Conexões maternas: a saída é sempre coletiva
Publicada em
14/06/2023
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As desigualdades de gênero no ambiente acadêmico são um problema reconhecido, mas ainda tido como controverso por muitos. Isso porque os índices de ocupação dos bancos dão margem para confundir as diferenças entre o ingresso, a permanência e a progressão nas carreiras universitárias. No Brasil, o Censo Escolar de 2020 (INEP) aponta de 58% dos estudantes matriculados na graduação são mulheres. A UFSM tem uma proporção semelhante, sendo a média 55% das vagas estudantis (de graduação e pós) ocupadas no ingresso dos últimos 5 anos por pessoas do sexo feminino. Quando observada a realidade docente, temos uma pequena inversão, com 53% dos cargos da UFSM ocupados por homens. Nesse cenário, como se indica um certo equilíbrio quantitativo (ou até alguma “vantagem” para as mulheres), dá-se brecha para argumentar que não há problema a ser resolvido.
Ocorre que conseguir acessar um lugar, seja como estudante de graduação, pós-graduação, servidora ou como professora é apenas a primeira questão a ser refletida. Como um dado bruto, os números não dão a possibilidade de conhecer os percursos, as dificuldades enfrentadas individualmente para permanecer e progredir no ambiente acadêmico, especialmente considerando o modelo meritocrático e produtivista que baliza desde a trajetória estudantil, profissional, ou a carreira de docência e pesquisa.
Nesse contexto, a maternidade e a maternagem são muitas vezes definidoras na trajetória de mulheres no ambiente acadêmico. Esta realidade se materializa na necessidade, forjada socialmente e culturalmente, de que são as mulheres as principais responsáveis pelo trabalho do cuidado (dos filhos e de terceiros), bem como da gestão e organização da vida doméstica. Essa realidade se reflete diretamente na disposição ou nas possiblidades individuais para dedicar-se aos estudos, ao trabalho e à carreira. Não fosse esse um dos argumentos, o que justificaria saber que, no âmbito da gestão, os homens ocupam 60% dos cargos de direção na UFSM? Ou, pra falar de questões acadêmicas, como avaliar o dado que, no Brasil, em média, 60% das bolsas de produtividade no CNPq são destinadas a cientistas do sexo masculino? É a disponibilidade para a carreira e não critérios de mérito ou competência que possibilitam aos homens a permanência e a progressão em parâmetros mais avançados na academia.
Quando o cenário se volta para as estudantes, temos dificuldades ainda mais expressivas. A rigor, na UFSM, o que se garante para as mães estudantes da graduação basicamente se restringe ao regime de exercícios domiciliares (que não equivale a uma licença maternidade), nos quatro meses após o nascimento da criança. Assim, as condições de manutenção da vida escolar em conciliação com as demandas da maternidade quase sempre fica a cargo de uma negociação pessoal. Ressalte-se as dificuldades acumuladas pelas mães que não possuem BSE que não podem acessar com suas crianças no RU (ainda que como mera acompanhantes dos pais) ou aquelas beneficiadas pelo BSE que tem que manter o rendimento escolar de faltas e notas nas mesmas condições dos/as estudantes que não tem filhos.
Como não existem recursos financeiros que deem suporte e/ou espaços específicos que possam acolher as crianças no ambiente acadêmico, as estudantes mães muitas vezes se veem obrigadas a trancar matriculas, negociar prazos, faltas ou ainda levar as crianças para a sala de aula. Sobre esse último ponto é importante registrar esse direito está assegurado pela Politica de Igualdade de Gênero da UFSM às estudantes mães de crianças até 12 anos, mas a informação não é ainda disseminada. A falta de informação, aliás, é um dos principais problemas para a implantação de políticas efetivas para mães na comunidade acadêmica. Não existem dados sobre quantas são e quais são suas demandas mais urgentes.
Foi diante desse contexto que propusemos e iniciamos no mês de maio o projeto de desenvolvimento Institucional “Conexões Maternas”, que tem forte inspiração em movimentos e coletivos que tem se consolidado nas Universidades brasileiras nos últimos anos. O projeto, aprovado pelo edital da Casa Verônica, tem o objetivo de promover o acolhimento e mapear as demandas das mães no ambiente acadêmico da UFSM para, com isso, propor ações de sensibilização e a implantação de políticas que favoreçam a comunidade materna.
No primeiro encontro, realizado dia 25 de maio na Casa Verônica, estiveram presentes estudantes de graduação e de pós, servidoras técnico administrativas e servidoras docentes. A partir de relatos que tratam de suas experiências e de seus espaços institucionais, palavras como resiliência a solidão marcaram o tom da roda de conversa. É interessante perceber como que dentro de um ambiente plural, reflexivo e com um potencial de transformação tão evidente como uma universidade, a maternidade continue sendo invisibilizada ou tomada como uma questão pessoal, individual, que concerne a cada mãe negociar e resolver. O projeto terá encontros mensais, cujas pautas se vão se organizar conforme as deliberações e demandas das participantes. Esperamos poder sistematizar, pela via do diálogo, um ambiente que seja mais acolhedor e que torne possível a permanência e progressão das mães nos mais diversos setores da UFSM, respeitando suas diferentes realidades. A maternidade e a maternagem são questões sociais e entendemos, sobretudo, que a saída para as mudanças são sempre coletivas. Por isso, ampliamos nosso convite e esperamos poder contar com o apoio da nossa comunidade.
A próxima atividade do projeto está marcada para o dia 22 de junho, às 15h, na sala 109 (miniauditório) do prédio 14. Como resultado da escuta ocorrida em maio, tema proposto para a discussão será “Solidão Materna”, a partir da exibição do curta metragem “Além de Mim”, dirigido por Gabriella Billwiller e Laís Lorenço. O filme se propõe a acompanhar a trajetória de mulheres-mães em torno dos percalços da maternidade, questionando, a partir de seus depoimentos, o ideal de abnegação, santidade e amor depositado em cima das mulheres. E não se atendo apenas ao papel materno, mas aos sonhos e vivências como mulher. A atividade é aberta a todas as pessoas interessadas, sendo possível levar as crianças. A inscrição, bem como demais informações sobre o projeto, podem ser acompanhadas no Instagram @conexoesmaternas.ufsm
* Dados sobre as bolsas produtividade no Brasil:
Amurabi Oliveira, Marina Félix de Melo, Quemuel Baruque de Rodrigues e Mayres Pequeno, «Gênero e desigualdade na academia brasileira: uma análise a partir dos bolsistas de produtividade em pesquisa do CNPq», Configurações [Online], 27 | 2021, posto online no dia 24 junho 2021, consultado o 13 junho 2023.
** Milena Freire, além de docente no departamento de Ciências da Comunicação, é também coordenadora do Curso de Especialização em Estudos de Gênero, membro do Comitê de Igualdade de Gênero da UFSM e Embaixadora do movimento Parent In Science.
Sobre o(a) autor(a)
Professora do departamento de Ciências da Comunicação da UFSM