Enchente de 2024: uma lembrança dolorosa
Publicada em
23/04/2025
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"A enchente que atingiu o Estado foi resultado da combinação de eventos climáticos sem precedentes, exploração ambiental ilimitada e negligência das autoridades."
A enchente de 2024 deixou marcas profundas na sociedade gaúcha. Uma parcela significativa ainda vivencia as consequências e tenta se recuperar daqueles dias trágicos e angustiantes. A cada nova chuva forte, o temor toma conta. Alagamentos, quedas de árvores, deslizamentos, entupimento de bueiros, destelhamento se tornaram eventos frequentes e corriqueiros. As autoridades locais pouco têm feito em termos de resiliência climática e de reconstrução.
A devastação
Naquele maio de 2024, praticamente todo o estado do Rio Grande do Sul ficou embaixo d´água. Uma quantidade de chuva só vista semelhante no início do século XX. A destruição foi devastadora. A água com sua força e ferocidade buscava ocupar os lugares anteriormente seus e que foram tomados pelo homem sem pedir licença, desrespeitando o espaço da natureza. A enchente que atingiu o Estado foi resultado da combinação de eventos climáticos sem precedentes, exploração ambiental humana ilimitada e negligência das autoridades.
Casas foram levadas adiante. Plantações foram ceifadas deixando apenas a terra lavada ou debaixo d´água por várias semanas. Pessoas e animais sucumbiram às chuvas e aos vendavais. Ao lado da destruição ambiental, a enchente deixou perdas irreparáveis: cento e oitenta e três mortos e, mais vinte e sete desaparecidos. Em muitos locais não sobrou pedra sobre pedra. Cidades e lugarejos se transformaram em locais fantasma. Literalmente, ficaram de pernas para o ar como se ali tivesse passado um tsunami. Só escombros! Destruição! A maior catástrofe climática já vista no Estado.
Os prejuízos demonstram que as mudanças climáticas não são um problema para ser enfrentado no futuro, mas imediatamente. A ausência de uma visão preventiva leva as tragédias se tornarem ainda mais devastadoras. Passado praticamente um ano desse trágico episódio, a recuperação foi parcial, ainda há pontes destruídas e improvisadas, escombros obstruindo ruas, atingidos vivendo em abrigos, casas precarizadas. Gente que tenta recobrar a vida sem saber por onde começar.
Os sucessivos episódios climáticos, não apenas no Rio Grande do Sul, têm levado a população a desacreditar na ação das autoridades. Pesquisa publicada pelo Instituto Datafolha, em 2024, demonstrou que quase metade dos brasileiros (46%) avalia que as prefeituras estão fazendo muito pouco, ou quase nada, para enfrentar os efeitos da crise climática.
Soluções existem para minimizar os efeitos e evitar devastações. A ciência já provou que as soluções baseadas na natureza (SbN) proporcionam benefícios sociais, econômicos e ambientais. São medidas que tomam como referência a própria natureza. Na prática são telhados verdes, jardins de chuva, agricultura urbana e periurbana, parques, lagoas e restauração de vegetação em encostas e em margens de corpos hídricos, ou seja, mais resiliência e combate às mudanças climáticas. No entanto, a maioria das cidades gaúchas e brasileiras estão despreparadas para esse enfrentamento. Observa-se que as ações adotadas se restringem a reagir às tragédias, a chorar o leite derramado!
Os fenômenos climáticos
O aumento da temperatura do planeta tem tornado os eventos climáticos mais severos e mais frequentes. A crescente elevação da concentração dos gases de efeito estufa (GEEs), especialmente, gás carbônico, metano e óxidos de nitrogênio, somada aos efeitos do clima têm levado (e levarão), cada vez mais, a ocorrência de situações extremas idênticas ou até mais drásticas do que as vivenciadas em solo gaúcho.
O crescimento das taxas de GEEs na atmosfera é resultado direto das atividades humanas, especialmente, a queima de combustíveis fósseis. Esse fator, somado a participação, ainda que menor, dos fenômenos naturais, como El Niño, se constituem nos principais responsáveis pelas alterações climáticas. O controle da temperatura do planeta só se fará com a redução e a substituição por combustíveis alternativos. Apesar das evidências científicas incontestáveis, os países e as empresas maiores poluidoras continuam incentivando, explorando e queimando petróleo e carvão.
A eleição de Trump trouxe um fôlego ainda maior ao negacionismo climático. Não precisamos ir tão longe! O presidente Lula que iniciou o governo com discurso de reativação da pauta ambiental e climática insiste em explorar petróleo na Amazônia. O cientista Carlos Nobre afirma que o petróleo está mais para “Satanás do que para Deus”! Os combustíveis fósseis têm desequilibrado o sistema planetário nos colocando na rota do aquecimento global acelerado, acrescenta à sua afirmação. Rachel Carson nos traz uma importante reflexão: “O homem é parte da natureza e a sua guerra contra a natureza é, inevitavelmente, uma guerra contra si mesmo”.
Buscar alternativas renováveis e mais limpas é uma das saídas para reduzir a ocorrência e os efeitos dos eventos climáticos cada vez mais presentes e intensos. É preciso salvar o Acordo de Paris. O Acordo de Paris é um tratado internacional assinado em 2015, durante a COP 21. O objetivo desse protocolo mundial é combater as mudanças climáticas, restringindo o aumento da temperatura média global a 2 oC acima dos níveis pré-industriais. Já estamos superando 1,6 oC! Se a temperatura continuar subindo corremos o risco de alcançar o ponto de não retorno.
Os eventos climáticos no Brasil, segundo estudo desenvolvido pela Universidade Federal de Santa Catarina sob patrocínio da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul, dobraram nos últimos trinta anos. As projeções mais recentes do IPCC (Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas) reafirmam que enchentes e precipitações intensas resultam de múltiplas ações climáticas e influências humanas. Ainda há tempo para reverter, mas tem que ser agora! A transição energética irá garantir a nossa sobrevivência, para tanto é preciso pressionar os governos federal, estaduais e municipais, empresários, além dos países maiores poluidores do planeta para que virem a chave das mudanças climáticas.
Cenário atual no RS
O governador Leite e o prefeito Melo de Porto Alegre, uma das cidades mais atingidas pela enchente de maio do ano passado, negam a competência dos cientistas gaúchos indo buscar na Holanda receitas pré-fabricadas, desconsiderando as diferenças e peculiaridades das questões socioambientais locais.
A negação de que o episódio foi um evento provocado pelo homem devido à exploração ilimitada, mas sim por uma manifestação desmedida da natureza, tem levado ao adiamento de medidas de resiliência e de reconstrução. As repetições das tragédias, mesmo que em menores proporções, continuam acontecendo em solo gaúcho como evidenciado, no final de março de 2025, novamente em Eldorado do Sul e Porto Alegre, cidades grandemente atingidas no ano passado. O medo e a angústia tomam conta da população que ainda não se recuperou do trauma do evento de 2024, tampouco das perdas materiais, em meio ao acontecimento de novos eventos que contribuem para aumentar a descrença nas autoridades e na retomada da vida ao seu curso normal.
Não tem sido apenas a enchente que tem atingido o estado do Rio Grande do Sul, o verão foi escaldante, porém o calor extremo não merece a mesma atenção por parte das autoridades que os deslizamentos de terra e as inundações. Os cientistas preveem verões cada vez mais rigorosos somando-se às secas e à falta de água, inclusive para abastecimento.
Os eventos climáticos, sejam enchentes ou calor extremo, não atingem todos e todas da mesma forma. Populações mais vulneráveis que já enfrentam os maiores desafios sociais e econômicos e, também segregação, são as mais afetadas. Pretos e pardos são a maioria da população brasileira e são os que enfrentam os piores índices de saúde e de atendimentos médicos, além de apresentarem níveis mais altos de insegurança alimentar, dentre outros fatores. Iniquidades que refletem menores taxas de expectativa de vida e maior incidência de doenças crônicas que são fatores de risco para eventos extremos de calor. As políticas públicas necessitam contemplar ações de enfrentamento e não apenas medidas reativas quando normalmente acontece.
As cidades gaúchas e brasileiras continuam despreparadas, apesar de ter se passado, praticamente, um ano da maior tragédia climática do sul do país. Repetem-se os alagamentos, os destelhamentos, as quedas de vegetação, as secas, a elevação da temperatura à patamares extremos, porém, segue-se a desculpa: É a fúria da natureza! A natureza não se enfurece, apenas busca recobrar o equilíbrio quebrado pelo homem. “Na natureza não existem recompensas nem castigos. Existem consequências”. (Robert G. Ingersoll). Não podemos esquecer que na natureza tudo está interligado, conectado. Não há um planeta alternativo. Não há planeta B! Os eventos que têm ocorrido no Rio Grande do Sul, enchentes e secas, não são isolados. Todos guardam relação entre si. A nossa inércia tem custado vidas, sonhos, histórias.
Sobre o(a) autor(a)
Doutora em Engenharia. Professora aposentada do departamento de Química da UFSM