Impunidade em nome da “Reconciliação Nacional”: A Democracia em Risco SVG: calendario Publicada em 16/04/2025 SVG: views 461 Visualizações

Em 1823, um ano após a independência do país, D. Pedro I fechou a Assembleia Constituinte, adotou políticas antiliberais, perseguiu oposicionistas e censurou a imprensa. Sobretudo, garantiu as bases econômicas e sociais em que se assentava o Império e assim manteve o apoio das elites escravocratas. A proclamação (e não conquista) da República em 1889 foi oriunda de um movimento militar golpista, uma quartelada, e como tal não contou com apoios do conjunto da sociedade. O povo assumiu uma postura indiferente frente às articulações que encerravam a monarquia, eram os “bestializados”, definição à época feita pelo jornalista e depois ministro no governo de Deodoro da Fonseca (1889-1891), Aristides Lobo.

A iniciativa e o protagonismo da ação foram a de uma parcela pequena, mas significativamente influente e decisiva (uma aliança entre as oligarquias regionais, homens brancos, militares, letrados e de posses) que debelou posteriormente, com violenta repressão, revoltas liberais e insurreições populares como Canudos (1896-1897) e Contestado (1912-1916).

Porém, e principalmente, com esse ato inaugural da República brasileira, foi definida a hegemonia da oficialidade militar nas decisões políticas fundamentais. Os militares assumiram a posição central do cenário político. Abraçaram a ideia de ser um Poder Moderador. E nunca mais desistiram disso. E essas intervenções que seguiram uma constante, à margem da lei, não resultaram em consequências dada a impunidade, travestida por vezes de anistia, e que se revelaram a fonte das maiores ameaças à democracia no país.

Essa característica se soma a outras tantas, tais como o racismo, o patriarcalismo, o sexismo, a violência, o patrimonialismo e o abuso de poder que acabaram por criar e alimentar uma cultura de submissão e domínio, inserindo o país em uma permanente e longa tradição autoritária e conservadora.

Segundo relatório da Polícia Federal entregue ao Supremo Tribunal Federal (STF) e divulgado em 21 de novembro de 2024, o Brasil esteve na iminência de sofrer mais um golpe de Estado em 2022. Havia um plano detalhado para a tomada do poder que previa inclusive o assassinato do presidente Luís Inácio Lula da Silva, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes do STF na chamada “Operação Punhal Verde e Amarelo”.

As revelações do plano golpista se somam a outros eventos de ataque à democracia protagonizados por apoiadores de Jair Bolsonaro (inconformados com a vitória de Lula nas eleições de 2022): bloqueios de estradas e rodovias, acampamentos em frente a quartéis, tentativa de explosão de artefato no aeroporto em Brasília e os atos de vandalismo e depredações também na capital federal no dia da diplomação da chapa Lula-Alckmin. A justificativa não era somente a contestação dos resultados das urnas, mas o desejo de uma intervenção militar com o fechamento do Congresso, limitação dos poderes do Supremo Tribunal Federal e a recondução de Jair Bolsonaro à presidência. O ápice de tais movimentos se deu em 8 de janeiro de 2023 em Brasília.

A multidão de apoiadores de Jair Bolsonaro convocados pelas redes sociais (financiados por terceiros), alegando uma suposta fraude nas urnas eletrônicas (sem apresentar nenhum indício ou prova), invadiram, depredaram, danificaram e saquearam os prédios dos três poderes (Palácio do Planalto, sede do poder executivo; o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, a maior instância jurídica do país) e destruíram parte importante do acervo histórico e do patrimônio cultural do Estado brasileiro. A ação contou com a omissão, a inoperância e a permissividade de parte das forças de segurança e de defesa de Brasília. Era uma evidente tentativa de instaurar um clima de caos e desordem que levasse a uma intervenção da oficialidade militar (supostamente conforme o artigo 142 da Constituição).

Esses eventos seguiram o histórico de golpes, tentativas de insurreições e intervenções na política: o tenentismo, movimento de jovens oficiais do Exército Brasileiro no início da década de 1920 com o objetivo de derrubar o presidente Artur Bernardes e implementar os princípios liberais da Constituição de 1891; a instauração do Estado Novo em 1937 e a deposição de Getúlio Vargas em 1945; o “golpe preventivo” do general Henrique Teixeira Lott com mobilização de tropas e deposição do presidente interino Carlos Luz para garantir a posse de Juscelino Kubitschek em 1956; a chamada “Revolta do Aragarças” em 1959, quando oficiais militares do Exército e Aeronáutica sequestraram aviões (o primeiro na história do Brasil) em um movimento para destituir o presidente Juscelino Kubitschek; o impedimento da posse de João Goulart quando da renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961; o golpe civil-militar de 1964.

Há ainda a tentativa de levante durante o regime civil-militar em 1977 coordenada pelo general Sylvio Frota, ministro do Exército, que teve suas aspirações frustradas (e do grupo que o apoiava) quer da chegada à presidência da República, quer de contrariedade como o processo de “abertura” política proposto no governo do presidente Ernesto Geisel. A convocação golpista ao Alto Comando não encontrou apoios suficientes e Frota acabou demitido. Contudo, o histórico de golpes está diretamente ligado à estruturação política do Brasil. Não há grave crise institucional no país ou golpes de Estados (exitosos ou fracassados) sem a participação da oficialidade militar.

O pensamento autoritário também se revelou e se revela como solução em momentos de crises ou impasses, sobretudo naquela pulsão autoritária exposta nas microrrelações de poder estabelecidas na sociedade, mesmo que esse poder esteja, como revelou Lago, “dentro de uma situação subalternizada”. O autoritarismo se revela, para além das instituições políticas e estruturas de segurança no cotidiano dos indivíduos, e está distribuído nas interações sociais.

Por isso mesmo, é histórica e inédita a decisão unânime, em 26 de março de 2025, da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) de tornar réus pelos crimes de golpe de Estado e tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito o ex-presidente Jair Bolsonaro, o ex-diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem, o ex-comandante da Marinha Almir Garnier, o ex-diretor da Polícia Federal Anderson Torres, o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Augusto Heleno, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro Mauro Cid (delator do caso), o ex-ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, e o general Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e ex-ministro da Defesa.

Tal decisão se soma aos julgamentos dos responsáveis pelo ato de terrorismo e tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023 como uma oportunidade de não negociar a justiça e a própria democracia em nome de uma suposta governabilidade e de um devaneio de “conciliação nacional” (jargão recorrente da ditadura: a “pacificação da família brasileira”).

A princípio, não se repetirá uma Lei da Anistia nos moldes de 1979 (Lei nº 6.683, 28 de agosto). Essa que foi a base da transição, fruto de ampla conciliação, mas que impôs a “sacralização" de uma mútua anistia que gerou impunidade, injustiça e a ausência de gestão pública de políticas de memórias. Não entraram em questão comissões especiais de inquérito nem mesmo foram incentivados processos de pesquisa e preservação de documentação. A memorialização e acervos, bem como programas e políticas de reparação às vítimas e seus familiares com a responsabilização legal dos perpetradores, ainda estão em debate mesmo passados 46 anos da promulgação da lei.

Não sendo tratado adequadamente o “entulho autoritário”, nem pedagógica e nem civicamente, inexiste a ideia de uma cultura e uma identidade democrática, de cidadania e de direitos humanos. Sintomático: no Brasil não há marcos de ruptura, não há o dia da democracia. A “desmemória” e a condução da transição de ordenamentos possibilitaram a construção de pontes entre o passado autoritário e o presente, mantendo um “patrimônio ditatorial” intacto.

Sem uma memória pública dos períodos explicitamente autoritários e de salvaguardas institucionais, em uma conjuntura propícia (após 2013), práticas extremadas antidemocráticas se revelaram com tamanha relevância e abrangência que assumiram o protagonismo político, colocando em risco as frágeis conquistas democráticas.

Os atuais levantes conservadores, com a relativização do regime democrático com críticas às instituições políticas e a adoção de um discurso populista autoritário não são exclusividades do Brasil (proliferam em países como Estados Unidos, Hungria, Polônia, Turquia, Argentina e Filipinas), mas aqui assumem outras características e consequências em razão das particularidades da construção político-social do país e, especificamente, da reestruturação democrática pós-1985. São componentes de uma conjuntura política radicalizada, mas, fundamental perceber, mantém relação com uma visão enraizada que normaliza o histórico de rupturas na ordem democrática e banaliza a violação dos direitos humanos em nosso cotidiano.

O dilema clássico, já abordado por Isaiah Berlin e Karl Popper, parece se afirmar no Brasil atual enquanto alguns bradam por anistia: a democracia deve acolher os não democráticos? Devemos tolerar os intolerantes e a intolerância?