Invenções e apropriações do Bicentenário da Independência do Brasil Publicada em 21/09/2022 3080 Visualizações
E foi comemorado em verde e amarelo o bicentenário da Independência do Brasil! A maior data cívica do país foi exaltada pela população brasileira em espontâneas manifestações de cidadania e patriotismo em sete de setembro de 2022 viabilizadas por ações públicas de recuperação da memória e da história... A história do processo que levou o país a se emancipar de Portugal foi relembrada e rediscutida em amplos e diversos espaços, o patrimônio material edificado em nome da soberania da nação foi revisitado, os desfiles cívicos louvaram a construção da nação e exaltaram as personagens do processo... Assim a rememoração do bicentenário colocou a história do Brasil no centro das discussões, criou mecanismos de problematização das versões do processo e renovou o sentimento de pertencimento dos brasileiros como nação...
Foi?
E o que restou dos eventos que deveriam comemorar o bicentenário da independência do Brasil no último sete de setembro para além da apropriação da data e dos símbolos nacionais pelo governo e por uma parcela da população? O que restou para além do grotesco das manifestações presidenciais, das carreatas/motociatas e dos comícios marcados pelos discursos de ódio, da associação entre uma versão particular/partidária de deus e de pátria e da exibição, de gosto duvidoso, do coração de D. Pedro I? Onde o povo, os mais pobres e desvalidos foram chamados a festejar tal data ou, mais complexo ainda, conhecer as razões da celebração de tal data?
Dentre as várias possibilidades de leitura do sete de setembro, o governo optou pela não-história, pela caricatura de um nacionalismo ridicularizante, pelo expurgo da história e pela transformação de um evento nacional-cívico em uma plataforma de campanha com bases conservadoras, retrógradas, violentas, preconceituosas e, na maior parte, de inspiração autoritária.
Mesmo a memória que se pretendeu preservar não foi do processo da independência, mas sim a de uma campanha eleitoral, nem se exaltou nem se criticou, nem se glorificou um acontecimento memorável e de edificante lembrança, nem se desmontaram as versões e invenções pela e para as elites do país.
Chegamos à efeméride da independência com um histórico de celebrações e manifestações nacionalistas e de ufanismo pelo país embalados por uma, ou algumas visões romantizadas, que revelam o pouco que conhecemos acerca do passado que pretendemos exaltar. Ou melhor, que revelam que a exaltação é de figuras do presente. O passado só entra em pauta quando utilizado por um campo de interesses ideológicos.
Tais elaborações, invenções e fabulações recriando os eventos da independência do país já possuem um histórico que revelam muito mais como a data é instrumentalizada e serve mais a determinados interesses do que propriamente uma exaltação da pátria livre. Podemos localizar essa falsificação da história desde o icônico quadro de Pedro Américo de Figueiredo Mello entregue em 1888 (pintado em Florença, encomendado por D. Pedro II e marca maior de uma representação idealizada) que materializou uma forma de narrar o passado que passou a ser a tradição e, como toda tradição, uma invenção.
D. Pedro II elaborou as comemorações do cinquentenário da independência em 1872 com a inauguração de uma estátua do patrono da independência, José Bonifácio. A fantástica Exposição Internacional da Independência marcou as comemorações do centenário da independência em 1922, no Rio de Janeiro, no governo do então presidente Arthur Bernardes, no momento em que o país vivia sob estado de sítio. Entre outras questões foi recuperado o esquecido Hino da Independência com letra baseada em poema de Evaristo da Veiga (de 1822 e de pouco uso atualmente), com melodia inicial composta por Marcos Portugal e depois foi musicado pelo próprio D. Pedro I.
A apropriação e direcionamento dos festejos nos 150 anos em 1972 pelo governo civil-militar (na gestão do ditador Emílio Garrastazu Médici) foi marcadamente nacionalista, incentivada principalmente pelo então Ministério da Educação e Cultura, que promoveu um conjunto de obras e eventos que abordavam o processo da Independência. Foi na programação das comemorações que ocorreu o translado do corpo de D. Pedro I, que desfilou por vários estados sendo enterrado em São Paulo na cripta do monumento do Ipiranga (bom lembrar que o coração ficou em Portugal, este que agora passeou grotescamente pelo Brasil!).
Em meio à tortura, censura e endividamento do país, o ufanismo da Brasil tricampeão de futebol, da maior rodovia do mundo (a inacabada Transamazônica) e do milagre econômico, as comemorações tiveram um impulso na forma de divulgação de uma narrativa nacionalista e acrítica da história, mesmo que laudatória em torno de figuras como D. Pedro, José Bonifácio e Imperatriz Leopoldina (não na figura da participação da mulher, mas como exemplo de mãe zelosa).
As representações e narrativas do processo que culminou na independência do Brasil e sobretudo, as questões envolvendo a formação da nacionalidade e da identidade nacional, tiveram com o passar dos anos construções e reconstruções, apropriações e apagamentos, exaltação da nação e minimização de segmentos sociais.
A representação da independência, a imagem da nação e os agentes envolvidos estão diretamente ligados aos embates no campo da política e revelam o terreno de disputas envolvendo a memória e a história com implicações diretas nos usos, abusos e falsificações do passado com repercussões políticas, imaginárias e concretas.
Pouco se aborda o fato de o processo da independência não ter sido pacífico como se alardeou (como não mencionar a Revolução Pernambucana de 1817?) e que acaba, ao ser reproduzido contemporaneamente, amplificando a leitura equivocada da concepção do homem cordial, avesso à violência e dado a conciliações no Brasil.
Pouco se trata do fato de que a Independência não foi fruto de ícones iluminados, heróis nacionalistas que atuaram individualmente em defesa dos interesses coletivos dos “brasileiros” (noção que inexistia até porque a sociedade excluía indígenas, negros, mulheres e pobres), não se fala em Joana Angélica, em Maria Quitéria, em Maria Felipa. E, se ignora que a independência tenha ocorrido sem ter alterado em nada a estrutura social do país que seguiu sendo uma monarquia, escravocrata e dominada pelas elites econômicas. Diga-se, foi esse consenso entre as elites, a manutenção da mão de obra escrava como base da produção e da estrutura social, que garantiu o apoio irrestrito à independência e a não constituição de uma ou várias repúblicas.
Dado o desprezo institucional pela História enquanto campo da ciência e de área de formação essencial no processo ensino-aprendizagem nas escolas, pouco se problematizou sobre o sete de setembro. Basta lembrar que desde 2018 a história perdeu seu lugar como disciplina na Base Nacional Comum Curricular e que desde 2019 o Conselho Nacional de Educação diminuiu a carga horária dos conteúdos específicos em favor de genéricos nos cursos de formação de professores.
Não é de estranhar, portanto, a distância entre o conhecimento produzido na academia e a sociedade. Não é de se estranhar o espetáculo de horror que ocorreu no último sete de setembro. Contudo, isso não impede a relação da sociedade com o passado, pois o trato deste não é exclusividade de historiadores. A sociedade possui autonomia nos saberes, nas representações, nas ideias e nas memórias acerca do passado. Quer nas relações familiares, escolares, nos mercados editoriais e midiáticos, nas redes sociais, festividades cívicas e disputas políticas, há sempre uma visão do passado, há sempre algo a lembrar, há sempre fatos e versões a selecionar, há sempre formas de narrar e há sempre a reinvenção do passado.
Necessário para uma nação ou para a construção do sentimento de nacionalidade essa instituição de um imaginário coletivo, de um patrimônio a ser preservado, de uma história a ser construída com seus tempos de rememorar e de problematizar os apagamentos e os invisibilizados, ressignificando a história através da análise e da apropriação crítica das narrativas do passado.
Comemorar a independência do Brasil, lançando olhares para mulheres, negros, índios, pobres, para as lutas e resistências, está muito distante dos espetáculos presenciados neste sete de setembro, os quais mais segregam, mais alimentam preconceitos e estimulam o nacionalismo em sua versão mais nefasta e perigosa, aquela que baliza sentimentos autoritários e totalitários, que exala ódio e ignorância.
Sobre o(a) autor(a)
Por Gilvan Veiga DockhornProfessor do departamento de Gestão emTurismo da UFSM. Graduado, mestre e doutor em História.