Como foi que eu cheguei até aqui? Publicada em 16/10/2024 343 Visualizações
Eu pegava o ônibus com ela. Tão cedo da manhã, que seguia sendo noite. Para uma criança, mais cedo ainda. Eu ia dormindo até a parada, sonâmbula. Continuava dormindo com o sacolejo do ônibus e acordava só quando o sol me batia no rosto. Dessa paisagem eu lembro bem: campo dourado e a mesma tinta, rasgando as porteiras. Minha mãe convidava o ônibus todo a saudar: bem-vinda, aurora, dizia ela. Aquilo tinha um quê de hiponguismo, de poesia e outro tanto de rebeldia. Sacolejava o ônibus mais do que os buracos da estrada. Eu tinha um pouco de vergonha, achava um pouco de graça e, conforme o tempo foi passando, o tanto que era de admiração foi aumentando. Autêntica.
A professora Sonia, minha mãe, era autêntica. Naquele caminho que iniciava todos os dias às cinco e meia da manhã, eram ela e o sol que iam acordando o ônibus. A cada parada, outra criança subia. Havaianas remendada no pezinho frio e os cadernos muito bem armazenados em um saco de cristalçucar: ou de matéria, como os antigos chamavam. Ela sabia nome, sobrenome, filho de quem. Mas, na maioria das vezes, mandava uma "florzinha", ou qualquer outro diminutivo e tornava todo cumprimento, um carinho. Eu não entendia como a minha mãe tinha aquela energia e aquele bom humor tão cedo da manhã. Eu, que não era nenhuma adolescente chata (ainda), às seis da manhã e com seis anos, era calada mesmo. Ela já tava saudando o sol, os alunos, e eu recém acordando.
Muitas vezes, eu faltava a minha aula para ir com a minha mãe para a escola dela, no interior de Candelária. Não lembro muito bem os motivos, mas eu gostava. Gostava do cheiro da comida que as merendeiras faziam. Gostava de vê-la entrando em sala de aula. Do cheiro das folhas do mimeógrafo. Do caos na hora do recreio, criança correndo para todo lado, atropelo na fila da merenda e umas disputas mais acaloradas pela bola, que às vezes acabavam na sala da direção.
As colegas da minha mãe me perguntavam, você vai ser/quer ser/será professora, Juliana? Eu acho que respondia até com certa carinha de nojo, com a empáfia de uma criança de menos de dez: eu não. Porque eu quereria acordar todos os dias antes do sol nascer e dormir muito depois dele, preparando aula, corrigindo provas, fechando os intermináveis cadernos de chamada com capa cor de laranja e encapados com plástico grosso? Jamais. Durante alguns anos minha mãe se tornou diretora, daí piorou: prestação de contas, compras, uma matemática que ela, professora de português, não tinha, meu pai vinha ao seu socorro. Trabalhavam durante as noites, durante longos finais de semana. Deus me livre. E porque eu haveria de querer isso para mim?
É início dos anos 2000. Eu escolhia no cardápio das profissões o que seria o meu futuro. Menos medicina; menos ciências exatas, menos licenciaturas. Deixa eu ver aqui o que sobra… a área da comunicação sobreviveu aos meus pontos de corte. Meu olho e meu dedo correram até a publicidade: não sei muito bem o que é, mas até que me pareceu interessante. Publicitária. Com certeza, assim escapo da docência. 2003 e lá estou eu fazendo meu trabalho de conclusão de curso e me preparando para a prova de mestrado em linguística aplicada. Nem pensei o quanto aquela decisão me encaminharia para a profissão que teve a minha mãe. Um pouco sem pensar, mas mais forte do que eu: terminei o mestrado e já era professora substituta. Só esses dias, depois de quase vinte anos de docência na Universidade Federal de Santa Maria, me dei conta que durante um tempo eu fugi deste lugar. Você vai ser/quer ser/será professora, Juliana? Sou, quis ser, serei professora.
Ainda que o trabalho seja muito e o salário seja pouco; ainda que o ritmo frenético das demandas de cargos de gestão nos afaste do ensino e dos seus ritmos; ainda que a exigência de produção nos tire o brilho da pesquisa. É na sala de aula que eu respiro aliviada. É onde estou inteiramente presente, antídoto contra a ansiedade. Pés firmes no chão. Neste meu chão, onde recupero, todas as vezes, o brilho do meu olho. Capaz de me relembrar sempre do que vim fazer. Mas como foi que eu cheguei até aqui? Vim de ônibus, às seis da manhã, saudando os primeiros raios do sol, segurando firme na mão e no exemplo da minha mãe: de humanidade, de ternura, de afeto, de quem sabe que o papel da sala de aula é transformar vidas, possibilitar destinos inesperados, permitir que se cogite o incogitável. Nenhuma outra sala de aula me transformou tanto quanto aquela, que me tornou a professora que sou. E eu vim até aqui no sacolejo do ônibus, antes das seis da manhã, me vendo eu me tornar, pelo menos um pouquinho, da professora que foi minha mãe.
Sobre o(a) autor(a)
Por Juliana PetermannProfessora Associada do departamento de Ciências da Comunicação da UFSM