Ditadura civil-militar brasileira usou tortura como política de Estado
Publicada em
30/06/25
Atualizada em
01/07/25 09h00m
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Constatação foi feita durante evento do grupo Cálice, em parceria com a Sedufsm, na última sexta, 27

Engana-se quem acha que a prática da tortura na ditadura civil-militar começou com a promulgação do Ato Constitucional (AI) 5, conhecido por endurecer ainda mais as leis do regime. As violências extremas a que opositoras e opositores eram submetidos começaram tão logo os militares tomaram o poder, em 1964.
Também é um equívoco dizer que a ditadura prendeu e torturou apenas integrantes da chamada extrema esquerda, que propunham, por exemplo, a luta armada. A mão pesada do Estado brasileiro feriu, maltratou e subjugou toda e qualquer pessoa que se colocasse contrária ao regime, independentemente do campo político em que se situava – vide Rubens Paiva, deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro, primeiramente cassado e posteriormente torturado e morto no Departamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) da Tijuca, no Rio de Janeiro.
Esses foram alguns apontamentos trazidos no debate promovido pelo grupo Cálice na última sexta-feira, 27, no auditório Suze Scalcon da Sedufsm. O tema era “A prática da tortura durante a Ditadura Civil-Militar” e, para contribuir com a discussão, estiveram presentes alunos e alunas participantes do Cálice, que é o Grupo de Estudos Sobre a Ditadura Civil Militar e Suas Conexões, além dos professores Diorge Konrad, do departamento de História, e Gláucia Konrad, do departamento de Arquivologia da UFSM, coordenadores do grupo. Como uma indicação da Sedufsm, o professor Leonardo Botega, que leciona História no Colégio Politécnico, também estava presente, além da professora Belkis Bandeira, diretora da seção sindical. “Esse é um tema contundente e muito importante. Que possamos lembrar para que não se repita jamais”, comentou a dirigente.
Fábio Lopes, integrante do Cálice, explicou que o evento da sexta-feira faz parte de um projeto de extensão nomeado “Como beber dessa bebida amarga?”, em que as e os integrantes do grupo visitam escolas, sindicatos e outras organizações para levar discussões sobre o período da ditadura e a importância da memória. A primeira visita do projeto ocorreu no Colégio Estadual Padre Romulo Zanchi, em Santa Maria, onde, a pretexto do Dia dos Namorados, o grupo propôs a discussão sobre como a ditadura interrompeu os laços de quem se amava.
Na Sedufsm, segunda visita do projeto, o tema foi a prática da tortura pois no dia 26 de junho lembrou-se o Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura. Depois, o grupo visitará sindicatos como Sinprosm (professores/as municipais) e Cpers (professores/as estaduais).
Diorge Konrad lembrou que a tortura é um crime imprescritível e inafiançável. Vitor Trajano, integrante do Cálice, explicou que a tortura consiste em atos de violência extrema, física e psicológica. Comumente, a ditadura empregava ambos contra seus opositores. Diferentemente do que alguns setores dizem, casos de tortura não eram excessos durante a ditadura. Eram a norma. A prática de tortura era institucionalizada.
Trajano comenta que a tortura empregada pela ditadura brasileira estava assentada sob três pilares: humilhação, execução da dor e quebra da sanidade mental. A humilhação e a violência psicológica eram ainda maiores quando empregadas contra as vítimas mulheres, que eram colocadas nuas e recebiam ameaças de estupro – quando não eram efetivamente estupradas.
Outro mito é de que a tortura só acontecia nos grandes centros urbanos. Trajano diz que as atrocidades eram cometidas em todo o Brasil, de forma que a criação do DOI-CODI, em 1969, teve por objetivo coordenar nacionalmente as ações de tortura. O Rio Grande do Sul, inclusive, foi apontado como o estado com maior número de centros de tortura e violações de direitos humanos durante a ditadura.
Amanda Bueno, também integrante do Cálice, disse que a tortura era usada pela ditadura especialmente para conseguir informações e derrubar adversários políticos.
Cultura do medo
Paula Fontana, estudante que integra o Cálice, disse, no debate da sexta-feira, que a ditadura civil-militar instituiu uma cultura do medo nas pessoas, que passaram a se autocensurar sem nem precisar da atuação do Estado. “Você está tão traumatizado que se policia o tempo todo. Você não se sente seguro nem dentro da sua casa. A cultura do medo também afeta quem teve de fugir para outro país, ou seja, não se limita a fronteiras”, explica Paula, referindo-se a exiladas e exilados políticos que, embora já tivessem deixado as terras brasileiras, seguiam sentindo pavor ou mesmo eram capturados por governos internacionais aliados ao regime ditatorial brasileiro.
Outra ponderação trazida pela estudante é a respeito do termo ditadura “civil-militar”. O Cálice, comenta ela, defende essa designação por entender que não foram só os militares os responsáveis pela ditadura se sustentar por tanto tempo e fazer tantas vítimas. Muitos civis também atuaram em conivência com as Forças Armadas, inclusive dentro das universidades.
Auditório da Sedufsm é lugar de memória
Diorge Konrad, docente do departamento de História da UFSM, coordenador do grupo Cálice e ex-presidente da Sedufsm, lembrou que o auditório Suze Scalcon da seção sindical já abrigou diversos eventos referentes ao período da ditadura civil-militar. Passeando pela parede direita do auditório, em que dezenas de quadros ilustram as mais de 80 edições do projeto ‘Cultura na Sedufsm’, ele apontou alguns: a 65ª edição, que apresentou o filme “Que bom te ver viva”, dirigido por Lúcia Murat; a exibição do documentário “Vlado, 30 anos depois”, de João Batista de Andrade, na 37ª edição; e a veiculação do documentário “Cidadão Boilesen”, de Chaim Litewski, na 42ª edição do Cultura.
Konrad mostrou, ainda, livros escritos por militantes santa-marienses ou gaúchos a respeito do período. Caso do “Tempo de Cárcere”, de Eloy Martins, torturado no Estado Novo de Getúlio Vargas e também na ditadura civil-militar; ou do “Guerra é guerra, dizia o torturador”, de Índio Vargas.
O coordenador do Cálice ponderou que, para além de civil – porque contou com a ajuda de civis -, a ditadura militar brasileira também foi empresarial, pois financiada por grandes empresas, a exemplo da Ultragaz.
Comissão da Verdade – Konrad sugere que as entidades representativas dos segmentos da UFSM provoquem a gestão da universidade para que retome o trabalho da Comissão da Verdade da UFSM, que está paralisado. Há, na UFSM, relatos de estudantes e professores perseguidos pela ditadura. O comandante da tortura do Regimento Mallet, diz o docente, foi o primeiro integrante da Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), órgão criado pela ditadura para vigiar politicamente a comunidade universitária.
No debate da sexta-feira, inclusive, esteve presente o professor aposentado e fotógrafo amador, Dartanhan Figueiredo, que depôs junto à Comissão da Verdade da UFSM pois foi vítima de tortura psicológica praticada por militares.
O papel da memória
Leonardo Botega, professor de História do Colégio Politécnico da UFSM, defendeu que a melhor forma de combate ao negacionismo é preservar a memória e deixar que as fontes, testemunhas das atrocidades promovidas pelos militares, falem. Nesse sentido, ele leu um trecho do livro “Ninguém pode se calar”, do jornalista Pinheiro Salles, em que o autor narra com detalhes a tortura que sofreu e que o deixou sem caminhar por alguns meses.
Gláucia Konrad, docente do departamento de Arquivologia da UFSM e coordenadora do Cálice, alertou que muitas fontes relacionadas à ditadura vêm sumindo do Arquivo Nacional, sendo cada vez mais importantes trabalhos e pesquisas sobre esse período. “É momento de disputa. Se negam a ditadura, negam a tortura e a história”.
Texto e fotos: Bruna Homrich
Assessoria de Imprensa da Sedufsm
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