Dilemas da democracia SVG: calendario Publicada em 05/07/2023 SVG: views 6426 Visualizações

“Chegamos a estranhas conclusões neste mundo: dizemos que vivemos em sociedade, mas ao mesmo tempo vivemos vidas solitárias”.
Thomas More
 
Utopia 
 
Thomas More1, inventor da palavra “utopia”2 (em lugar nenhum), sonhou com a sociedade ideal, governada pelo amor cristão e a razão, na qual todos partilhariam com igualdade, casa, comida, escola, governo e filosofia. Morreu decapitado por ordem do rei Henrique VIII. 
 
Revolução Russa de 1917
 
A Revolução Russa de 1917 inscreveu o nome de Thomas More entre os dos seus inspiradores, na praça Vermelha. Atestava a genealogia longínqua das utopias do nosso tempo. “As utopias leninistas tomaram o caminho de lixo da história, o mundo se descobriu órfão de uma verdadeira alternativa ao medíocre status quo” (RICUPERO, 1998, p. 20). 
 
Maio de 1968 
 
Em 1968, os estudantes de Maio ousaram um sonho ainda mais utópico: “mudar a própria vida”. Eram pautas uniformes3. Um “idílico sonho primaveril”. “Amem-se uns aos outros”4

Contudo, este sonho de 68, na França, teria um destino inglório. O sopro de entusiasmo dos jovens franceses levaria Mitterrand ao poder em maio de 1981, num verdadeiro mar de rosas vermelhas. 
Na realidade, o movimento de 1968 “foi apenas um movimento de juventude sedenta de liberação sexual e novas maneiras de viver. Como, por definição, a juventude e o desejo de liberdade não sabem nem o que querem nem o que fazem, eles produziram o contrário do que declaravam, mas a verdade do que a perseguiam: a renovação do capitalismo e a destruição de todas as estruturas, familiares, escolares ou outras, que se opunham ao reino ilimitado do mercado, penetrando cada mais fundo na espinha e no coração dos indivíduos” (RANCIÈRE, 2014, p. 112)

Jornadas de junho de 2013 

No Brasil, as jornadas de junho de 2013 criaram uma “espécie de Quasímodo, o trágico Corcunda de Notre Dame de Victor Hugo”. Pautas difusas. Bandeiras diversas. Grupos e ideologias distintas. “O gigante acordou”5.

A demanda social de junho de 2013 era ambivalente: reivindicações de mais justiça, mais segurança, melhor saúde, melhor educação, melhor transporte público, porém, havia o desejo de que as mudanças fossem imediatas sem levar em conta as restrições da vida em sociedade, que é marcada por muitas resistências à mudança. 

Pois bem, milhares de filósofos, sociólogos, cientistas políticos, jornalistas, escritores já forneceram a resposta ou possíveis respostas em livros e mais livros, programas e mais programas de televisão sobre as manifestações de junho de 2013. 

No Portal G1: “há uma década, um movimento iniciado por um grupo de jovens insatisfeitos com o aumento da passagem de ônibus fez o Brasil explodir em protestos. A insatisfação deixou cicatrizes e ainda causa consequências na política nacional”. 

Vale destacar que a insatisfação da sociedade brasileira não era apenas contra o aumento do transporte público, no entanto, um descontentamento com a classe política, corrupção e os problemas sistemáticos na saúde e educação. 

No dia 20 de junho de 2013, mais de 1 milhão de pessoas compareceram aos novos protestos em 388 cidades do Brasil. 

No dia 21 de junho, a presidente Dilma Rousseff fez um pronunciamento prometendo fazer um pacto com governadores e prefeitos com o objetivo de melhorar as áreas de transporte, educação e saúde. 
O “terremoto político de 2013” mudou o país para sempre. “Vieram, ano após ano, um descontentamento generalizado com a classe política, a Operação Lava Jato, o impeachment de Dilma, a projeção nacional de Jair Bolsonaro (e do bolsonarismo como movimento político), a polarização e o fortalecimento da extrema direita no Brasil, entre outros aspectos” (G1, 2023). 

Na mesma linha do G1, o cientista político Pablo Ortellado pondera: “junho de 2013 despertou uma inquietação social que ainda não acabou, que ainda não se assentou”. 
A jornalista Andréa Sadi avalia “que o candidato que melhor soube aproveitar aquele momento surfou naquela onda que foi Bolsonaro, acho que acabou desaguando em Bolsonaro, que era um político com 30 anos de Câmara (dos deputados)”. 

Ainda mais, para a jornalista Natuza Nery: “uma parte da política conseguiu ler aqueles ventos de mudanças, a esquerda não tinha mais a primazia das ruas, e a direita tomava conta dessas ruas, criava-se ali um ambiente muito, muito contrário à política tradicional (...) junho de 2013 foi um marco na História do Brasil e um marco na política brasileira”. 

O que podemos notar a partir do fenômeno de 2013 que desencadeou uma série de eventos no Brasil é que uma boa parcela da população vê a democracia como um reino de desejos ilimitados dos indivíduos. “É uma democracia dependente dos discursos de sedução dos líderes que se apresentam como salvadores” (CHARAUDEAU, 2016, p. 176). Embriagados pela “ordem do desejável”, em nome de interesses imediatos, corporativistas, os “candidatos de protesto”, desde então, ganham mais votos que os “candidatos tradicionais”.  

É inegável que a democracia brasileira está nua. 

O 08 de janeiro (2023) reforçou o paradoxo do dilema democrático de junho de 2013: “o que provoca a crise do governo democrático nada mais é que a intensidade da vida democrática” (RANCIÈRE, 2014, p. 16). 
No fim, passamos de uma desconfiança democrática para uma tirania populista.

Assim considero que a “boa democracia” é a forma de governo e de vida social capaz de controlar o duplo excesso de atividade coletiva (permeada pela tirania da opinião e o desejo fantasmático do “que venha logo, imediatamente”) ou de retração individual inerente à vida democrática. 

Este é o grande desafio para amadurecimento da nossa inacabada e imperfeita democracia brasileira6. Caros leitores, o que vocês acham7?  

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Notas:

1) More foi considerado por Chersterton: “o maior dos ingleses, ou ao menos a maior personalidade da história da Inglaterra.
2) Palavra inventada a partir do grego e significando em lugar nenhum.
3) Os eventos de Maio de 1968 partiram de demandas estudantis, exigindo reformas no sistema educacional francês. O movimento ganhou força. Alcançou uma greve geral de trabalhadores que balançou o país e o governo de Charles de Gaulle.
4) Slogan escrito nos muros e cartazes espalhados por Paris.
5) Frase exaustivamente dita e repetida nas manifestações de 2013. Dizem que foi o “despertar de uma nova consciência política e social da sociedade brasileira”.
6) Uma alternativa é a democracia participativa que se baseia num modo de consulta periódica do povo que não poderia bloquear inconsideradamente toda ação governamental, mas expressar-se, fazer conhecer suas necessidades e dar sua opinião sobre as políticas implementadas através de uma organização cidadã que não seja instrumentalizada nem pelos corpos intermediários, nem pela militância dos partidos políticos.
7) Nós não cansamos de procurar a ilha da utopia. O século XX assistiu uma sucessão caleidoscópica de candidatos a abrigar a ilha dos sonhos, logo descartados por uma “utopia melhor”.

Referências

CHARADEAU, Patrick. A conquista da opinião pública: como o discurso manipula as escolhas políticas. Trad. Angela M. S. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2016. 

RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

RICUPERO, Rubens. O ponto ótimo da crise. Rio de Janeiro: Revan, 1998.

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por José Renato Ferraz da Silveira
Professor do departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSM

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