendido como [homicídio] doloso, até pela forma como foi o tiro. A bala entrou no ombro e se alojou no rim, o que prova que meu irmão estava abaixado. Não confio em nada ainda, só depois do julgamento é que eu vou ter condições de dizer plenamente se eu confio ou não nas instituições de segurança”, diz Guilherme, que se mostra surpreso também pelo fato de o delegado da Polícia Civil ter mudado de posicionamento ao longo da investigação.

“Ele queria fazer uma reconstituição da cena com as testemunhas e tudo, mas, de uma hora para outra, desistiu, disse que não era necessário, que ele tinha convicção do que tinha acontecido. Só que a convicção que ele tinha era totalmente contrária ao que a gente imaginava”, comenta o irmão da vítima.

A família de Gustavo Amaral vem solicitando, com apoio de partidos como o Psol e de parlamentares como Fernanda Melchionna, audiência com o governador Eduardo Leite, que já teria sinalizado afirmativamente para o encontro, porém ainda não marcou nenhuma data.

No facebook, a página intitulada 'Justiça para Gustavo Amaral' reúne depoimentos, vídeos e notícias sobre o caso. 

Legítima defesa imaginária?

Gabriela Schneider, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Santa Maria, explica que não teve acesso aos autos do inquérito policial relativo à morte de Gustavo, porém que é possível fazer algumas observações gerais.

“Na legítima defesa putativa ou ‘imaginária’ o agente pressupõe uma situação que se de fato existisse tornaria a sua ação legítima, ou seja, o agente supõe estar em legítima defesa. Há uma série de condições para a configuração da legítima defesa e um dos requisitos essenciais é a necessidade de que sejam empregados, moderadamente, os meios necessários para repelir uma agressão injusta. Isto quer dizer que se deve observar uma proporcionalidade objetiva com a agressão que o agente pressupõe sofrer. No caso de agentes policiais, devidamente treinados, instruídos e preparados para atuar em situações extremas (ao menos é assim que deveria ser), o uso da força letal é sempre questionado. Infelizmente, no Brasil, estudos sérios da área da segurança pública têm nos mostrado que são altos e preocupantes os números de mortes produzidos pela polícia em suas intervenções”, explica Gabriela.

A advogada ainda acrescenta que, mais chocante que os números, é o perfil das vítimas da letalidade policial no Brasil. “[…] chegamos à conclusão de que, historicamente, os negros e jovens são uma grande parcela. Para terem uma ideia, de acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os negros representaram 75,4% dos mortos pela polícia. A seletividade racial nas abordagens policiais é um tema que precisa incansavelmente ser debatido, especialmente a partir da perspectiva dos Direitos Humanos e de uma abordagem da Segurança Pública preocupada com a dignidade da pessoa humana, que é, inclusive, fundamento básico do Estado Democrático de Direito”, conclui.

Guilherme, irmão de Gustavo, acredita que o racismo é um elemento central para explicar a morte de seu irmão. “Essa nossa luta agora não é só pelo Gustavo, mas por todas as vidas negras. Ele [policial] fala que confundiu meu irmão com bandido. Mas como assim? Só porque ele era negro? Ele [irmão] tava com o celular, que era menor que a mão dele, então não tem cabimento isso [referindo-se à alegação policial de que o celular seria semelhante a uma arma de fogo]. Na verdade ele [policial] viu que tinha alguém ali, aquele alguém era negro, então a probabilidade de ele estar envolvido no crime deveria ser muito maior”, afirma o irmão.

Jossimar Manoel dos Santos, presidente da Comissão Especial da Igualdade Racial da OAB SM, diz que, como advogado e negro, não se surpreende com a conclusão do inquérito na Polícia Civil. “Aliás, a conclusão não destoa do que, geralmente, ocorre quando nós negros e negras somos as vítimas. Diariamente, as nossas vidas são ceifadas em decorrência do acaso, do engano, das infelizes coincidências, das balas perdidas, da legítima defesa... E ainda quando as provas são robustas e as marcas da violência arbitrária são visíveis em nossos corpos, as nossas vozes raramente são consideradas”, opina.

Desmitificar o racismo

Assassinatos de crianças, jovens e trabalhadoras (es) negros (as) pelas mãos da Polícia Militar vêm sendo bastante noticiados, contudo, muitos acreditam que esse tipo de crime só ocorra em grandes centros urbanos como Rio de Janeiro e São Paulo. O militante do movimento negro do coletivo Juntos, Gustavo Rocha (o AfroGuga), diz que a morte de Gustavo Amaral desmitifica essa ideia e evidencia que o racismo estrutural e institucional manifesta-se em cada canto de nosso país.

“O racismo institucional faz parte dessas polícias militarizadas e despreparadas que colocam o corpo negro, historicamente já escravizado e violentado, no imaginário do perigo. A legítima defesa imaginária alegada pela polícia no encerramento do inquérito comprova como o corpo negro transita no imaginário social coletivo como um corpo do perigo, que deve ser exterminado, que não tem o direito de viver. Lutar por justiça para Gustavo Amaral é transformá-lo em símbolo de luta no sul do país”, defende AfroGuga.

De fato, para Guilherme, a morte de seu irmão não é uma fatalidade e deve ser vista como um alerta para refletirmos sobre as abordagens policiais, sobre o racismo e sobre a estrutura da justiça como um todo.

“Essa mobilização é muito muito importante. Esse caso não é uma fatalidade, tá todo mundo sabendo porque está sendo divulgado. Mas quantas coisas dessas acontecem e a gente nem sabe? Quantas pessoas não têm a voz que eu estou ganhando através dos movimentos sociais? A gente vai usar o nome do Gustavo, a imprensa e todo o apoio que temos recebido para mudar esse tipo de visão, de abordagem, porque pelo visto entra qualquer um dentro da Brigada Militar. Racista, sem preparo, sem condição...”, critica Amaral, lembrando do caso em que o angolano Gilberto Castra Almeida foi baleado por policiais em Gravataí e incriminado por um crime que não havia cometido. Após 12 dias preso, revelou-se que ele era completamente inocente. “Não é mais uma exceção, é algo comum na nossa realidade. Esse movimento é importante não só pelo Gustavo, mas por todas as vidas. Vidas negras importam”, conclui.

Racismo institucional

O debate sobre o racismo institucional presente, por exemplo, na ação das polícias, vem ganhando espaço não só no Brasil, mas no mundo. No último mês, após o assassinato do trabalhador negro George Floyd por um policial branco do estado de Minnesota, as ruas dos Estados Unidos e de diversos outros países foram ocupadas por protestos que exigiam o fim do racismo e da violência policial. Em Santa Maria, no dia 7 de junho, a Praça Saldanha Marinho foi espaço de uma manifestação em defesa das vidas negras, da qual participou a família de Gustavo.

Jossimar dos Santos (OAB-SM) ressalta que pessoas negras, especialmente jovens, pobres e periféricos, carregam o estereótipo do suspeito, do ladrão, do perigoso, do bandido. “E, de fato, somos os principais alvos das ações policiais, inclusive daquelas que resultam em mortes. Diariamente, nós, negros e negras, convivemos e sofremos com as mais variadas expressões do racismo e há várias gerações somos sufocados pela violência estatal. Somos agredidos nas ruas... somos alvejados em nossas casas, nas escolas, nas ruas, no caminho para o nosso trabalho...”, comenta o advogado.

Para ele “o caso do jovem engenheiro Gustavo dos Santos Amaral demonstra que o ataque preferencial contra as pessoas negras independe de estarmos em grandes centros ou no interior e da profissão que exercemos. As mortes de pessoas negras pela polícia brasileira, infelizmente, não se tratam de um evento isolado. E o elemento racial, isto é, o fato de ser negro ou negra, contribui para esses eventos fatais”.

A morte de Gustavo Amaral, jovem negro santa-mariense vitimado por bala policial enquanto estava a caminho do trabalho, intensifica um debate que não é novo. “A sociedade gaúcha e o Brasil precisam olhar para o racismo, colocar o dedo na ferida e não apenas negar. Porque enquanto a gente continuar negando esse racismo, minimizando essas mortes, vamos estar matando mais Gustavos, mais Ágathas, mais Marielles, mais Georges Floyds”, diz AgroGuga.

Repensar a polícia

A família de Gustavo Amaral lembra, a todo momento, que o jovem morto pela polícia estava a caminho do trabalho. Esse fato certamente agudiza o tom dramático e injusto do episódio. Contudo, para o irmão da vítima, a ação da polícia também não seria justificada caso se tratasse de uma pessoa culpada por delito.

“Mesmo que fosse um bandido a gente não merece ser julgado desse jeito. Quem julga é a justiça, mas não é o que vemos. É cada vez mais comum os policiais decretarem pena de morte através deles mesmos durante uma ação, isso é um absurdo. Aqueles agentes que estavam na ação decidiram que eles iriam fazer a lei, e que seria pena de morte. Foi isso que eles fizeram naquele momento. E na visão desse tipo de pessoa, a probabilidade de um negro ser bandido e estar envolvido em um crime é muito maior”, diz Guilherme, e completa: “A gente sabe que não são todos os policiais, que tem muitos policiais que nos defendem como a gente merece, mas tem alguns que infelizmente não têm condição nenhma de representar essa parte tão importante que é o policiamento”.

Gabriela Schneider, da comissão de Direitos Humanos da OAB SM, destaca que é preciso não só repensar as formas de atuação das polícias, mas toda a concepção de segurança pública sob a perspectiva do Estado Democrático de Direito. “Antes da redemocratização, as respostas do Estado para os problemas de segurança eram em excesso repressivas e autoritárias. O termo ‘segurança pública’ foi especialmente trabalhado após o fim do período ditatorial, no contexto da Constituição Federal de 1988. Ocorre que as políticas governamentais de segurança pública predominantes no Brasil pós-redemocratização são uma extensão, com as devidas proporções, das políticas históricas de segurança repressivas/coercitivas. [...] é possível perceber que há sim a necessidade de uma mudança responsável, não só nas polícias, mas na forma de pensar a segurança pública como um todo, […] iniciando pela reformulação do modelo histórico, reconhecendo como primordial políticas de prevenção, inteligência, controle qualificado, em total respeito aos direitos humanos”, explica a advogada.

Para Jossimar, não há dúvidas de que é necessário repensar a estrutura da polícia brasileira, embora as formas de se fazer isso não sejam consenso entre as pessoas ligadas à segurança pública. Contudo, algumas mudanças seriam possíveis desde já, como a melhoria da formação e da capacitação da polícia ostensiva e uma mudança de direcionamento para que seus membros não a encarem como sinônimo de truculência e guerra contra um inimigo.

“Por outro lado, se percebermos o racismo como um problema estrutural, como sugere o professor Dr. Silvio de Almeida, então, não basta focar apenas nos indivíduos e nas instituições, sejam estas públicas ou privadas. É fundamental que ocorra significativas mudanças no sistema político, econômico, jurídico, educacional e na sociedade, como um todo, para que o racismo e as suas consequências nefastas não se perpetuem. Enfim, a erradicação do racismo e das estruturas que o sustentam deve ser um compromisso do Estado e da sociedade. Portanto, devemos fortalecer a nossa mobilização, consolidar e ocupar espaços de fala e unir as nossas vozes para gritar por mudanças e exigir o devido respeito às nossas vidas”, frisa Jossimar.

Ministério Público

Tanto o resultado do inquérito na Polícia Civil, que inocentou o policial que atirou em Gustavo, quanto o resultado do inquérito na Polícia Militar, que apontou crime, devem ser remetidos ao Ministério Público, que é quem dará a última palavra sobre o caso: punindo, absolvendo ou pedindo mais investigações.

AfroGuga acredita que a justiça pela morte de Gustavo Amaral poderá mostrar que a sociedade não tolera mais o racismo institucional e estrutural. “Pode ser um caso simbólico de grande mudança de mentalidade na população, mostrando que vidas negras importam. Isso é o que viemos gritando há muito tempo”.

 

*A partir desta matéria a Sedufsm manifesta sua indignação pela impunidade presente neste caso e estende toda sua solidariedade à família de Gustavo Amaral em sua luta por justiça. 

 

Texto: Bruna Homrich

Foto 1: Bruna Homrich

Foto 2 e 3: Facebook 'Justiça para Gustavo Amaral'

Assessoria de Imprensa da Sedufsm

 

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