E agora, José? A poesia de Drummond e as saídas para a violência SVG: calendario Publicada em 06/07/2022 SVG: views 3208 Visualizações

O campo de conhecimento que, na trajetória de nossas vidas, vimos construindo e consolidando remete-nos, nesse devir histórico, à necessidade de pensar em todas as mazelas e agruras sociais que vivenciamos. Queiramos ou não, a dinâmica social é produto e produtora de uma filosofia de vida. O modus vivendi, da dinâmica social, é uma síntese histórica de nosso vir a ser no emaranhado das teias do tecido cotidiano. Nosso campo epistemológico ensinou-nos que somos definidores e definidos pelo real e paradoxal mundo dos nossos ‘Eu’ coletivos.

A temática da violência, local, nacional e internacional, nos últimos anos, têm flanado e se incrustado em nossos aparatos cognitivos, auxiliando na circunscrição de nossos fazeres e saberes(dialeticamente) na e com a vida coletiva. Ao estabelecermos essas premissas iniciais para a construção de nossa prosa, que incrível! veio, como um meteoro, o revolucionário poema “E agora José?”, do maravilhoso Carlos Drummond de Andrade. Para além do rico elemento estético, o poema expressa o ‘Eu poético’, de Drummond, mergulhado num árido e bicudo contexto histórico, social e político. Entendemos que esse magnânimo poema nos remete a reflexões no âmbito psicanalítico, social e político. Podemos afirmar que a psicanálise possui muitos elementos de fronteira com a Sociologia e Teoria Política. Similaridades, por vezes, tristes. A fala é um elemento determinante para a interpretação psicanalítica e é a análise do não dito, que permeia, de forma subliminar, o que foi dito e vai caracterizando o analisado e seus possíveis transtornos e traumas.

De forma hegemônica, os agentes políticos, na verdadeira arena da pólis tornam prática, de forma antagônica, aquilo que verbalizam. Infelizmente, engodo e demagogia são suas práticas. Sofistas ou cínicos são muitos desses agentes políticos. Friederich Nietzsche dizia que aquilo que convence não necessariamente pressupõe ao verdadeiro. A única preocupação desses demagogos é serem, meramente, convincentes. Prestar atenção ao que não foi dito é uma boa forma de saber e entender alguns agentes da pólis. Queremos humanização, humanizar a esfera da política e, não apenas, marionetes desejamos ser.

Para o diálogo, profícuo, entre o poético e o sociológico que pretendemos estabelecer em nosso texto, por hora, vamos voltar ao "E agora, José?" de Drummond.

Devemos, pelos ossos do ofício, lembrar que esse poema foi construído em 1942, em plena ditadura de Getúlio Vargas. Segundo muitos estudiosos do universo poético, o poema de Drummond dialetiza o ser do poeta e o seu tempo. Neste contexto o “E agora, José?” emana uma riqueza de elementos sócio-históricos e psicanalíticos do eu poético de Drummond. Isto é, espelha, de forma profunda, a sociedade e o mundo de contradições e conflitos que o poeta vivia. Um regime ditatorial e totalitário produz, necessariamente, um infindo mundo de exclusões, discriminações e violências. O eu poético é a transfiguração da impotência do ser social diante da barbárie de seu contexto social.

Esses áridos e bicudos tempos são capazes de gestar traumas psicológicos, patologias, feridas e dores em fatigados corpos. A violência e a vida vivida em uma ditadura forma, inevitavelmente, um inefável desencantamento com o mundo. As diferentes formas de violência introjetam-se no pensamento e vão criando preocupações que podem ser emocionais, reais ou metafísicas. Toda violência pode levar o ser humano para situações limites e, muitas vezes, verdadeiras crises existenciais.

Uma pergunta nos surge e, parece, não querer calar: por quê os últimos tempos, que vivemos, tem se configurado como a época histórica da maior incidência de transtornos psicológicos tais como ansiedade, melancolia, síndrome do pânico e etc...? Ao nos atermos nos diferentes veículos de imprensa somos inundados por notícias referentes ao patético e bizarro mundo da criminalidade. Estamos vivendo num contexto sócio-histórico onde virou lugar-comum a banalização da violência. Já foi várias vezes dito, mas nos sentimos impelidos a reafirmar que se não fosse trágico estaríamos atuando, no palco da vida, numa grande comédia. Nós podemos ter a certeza que desejamos sair de nossas casas (quem as tem!), mas não temos nenhuma garantia que seremos capazes de retornar. Um tênis, um celular ou alguns miseráveis trocados podem se transformar em causas materiais para alguém perder a sua preciosa vida na selvagem arena de violência que virou nossa impiedosa e triste realidade.

Parafraseando uma antiga tríade filosófica: genética e historicamente podemos saber de onde estamos vindo, mas estamos perdendo a capacidade de entender e saber o que realmente somos e, muito menos, sermos capazes de pensar ou vislumbrar para onde vamos. Usando o campo poético podemos ter a certeza que a vida está, muito mais, para o misterioso e frenético mar revolto. O afável, a generosidade, harmonia e o belo aparecem em átimos de tempo e são, inexoravelmente, exceções.

"E agora, José? A festa acabou, a luz acabou, o povo sumiu, a noite esfriou, E agora, José?

...o riso não veio, não veio a utopia, e tudo acabou, e tudo fugiu, e tudo mofou, E agora, José?...".

Em nossas bibliotecas estão assentados livros que falam da violência universal. Este tempo e espaço não emergiu para isso. Na guerra da Ucrânia está posto uma psicopatia ou prepotência narcisista de um indivíduo estalinista.

Ao ler os Jornais, Diário de Santa Maria e O Globo, os dados sobre a violência confirmaram o nosso olhar ou visão desse nosso patético cotidiano. Cá, no interior, só sabíamos de facções criminosas pelo noticiário jornalístico. São terríveis os inquestionáveis dados.

De primeiro de janeiro de 2022 até 30 de abril, em Santa Maria, tivemos 27 assassinatos e 72 tentativas. No ano de 2021 foram 16 assassinatos. Para entender esses números, que não são só dados estatísticos: um tétrico aumento de 68,7 %. Já no Rio de janeiro, segundo os dados oficiais e jornalísticos: diminuíram 32%.

Segundo o Jornal O Diário de Santa Maria, podemos bater um recorde. Nessa lógica, segundo o jornal, podemos atingir 81 assassinatos. Em 2017 ocorreram 72 assassinatos. São filhos, amigos e pais ceifados pelo crime e, pela nova lógica, a das organizações criminosas. Até quando vamos ver, ouvir e ler estás desastrosas estatísticas sobre as perdas humanas?

Entre um Estado que defende a vida, a qualidade de vida e a previsível longevidade está, de forma cínica e irônica, um Estado que, astutamente, atua em defesa da morte dos excluídos e pobres.

Como iniciamos com a estética, cá voltaremos:

José, para onde?

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por Luiz Carlos Nascimento da Rosa
Professor aposentado do departamento de Metodologia do Ensino do CE

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