Porque sou artistadocente SVG: calendario Publicada em 01/11/2023 SVG: views 5240 Visualizações

Minha mãe era costureira e meu pai era contabilista quando se casaram. Apesar do pouco estudo (fez apenas o fundamental), minha mãe tinha muita sensibilidade artística. Minha lembrança mais remota é ela cantando e dançando Clara Nunes, Agepê e outros. Outras vezes, enlouquecia requebrando ao som de Ney Matogrosso.  Mais tarde, eu, mais grandinha, rodava minha saia com ela, ao som de Cyndi Lauper, com Girls just wan to have fun.

Depois de casada, minha mãe virou dona de casa e não seguiu os estudos. Dedicou-se à maternagem.

Com sete filhos e filhas para criar, não tinha muito tempo para contar estórias.  Mas colocava o disco de estórias infantis para a gente ouvir e, depois, quando alfabetizadas, dava-nos livros. De tanto ouvir e ler estórias, passei a inventá-las para as minhas bonecas. E a Mami dizia que eu seria uma Janete Clair quando crescesse. Sim, eu tinha a verve artística desde pequena... E houve épocas em que publiquei textos literários num blog. E para qualquer arte que fizesse, tinha os aplausos dela.  

Seu sonho era ter feito balé e, por isso, colocou eu e minha gêmea nas aulas de dança.  Eu segui dançando e durante muitos anos ela foi a minha plateia. Eu era artista desde criança, antes de ser docente. Fiz teatro na adolescência e ainda cantei em coral, com minha mãe: eu, soprano; ela, contralto.

Tornei-me docente com o Magistério (antigo Normal). E oferecia às minhas crianças tantas possibilidades quanto as que a minha mãe teve na infância – contava-nos das várias disciplinas e tudo o que ia além de português e matemática, tudo o que as humanidades podem oferecer numa formação. Ela só fez o primário e o ginasial, no Bartolomeu de Gusmão, em Canoas. Iniciou os estudos técnicos na Ernesto Dornelles, mas não concluiu.  

Sem graduação em Dança no RS, naquela época, fiz jornalismo e, anos mais tarde foi para a minha mãe que contei que ia fazer faculdade de Dança, em São Paulo. Tornei-me artistadocente. Foi o meu TCC a última obra artística que me viu dançar. Mas não a última vez que dancei pra ela.

A música acalmava-a em crises provocadas pelo Alzheimer. Então, colocava canções que gostava e dançávamos juntas. Foi assim até quase o fim de sua vida. Um pouco antes de perder a lucidez, dias antes de morrer, já não conseguia caminhar ou ficar em pé, e eu colocava um sambinha pra ela, enquanto eu dançava em sua frente e ela batia palmas e balançava o tronco. Numa dessas vezes, uma vizinha passou e olhou pela janela, chamou outras e disse: Olha que amor, a Marilia dançando com a filha. Foi nossa última plateia.

Se hoje sou artistadocente, devo à inspiração e ao incentivo de minha mãe, que partiu me lembrando: “não deixe o samba morrer”. Ou qualquer outra forma de arte.   

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por Neila Baldi
Professora do curso de Dança-Licenciatura da UFSM, diretora da Sedufsm

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