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28/04/2021
José Renato da Silveira
Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSM
“Há um laivo de morte, um gosto macabro em mentiras – é exatamente isso o que detesto no mundo -, o que procuro esquecer. Faz-me sentir péssimo, doente, como se mordesse uma coisa podre”.
Joseph Conrad
“Uns não têm passado, os outros não têm futuro. Possam todos eles encontrar apenas coisas boas nos seus dias e ultrapassar para sempre as suas inimizades. Que é uma forma de se dizer adeus em khmer”.
Afonso Mello
Angkor, o mundo perdido das apsaras, “aquelas que atravessam as águas das nuvens”.
A floresta invisível abraça mortalmente a magnífica cidade de pedra com suas torres gigantescas perfurando o domínio dos deuses celestiais.
A alma milenar do reino vegetal devastado por mãos sanguinárias vaga entre deuses e demônios pelas mentes adormecidas dos homens. É uma vigília eterna.
A loucura só pode ser traduzida pela loucura. Apenas o terror do pesadelo é capaz de desvendar o mistério da iniquidade. Como compreender as gradações da escuridão e da noite, a de fora e que habita no coração do homem?
O horror do abismo de crueldades sem sentido está muito além de qualquer banal explicação do inexplicável.
A sobrevivente
“Em 1975, Nay Vannara era uma rapariga com uma vida inesgotável pela frente e os sonhos próprios de quem acaba de saltar alegremente a barreira dos vinte anos. Estudara no Colégio Francês de Phnom Penh, tinha uma filha pequena, ambicionava tornar-se professora. Em abril, tudo mudou. Como se a existência humana também pudesse ser sujeita a intervalos. Hoje é uma senhora com 40 e poucos anos. Tem a cara larga dos khmers, as maçãs do rosto bem pronunciadas e o queixo quadrado que nos habituámos a ver nas estátuas de Angkor” (Afonso de Mello).
Nay Vannara foi uma das sobreviventes do poder destrutivo das ideias enlouquecidas. Mora num país pequeno, idílico no qual o horror do colonialismo e o da Guerra do Vietnã se combinaram para escrever um dos mais tenebrosos capítulos da história da desumanidade.
Mais de 25% da população do Camboja foi massacrada pelo Khmer Vermelho.
O Khmer Vermelho pretendia retroceder a um passado de mitologia, uma sociedade agrária, autossuficiente, sem classes. Para isso, era preciso eliminar sem piedade todo verniz de modernidade e urbanização, todo resquício de civilização e cultura.
Mello pontua: “As cidades eram inúteis, havia que esvaziá-las; o negócio era maligno, acabava-se com os mercados e abolia-se o dinheiro; destruíam-se todos os vestígios de influência estrangeira: televisões, aparelhos de ar condicionado, eletrodomésticos; liquidavam-se as pessoas contaminadas: adversários políticos, médicos, professores, intelectuais. Excetuando um voo quinzenal ligando Phnom Pehn e Pequim, a única capital que apoiava este novo Governo maoísta-cooperativista-agrário-camponês, o país ficou absolutamente isolado de qualquer contacto exterior”.
Regras simples
Era o início daquilo que os cambojanos aprenderam a chamar «peal chur chat», os tempos da tristeza e da amargura.
Nay Vannara relata: “Éramos usados como simples maquinaria. E não estávamos autorizados a ter nada, nem um simples prato. Todas as noites, dois ou três de nós eram arrancados da enxerga que nos servia de cama e mortos indiscriminadamente à custa de pancadas na nuca dadas com uma barra de ferro”,
De acordo com Afonso Mello: “as regras eram simples, e ainda estão afixadas numa das paredes de Tuol Sleng, a antiga universidade de Tuol Svay Prey que as forças de segurança de Pol Pot tranformaram na sinistra Prisão de Segurança-21, conhecida pela designação de S-21, hoje um museu que preserva a memória das atrocidades dos khmers vermelhos. Estão traduzidas para inglês, para que toda a gente possa entender uma forma de pensar e de agir que faz tábua rasa de todos os princípios básicos da humanidade”.
Resumem-se os dez pontos
1. Deve responder às minhas perguntas sem rodeios.
2. Não tente esconder fatos nem apresente pretextos. Está estritamente proibido de me contestar.
3. Não cometa a loucura de querer ser um homem que contrariou a revolução.
4. Deve responder às minhas perguntas de imediato sem perder tempo a refletir.
5. Não me fale das suas imoralidades.
6. Enquanto receber choques eléctricos não deve gritar.
7. Não se mexa. Espere pelas minhas ordens. Se não houver ordens, mantenha-se quieto. Quando lhe mandar fazer alguma coisa, deve fazê-lo imediatamente sem protestar.
8. Não utilize pretextos tirados dos costumes cambojanos para esconder as suas tendências para a traição.
9. Se não obedecer às ordens acima, sofrerá choques elétricos.
10. Se desobedecer a algum ponto dos meus regulamentos, sofrerá dez choques eléctricos e será eletrocutado.
Conforme Mello: “Sadicamente, todos os passos da barbárie foram sendo meticulosamente arquivados. As pessoas eram geralmente fotografadas antes e depois das sessões de tortura, e os corredores de Tuol Sleng estão repletos de fotografias, do chão ao tecto, de homens mulheres e crianças que foram torturadas e mortas massivamente, num estado de demência assassina que tornava os carrascos de hoje nas vítimas de amanhã e assim sucessivamente num carrossel interminável de auto-genocídio que durou quase cinco longos anos. A S-21 orgulhava-se de exterminar 100 pessoas por dia. E quantas pessoas morreram? Dois, três milhões? Seguramente mais de 25% da população. Só que há sempre um silêncio de culpas sobre os números do horror”.
O maoísmo e a Revolução Cultural foram levados às últimas consequências no Camboja
Na visão do embaixador brasileiro Rubens Ricupero: “a deturpação do marxismo, por exemplo, passando do sonho de criar um homem novo a pretexto de atrocidades que destruíram dezenas de milhões de vidas”.
Certa vez, Ricupero contou que um ministro do Camboja disse que “o maoísmo e a Revolução Cultural foram levados às últimas consequências no Camboja”.
Ricupero complementa: “A catástrofe humana do Camboja é uma prova adicional de que, uma vez posto em marcha, o ciclo atroz da guerra só se detém após ter triturado milhões de inocentes. E que a brutalidade é sempre capaz, mesmo numa cultura tolerante como o budismo, de escancarar o abismo que existe no coração de cada homem”.
O Camboja constitui certamente uma das grandes tragédias do século XX.
Referências
RICUPERO, Rubens. O ponto ótimo da crise. Rio de Janeiro: Revan, 1998.
SOL. Cambodja. A sombra negra dos khmers vermelhos. https://sol.sapo.pt/artigo/642907/cambodja-a-sombra-negra-dos-khmers-vermelhos. Acesso em: 03/04/2021.