A Negritude na construção do bem viver: horizontes de transformação para celebrar o 20 de Novembro Publicada em 22/11/2023 2591 Visualizações
O filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe caracteriza a época em que vivemos enquanto – brutalismo (1), um período marcado pelo pathos da demolição e da produção em escala planetária de reservas de obscuridade, as quais se traduzem em “estados de emergência” ou de “exceção”, que rapidamente se transformam em permanentes. Trata-se de uma época em que vigora, na arquitetura do mundo, uma profunda remodelação do tecido da própria vida, onde não há mais distinção entre seres vivos e máquinas; onde a toxicidade impinge a Terra, e a vida encontra-se fadada a carbonização.
Apesar de situar essas condições agudas, o intelectual africano não é cético em seu horizonte e concebe desde África as possibilidades de repatriar o humano com a Terra, ou com o Cosmos.
De dentro e em suas diversas diásporas, há um interesse renovado no sonho de uma nação altiva, poderosa e única no seio da humanidade, ou de uma civilização (a palavra não é excessiva) capaz de enxertar em tradições autóctones milenares um núcleo tecnológico futurista (MBEMBE, 2021, p.32).
Nesse sentido, podemos coadunar a concepção de Mbembe (2021), com a perspectiva da intelectual negra brasileira Cidinha da Silva (2022) (2), quando esta afirma que as tecnologias ancestrais de produção de infinitos, contra-objetam este mundo brutal contemporâneo. Ou seja, o nosso futuro é ancestral - como afirmam nossos movimentos sociais negros e indígenas. Logo, há na ancestralidade negra e em sua dinâmica afrodiaspórica, constitutiva da negritude - termo que designa a tomada de consciência da condição histórica de um povo vítima da objetificação e negação de sua humanidade, pelo mundo ocidental e a reabilitação de seus valores civilizatórios destruídos e de suas culturas negadas (MUNANGA, 2019) (3) - elementos para refletirmos acerca dos horizontes de transformação da sociedade. Marcadamente em abya yala (4), essas expressões podem ser definidas enquanto luta pelo bem viver.
De acordo com o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2014) (5), o bien vivir ou buen vivir, representa uma outra forma de existência social, distinta das imposições da colonialidade global do poder. Configura-se como um conjunto de práticas sociais, orientadas para a produção e reprodução de uma sociedade democrática e igualitária. Ele seria uma das formas mais antigas de resistência que emergiu entre as populações originárias da América Latina, dentre as quais o autor destaca o papel dos povos andinos de origem Quíchua e Aymara (do Peru, do Equador e da Bolívia).
Por sua vez, a negritude no processo da diáspora também trouxe suas contribuições a essa concepção de vida e de mundo. Mais recentemente, através dos discursos e posicionamentos da primeira mulher negra vice-presidenta da Colômbia, Francia Marquez, a expressão bem viver (viver sabroso em suas palavras) ganhou força e novos contornos em nossa região. Para Francia bem viver significa um projeto de vida em plenitude, desde a dignidade, o qual compreende a construção de possibilidades para viver em paz e com tranquilidade nos diversos territórios. Trata-se de uma contraposição a um projeto de violência, guerra e morte que abate a juventude, trabalhadores/as, afrodescendentes, indígenas, camponeses/as e demais grupos étnicos de seu país.
Entre a negritude brasileira, podemos situar diversas contribuições acerca deste horizonte de transformação social. Dentre essas, destacamos O Quilombismo (6) de Abdias Nascimento (1914-2011), o qual representa uma consciência histórica e um sentimento que vai ao encontro de nossa cosmopercepção de matriz africana, na qual não há uma fragmentação entre sentir e pensar a vida, nem entre a partilha dos bens tangíveis e intangíveis que constituem os seres, diferentemente das concepções eurocêntricas que forjaram a subjetividade da modernidade ocidental, baseando-se em fraturas e dicotomias. Para Nascimento (2019), os quilombos no Brasil surgiram da necessidade vital dos africanos escravizados, no esforço para recuperar sua liberdade e dignidade diante dos cativeiros. Desta forma, representaram organizações sociais calcadas no ideal de liberdade, exercido através de relações de solidariedade, convivência e comunhão existencial, tanto quanto organizados em sistemas econômicos adequados à realidade brasileira, que se baseiam no comunitarismo de matriz africana, portanto, distintos da economia espoliativa do capitalismo.
Por sua vez, para o criador do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), as redes associativas, confrarias, clubes, terreiros, afoxés, escolas de samba, movimentos culturais e políticos, dentre outras formas de organização que surgiram no Brasil, representam a complexa trama de significações e práxis afro-brasileiras, que denomina de quilombismo. Portanto, o quilombismo representa “uma luta anti-imperialista, se articula ao pan-africanismo e que sustenta a radical solidariedade com todos os povos em luta contra a exploração, a opressão, o racismo e as desigualdades” (NASCIMENTO, 2019, p.284).
Nesse sentido, a perspectiva quilombista tanto apresenta a reivindicação de um conjunto de políticas públicas para a população negra, frente ao Estado brasileiro, quanto se coloca em um horizonte revolucionário, fundamentalmente antirracista, anticapitalista, antilatifundiário, anti-imperialista e anticolonialista, cuja inspiração reside na experiência palmarina.
Mais uma perspectiva importante, que gostaríamos de destacar nesta construção de experiências e lutas pelo bem viver, diz respeito ao postulado da intelectual negra Lélia Gonzalez (1935-1994), sobretudo a partir da noção de amefricanidade (7), através da qual procura resgatar o papel da negritude em todo o continente americano, em um contraponto ao imperialismo norte-americano e as diferentes configurações do racismo nas sociedades anglo-saxônicas e latinas (ladinas em sua compreensão).
Para a autora, Améfrica designa um sistema etnogeográfico de referência, criado pelos nossos antepassados no continente em que passamos a viver, inspirados em modelos africanos. Portanto, amefricanos/amefricanas constituem toda uma descendência, não somente de africanos/as trazidos/as pelo tráfico negreiro, como daqueles/as que chegaram à “América” muito antes Colombo. Logo, na elaboração da amefricanidade aponta-se que:
Embora pertençamos as diferentes sociedade no continente, sabemos que o sistema de dominação é o mesmo em todas elas, ou seja: o racismo, essa elaboração fria e extrema do modelo ariano de explicação, cuja presença é constante em todos os níveis de pensamento, assim como parte e parcela das mais diferentes instituições dessas sociedades (GONZALEZ, 2020, p.135)
Para uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), a amefricanidade está presente entre nós, desde a manifestação de revoltas negras, da elaboração de estratégias de resistência cultural, bem como nas formas de organização social livres, encontradas, por exemplo, nos quilombos, cimarrones, cumbes e palenques, espraiados pelo continente. Logo, o reconhecimento de toda essa dinâmica cultural e política é fundamental para os horizontes do bem viver, ela nos leva para o outro lado do Atlântico, ao mesmo tempo em que nos traz novamente, transformando-no/as em amefricanos/as.
Nesse processo, é fundamental resgatar a dimensão civilizatória historicamente negada aos povos africanos e afrodiaspóricos, pois, trata-se de reconhecer como imprimimos no Brasil valores civilizatórios ou seja, princípios e normas que corporificam um conjunto de aspectos e características existenciais, espirituais, intelectuais, materiais, objetivas e subjetivas, que se constituíram e se constituem o processo histórico-geográfico, social e cultural da formação deste país. Assim, poderemos compreender que vivemos embates terríveis, sociais e históricos, determinados pelo racismo. Mas também, “perceber que não estamos condenados a um mundo euro-norte-centrado, a um mundo masculino, branco, burguês, monoteísta, heterossexual, hierarquizado...Outros modos de ser, fazer, brincar e interagir existem” (TRINDADE, 2010 p.53) (8). Logo, a construção do bem viver significa para negritude o resgate e a reconstrução desses esses outros modos de ser, sentir-pensar a vida, que contra-objetam os preceitos da modernidade-colonialidade.
Que Sankofa guie nossos caminhos para a construção destes horizontes de transformação neste 20 de Novembro! Mo dúpé!
- In: MBEMBE, A. Brutalismo. São Paulo: n-1 Edições, 2021.
- In: SILVA, C. Tecnologias ancestrais de produção de infinitos. Goiânia: Martelo, 202
- In: MUNANGA, K. Negritude: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
- Expressão autóctone que designa o território conhecido enquanto América Latina e Caribenha a partir do processo de colonização.
- In: QUIJANO, A. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la colonialidad/descolonialidad del poder. Buenos Aires: CLACSO, 2014.
- A obra O Quilombismo teve a sua primeira edição publicada pela Vozes em 1980. In: NASCIMENTO, A. O Quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista. São Paulo: Editora Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019.
- GONZALEZ, L. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: RIOS, F.; LIMA, M. (org.). Lélia Gonzalez - Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020 [1988].
- In: SILVA, G. R. Azoilda Loretto da Trindade: o baobá dos valores civilizatórios afro-brasileiros.
Sobre o(a) autor(a)
Por Anderson Luiz Machado dos SantosProfessor do departamento de Geociências da UFSM, integrante da coordenação do NEABI/UFSM e do MNU-Santa Maria