Produtivismo e adoecimento emocional na vida acadêmica: um tema invisível SVG: calendario Publicada em 15/05/2024 SVG: views 571 Visualizações

Nosso fascínio pelos números e o modo como a estatística foi se tornando um instrumento para a constituição da ‘verdade’ não são recentes. Sob o impulso das bases empiricistas da ciência moderna disseminou-se a ideia de que a realidade deve ser apreendida através de dados quantitativos e, desde o século XIX, as estatísticas tornaram-se cada vez mais importantes como tecnologia de governança. E o que isso tem a ver com produtivismo e adoecimento na academia?

Ocorre que as avaliações de produtividade às quais estão sujeitos os programas de pós-graduação e seus membros baseiam-se em uma lógica quantitativa que esconde e impõe uma hierarquia de valores agindo nos sujeitos, provocando a internalização da regra e uma consequente autorregulação. Os números expressos nos indicadores de produtividade objetivam a “verdade” da competência e do comprometimento. Será?

Vemos a vida acadêmica ser invadida pela lógica gerencial. Exigências de trabalho exponenciadas, precarização e intensificação do trabalho docente, competividade e produtivismo. Correndo para dar conta de atribuições de ensino, extensão, pesquisa e gestão docentes enfrentam com muita frequencia o transbordamento contínuo dessas atribuições para a vida familiar. É recorrente o relato de férias, feriados e finais de semana ocupados pelo trabalho acadêmico. E assim, correndo, acelerados e cansados vamos buscando “dar conta de tudo”, como também lutando pelo desejado atributo de “produtivo”. O reverso dessa moeda é o adoecimento.

Em pesquisa realizada por nós recentemente, docentes relatam vários momentos de adoecimento em que, após situações de grande estresse e dedicação ao trabalho, sua saúde cobrou uma “fatura”. O produtivismo e exigência de desempenho geram sofrimento e adoecimento sendo os docentes acometidos de transtornos psicoemocionais, tais como depressão e ansiedade, e afecções osteomusculares. A estabilidade psíquica cedeu lugar à competição e à luta cotidiana por reconhecimento. Há ainda os sintomas “menos visíveis” que incluem estresse, alterações no sono, pressão alta, gripes repetidas, entre dezenas de outras comorbidades. É certo que esse quadro não se restringe à vida acadêmico-científica, contudo é sobre ela que, nesse momento, desejamos lançar luz.

Outros resultados de pesquisas evidenciaram que o número de professores do ensino superior que faz uso constante de medicamentos e buscou ajuda médica, psicológica ou sofreu desconfortos físicos ou psíquicos nunca foram inferiores a 40%, chegando a atingir 80%. Curiosamente, apesar dos muitos relatos de adoecimento, constatamos em nossa pesquisa a resistência em recorrer a licenças médicas. Investigando as razões dessa resistência nos deparamos com argumentos como “a doença não é bem-vista no trabalho” já que os valores nesse ambiente são construídos com foco na produtividade, o que explica, em parte, entre nossas entrevistadas, a inexistência de afastamento e faltas para tratamento destes problemas de saúde.

Vemos a constituição de uma moralidade, a interiorização dos valores culturais das instituições e organizações. Sem a adesão e internalização dessa moralidade, que garante a colaboração efetiva a partir do respeito inconteste às regras e valores da produção, os efeitos perversos do produtivismo seriam mais visíveis. Outro fator que contribui para a invisibilidade do adoecimento dessas docentes é a solidariedade entre as mulheres no meio acadêmico, colegas podem substituir a doente por alguns dias quando necessário.

O produtivismo, aliado da lógica gerencial que impregna as universidades públicas brasileiras, asfixia a criatividade científica e mina o prazer da atividade intelectual e da produção do conhecimento. Produtivismo e produção acadêmica são fatos bem distintos, não podemos confundi-los. A produção acadêmico-científica é primordial. A ciência avança e seus frutos devem ser visibilizados, especialmente, em tempos como esses em que fervilham correntes obscurantistas, anticientíficas e anti-intelectualistas.

Já o produtivismo – felizmente já começamos a ouvir algumas vozes críticas do mesmo – não é nem necessário nem desejável, seja porque aprisiona as estruturas organizacionais e os agentes em uma lógica quantitativista estéril (“quantos artigos ela publicou?”, “ah, ele é muito produtivo! Vejam quantos artigos publicou!”) que premia o narcisismo ingênuo e a competitividade corrosiva das relações profissionais, seja porque tem efeitos patologizantes.

 

  1. Este artigo baseia-se em pesquisa qualitativa em que foram entrevistados/as 22 professores/as de programas de pós-graduação de duas universidades federais no RS;
  2. Zulmira Newlands Borges é Doutora em Antropologia Social e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciênciais Sociais (PPGCS/UFSM); zulmiraborges@gmail.com
  3. Janaína Xavier do Nascimento é Doutora em Sociologia Política. Professora do Departamento de Ciências Sociais da UFSM; janainaxn@gmail.com

Sobre os(as) autores(as)

SVG: autor Por 1) Zulmira Newlands Borges e 2) Janaina Nascimento
1) Professora do departamento de Ciências Sociais da UFSM e 2) Professora do departamento de Ciências Sociais da UFSM