Mil vidas e mil amores SVG: calendario Publicada em 20/04/2022 SVG: views 561 Visualizações

“O destino moderno é a silhueta de Deus, do incompreensível e do inabarcável”.

Hebbel

“Assim como os pedaços de gelo o herói trágico se desprende de seu contexto original, ultrapassando com isso sua medida e causando a resistência de um outro”.

Hebbel


As brumas fantasmagóricas dos sonhos etéreos e evanescentes misturaram-se ao mistério do mundo em uma única noite.

O relâmpago brilhante da minha consciência despertou ao ler Hebbel (1813-1863). Um dos autores desconhecidos do século XIX.

Há muitos autores e autoras ignorados de diversas nacionalidades ao longo do “século da paz” e não só naquela época marcada pela “Onda Conservadora” trazida pelo Congresso de Viena.

Friedrich Hebbel - além de viver na Restauração - emerge como o restaurador de uma tradição (passada e futura) do drama alemão que usa o teatro como mecanismo de crítica ao presente.

Poeta e dramaturgo alemão, Hebbel é um dos autores negligenciados pela crítica literária e teatral contemporânea. Ele produziu peças de muita profundeza psicológica em oposição às tramas românticas.

O poeta alemão estudou direito, literatura, filosofia e história, em Munique e Heidelberg, especialmente a doutrina idealista de Georg Wilhelm Hegel (1770-1831).

Influenciado, portanto, pela portentosa obra de Hegel, Hebbel escreveu em seu diário: “A vida é a grande torrente, as individualidades são gotas, mas as individualidades trágicas são pedaços de gelo que precisam ser novamente derretidos e, para que isso seja possível, destroem-se e pulverizam-se mutuamente”.

De fato, o pensamento de Hebbel caracteriza um ponto de transição na história intelectual do século XIX, uma vez que ele ainda segue o caminho metafísico do idealismo.

Dizia Hebbel: “a vida é uma necessidade terrível, que tem de ser aceita com base na confiança e na crença, mas que ninguém compreende”.

Esta frase extraída - das numerosas passagens do diário de Hebbel - revela a grandiosidade do seu pensamento.  

Realmente, Hebbel entende que a história repete a tragédia e a farsa como uma peça de teatro. Com vários atos e cenas, a trama da vida é cheia de conflitos, disputas, “guerras”, “revoluções”, “violentas insurreições” e movimentos.

Há inevitáveis retrocessos, fracassos, retornos ao estágio anterior e um novo recomeço onde o ciclo não se normaliza.

A mente criativa do poeta alemão Hebbel produziu uma obra “numa linha tênue entre a irreverência e a desgraça que resulta de uma espécie de filosofia existencial, a qual críticos posteriores encontraram no conjunto das obras de Hebbel, chamando-a de doutrina do Pantragismo”.

Hebbel tinha a convicção de que “tragédia e comédia brotam de uma e mesma raiz, de forma que a primeira não pode atingir sua forma plena de modo algum se a última for deixada para trás”.

Hebbel construiu um universo literário em que os dados estão em jogo e o acaso é o resultado de um cosmos indiferente às ânsias individuais, que dá ou tira a felicidade da débil espécie humana com a mesma facilidade.

Em 1838, Hebbel escreve em seu diário uma mensagem impactante que o grande erro de Napoleão estava no “fato de ele ter confiança no poder”, de conseguir realizar “tudo por si mesmo, por meio de sua própria pessoa”. Este erro está baseado, portanto, na sua grande individualidade que é o erro de um “deus” e é o bastante para arruiná-lo.

Na atualidade, podemos notar – principalmente no Brasil – que há diversas figuras políticas que arrogam-se deuses.  

Por fim, em face disso e em tempos de crise sanitária, humanitária e econômica que vivemos e viveremos, ler as obras e os diários de Hebbel e de outros escritores marginalizados ao longo do tempo nos permite “sair da caixa” e neste mundo tão “fora dos eixos”, podemos ser conservadores, revolucionários, sociais democratas, românticos, realistas e até modernos avant la lettre. Tudo depende das circunstâncias e do momento.

A leitura e o contato com novas obras e novos autores (autoras) nos permite isso.

Como diz George R. R. Martin: “Eu vivi mil vidas e amei mil amores. Andei por mundos distantes e vi o fim dos tempos. Porque eu li”.


Referências

20 anos Produção popular. Prosa de ficção completa de Friedrich Hebbel. https://www.expressaopopular.com.br/loja/produto/prosa-de-ficcao-completa-de-friedrich-hebbel/. Acesso em 20/03/2022.

SILVA, Felipe Vale. A tradição alternativa do drama alemão. Friedrich Hebbel e seus precursores. SOLETRAS Revista. São Gonçalo. N° 34. P. 101-119. 2017.

SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 2004.

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por José Renato Ferraz da Silveira
Professor do departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSM

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