8M: é preciso retomar a centralidade do trabalho SVG: calendario Publicada em 12/03/2025 SVG: views 200 Visualizações

O dia Internacional da Mulher foi oficialmente reconhecido pelas Nações Unidas em 1975, mas tem sua origem no movimento operário e socialista de mulheres, no início do século XX, nos Estados Unidos, Europa e Rússia. Protestos nas ruas, nas fábricas, reivindicações pela redução de jornadas, melhores salários e condições de trabalho marcaram os eventos, que também exigiam a participação política através do voto feminino ou protestavam contra o fim da primeira guerra mundial.

Desde a institucionalização da data, cujo caráter político e de luta por igualdade e equidade permanece, é evidente o crescimento da participação feminina no mercado formal e a conquista de garantias legais importantes, que ultrapassam a esfera trabalhista. No Brasil, índices do Ministério no Trabalho e Emprego apontam que a taxa de participação feminina no mercado cresceu de 34,8% em 1990 para 53,3% em 2023.

Apesar do avanço positivo, os dados revelam diferentes camadas quando comparados em chaves que não lineares. Quando considerados diante da realidade masculina, o mesmo levantamento (PNAD 2023) revela que 73,2% dos homens que fazem parte da população em idade para trabalhar (PIT) estão ocupados. A diferença de 19,9% entre os dois grupos demonstra, entre outras questões, as consequências do desequilíbrio que se dá na divisão de tarefas porta de casa para dentro. Entre outros fatores, normalmente alicerçados pelo viés de gênero, é a responsabilização pelo trabalho doméstico, pelo cuidado dos filhos e de outras pessoas que impossibilita que mulheres estejam mais disponíveis para buscar postos de trabalho no mercado formal.

As informações coletadas pelo IBGE evidenciam o quanto o trabalho doméstico permanece sendo atribuição majoritariamente feminina: em média, elas dedicam 21,3h e eles 11,7h semanais para executar as tarefas. No detalhamento das atividades, as mulheres executam quase a totalidade das funções registradas: cozinhar, lavar, arrumar, organizar a casa, fazer as compras, cuidar de pessoas e também animais domésticos. Os homens são maioria apenas na execução de pequenos reparos no domicílio, automóvel ou eletrodomésticos. Outras ponderações são importantes para observar este contexto: a diferença na dedicação de horas para o trabalho doméstico varia significativamente conforme a classe social e a raça.

O grupo de mulheres que se encontra entre as que recebem menores rendimentos dispensa 7,3h semanais a mais que aquelas que estão entre as 20% que tem maior renda. No que diz respeito à raça, mulheres pretas e pardas dedicam 1,6h a mais que mulheres brancas. Não há alterações significativas de classe e raça entre os homens. A perspectiva interseccional nos leva a considerar as diferenças e variações nas realidades (que incluem ainda região, presença de cônjuge e escolaridade), e nos indica a necessidade de pensar sobre as mulheres, no plural.

O cruzamento de dados entre a parcela de mulheres que está inserida no mercado remunerado e a conciliação que precisam fazer para realizar as atividades domésticas nos leva a pensar sob uma outra perspectiva. Os arranjos e as negociações familiares necessárias para que as mulheres exerçam um trabalho remunerado fora de casa na maior parte das vezes não são quantificáveis, mas deixam pistas. Especialmente quando observamos que 28% das mulheres empregadas trabalham em jornadas parciais (de até 30h). Para atender demandas familiares, assumem carga horária reduzida no trabalho formal. Consequentemente, tem menor remuneração e sua autonomia financeira prejudicada. Aqui não estou refletindo sobre a discrepância salarial entre homens e mulheres para exercerem as mesmas funções (que se mantém em média 21,1% menor que a renda masculina), mas sobre as negociações que a uma parte significativa das mulheres se vê implicada a fazer para ingressar e se manter no mercado de trabalho.

Uma parte das reivindicações do movimento feminista levanta a questão sobre a visibilidade e valorização do trabalho reprodutivo e não remunerado. De acordo com a Fundação Getúlio Vargas (2023), o trabalho doméstico e do cuidado, se contabilizado e remunerado, acrescentaria 13% ao PIB brasileiro. Sob meu ponto de vista, embora bastante relevante, um aspecto anterior seria necessário a esta discussão. As atividades realizadas para a manutenção da rotina da casa e os cuidados dedicados às pessoas (e não apenas aos filhos) precisam, primeiramente, serem considerados pela sociedade como trabalho.

Na sociedade capitalista e neoliberal, entende-se como trabalho prioritariamente a atividade que contribui com a cadeia produtiva e gera renda. A falta de um debate mais contundente na esfera pública sobre as atividades reprodutivas (também essenciais para manutenção do próprio sistema) contribui para a naturalização da ideia que o cuidado é uma atribuição essencialmente feminina, quase como uma virtude. Sob o manto do afeto, ou, ainda, sob a perspectiva de uma maior propensão para o cuidado, as atividades realizadas pelas mulheres são tidas como vocação, desígnio e até instinto.

Aprendemos e reproduzimos essa dimensão há séculos, com apoio da família, da mídia, da ciência, da religião e da política. Na conexão entre estes discursos, reproduzimos cultural e socialmente a noção que as mulheres são mais zelosas, afetivas, mais organizadas, mais abdicadas, mais aptas a realizar várias atividades ao mesmo tempo. Assim, sendo o cuidado tido como vocação e não como um trabalho, despolitizamos a questão e individualizamos a experiência da sobrecarga como algo que as mulheres não tem muito como escapar. A ideia de dupla jornada, em si, está associada diretamente às mulheres. Os textos e estudos que mencionam o termo estão sempre se referindo à realidade feminina. Conforme avança a participação das mulheres no mercado remunerado, ajustam-se os conceitos. Passamos a falar em tripla jornada e, mais recentemente, em jornada contínua.

Uma maneira bastante sutil e eficiente de fazer essa associação e reforçar o consentimento das mulheres às condições as quais estão submetidas se dá a partir da construção de uma imagem elogiosa. Sobrecarregadas, elas são chamadas de guerreiras, fortes, resistentes, corajosas. Nas comemorações do dia Internacional da Mulher, normalmente sobram exemplos na mídia e nos eventos institucionais com este sentido. Ainda que (felizmente) já estejamos passando do tempo em que a distribuição de flores silenciava as desigualdades, o debate sobre o tema na pauta midiática e política apresenta dados, mas não questiona o funcionamento do sistema patriarcal e capitalista.

Politizar a questão passa, antes de tudo, pelo reconhecimento das desigualdades de gênero como um problema social e não individual. Nenhuma mulher precisa encarnar que é guerreira, equilibrista, para conciliar demandas que não são somente suas, mas coletivas. A privatização do cuidado e a individualização do enfrentamento das dificuldades contribuem para a romantização da sobrecarga. Sob meu ponto de vista, uma (entre tantas) possibilidades de refletir sobre o Dia Internacional da Mulher está na volta do debate sobre a centralidade do trabalho, como nos movimentos iniciados no século XX. Considerando a complexidade das dimensões interseccionais que tornam a experiência de ser mulher singular (e ao mesmo tempo muito plural), precisamos reivindicar a relação que se estabelece entre as mais diversas dimensões do trabalho – desde o que gera renda para o sistema, até o que sustenta o bem estar das pessoas que dele fazem parte. Para tanto, é preciso falar abertamente sobre que o permanece como um interdito: cuidar demanda tempo, planejamento, dedicação e, embora possa estar atravessado pelo afeto, possa gerar satisfação e prazer, é, sobretudo, um trabalho. E todas as pessoas, sem exceção, estão aptas a realizá-lo. 

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por Milena Freire
Professora do departamento de Ciências da Comunicação da UFSM

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