Depois das eleições: a primavera da desesperança Publicada em 13/11/2024 157 Visualizações
John Steinbeck publicou em 1961 O inverno da nossa desesperança (título retirado da peça Ricardo III de William Shakespeare) e por conta da obra ganhou o Prêmio Nobel do ano seguinte. A obra retrata a trajetória da família Hawley, principalmente a degradação de Ethan Hawley e o clássico dilema entre seguir a trilha da ordem moral ou buscar o conforto material para si e os seus, seguir princípios de decência ou sucumbir à pressão de seu meio social por riqueza ou status. Uma temática universal e atemporal até.
Em O inverno da nossa desesperança Steinbeck aponta também uma divisão na sociedade dos Estados Unidos em busca do “sonho americano” de prosperidade: uma parcela que preza valores éticos e princípios civilizatórios básicos e outra que se pauta pela individualidade predatória e o enriquecimento material à qualquer custo.
Da literatura dos anos 60 do século XX ao tempo presente estas divisões maniqueístas, que servem para exaltarmos os mocinhos e execrarmos os bandidos, são difíceis de serem aplicadas na análise não apenas da história, mas do movimento individual no interior de uma comunidade e dos interesses conflitantes que nela brotam.
Contudo, há muito se pensa a sociedade brasileira em termos binários, polarizada e radicalizada onde as posições políticas estão calcificadas (ideia defendida em “Biografia do Abismo”, do jornalista Thomas Traumann e do cientista político Felipe Nunes - Rio de Janeiro: Harper Collins, 2024).
De certa maneira, os antagonismos característicos de uma sociedade diversa e extremamente desigual como a brasileira foram transformados em uma cisão entre “bons” e “maus”, entre altruístas e egoístas, e esse discurso, muito superficial diga-se, parece ter norteado grande parte dos discursos políticos nas eleições municipais de 2024 e tal postura se revelou descompassada, sem conexão com as demandas concretas da vida em comunidade.
Eleições municipais, proporcionais e majoritárias, são complexas por demais para serem decodificadas; cada município tem dinâmicas e idiossincrasias que fogem a padrões ou tendências nacionais (e são 5.570 municípios no país); a tarefa da investigação acadêmica, a ciência política por excelência, que busca uma racionalidade na escolha do eleitor, acaba por enfrentar um conjunto de dificuldades dada a diversidade de interesses, temas paroquiais, compadrios, relações pessoais e afetivas.
Nas grandes cidades, aquelas acima dos 100 mil habitantes, o impacto das plataformas, projetos e da campanha no ambiente digital são maiores, o embate ideológico e a identidade partidária assumem uma maior relevância conforme a região ou área que se tome de referência.
Já nos municípios pequenos, assume relevância a figura individual do candidato e o uso da máquina pública desequilibram disputas. Quanto menor a cidade, menos “coerente ideologicamente” são tanto as composições partidárias quanto a definição dos votos.
Mesmo que os eventos pós 2013 (as “Marchas de Junho” e a Operação Lava Jato) e as eleições presidenciais de 2018 e 2022 marquem o avanço do antipetismo e do antibolsonarismo, consolidando opções de escolhas ou de rejeições, os dados indicam que essa polarização não definiu, ou pouco impactou, o voto em 2024.
Porém, a linguagem e a comunicação dos partidos políticos com a sociedade, quer do PT, quer do PL por exemplo, revelaram uma certa distância entre projetos apresentados (quando o são) e os anseios da comunidade, o que no final reflete no cada vez maior distanciamento entre as estruturas políticas de tomada de decisões e o conjunto da população.
O uso e abuso do poder para benefícios pessoais, casos de corrupção, somado a questões estruturais como a desigualdade brutal, violência e a exclusão de uma parcela significativa da população à direitos fundamentais (adicionado à um certo sentimento de frustração) produziram e produzem uma aversão generalizada ao que denominamos "político". Talvez por conta disso, a política propriamente dita tenha cedido terreno para as questões morais.
A “não-política” e a ideia do “empreendedorismo” acabam por ser respostas ao esgotamento dos discursos e das práticas eleitorais. Colabora para isso o cenário de excesso de informações produzidas aleatoriamente, fake news, cenas bizarras (da cadeirada do Datena às mais variadas fofocas políticas), debates que não são propositivos, ódio discursivo, mais a “lacração” típica dos que procuram engajamento em perfis de redes sociais, enfim, todo circo que gera cansaço e apatia frente ao jogo político (mesmo para quem se interessa pelo processo eleitoral).
Não à toa, as pautas progressistas amplas, aqui compreendidas como temas que dialogam com a redução das desigualdades, a promoção das liberdades e o combate à pobreza, foram superadas na urna pelas questões ligadas à repressão, segurança e costumes (a famosa pauta moral). O esvaziamento da política assume a forma do voto de protesto contra o sistema.
Passadas as eleições ficou exposto um retrato político da sociedade brasileira a partir dos eleitos e, sobretudo, a partir daqueles e daquelas que não foram votar, votaram em branco ou anularam o voto. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE, https://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2024), 34 milhões de brasileiras e brasileiros aptos a votar no segundo turno das eleições municipais 2024, cerca de 3 em cada 10 eleitores, não compareceram às urnas.
Na cidade de São Paulo, no segundo turno, 2,9 milhões não compareceram (31,54%), 234.317 votaram em branco (3,67%) e os votos nulos ficaram em 430.756 (6,75%). Com seus 1.096.641 de eleitores aptos, Porto Alegre foi a capital líder em abstenções, 381.965 (34,83%), o total de votos em branco foi de 27.249 (3,81%) e os votos nulos contabilizaram 26.811 (3,75%). A não participação ou a rejeição generalizada das opções revela muito sobre o peso que a eleição teve.
O discurso dos políticos, sobretudo, suas formas de comunicar, não geraram engajamento para além daqueles já engajados previamente.
Nesse campo, assume destaque quem domina ou inova no uso de tecnologias ou quem mais gera conteúdo (verdadeiro ou não, como a acusação sem nenhuma evidência em pronunciamento oficial no dia da eleição, do governador de São Paulo Tarcísio de Freitas, do Republicanos, de que a organização criminosa Primeiro Comando da Capital indicava votos em Guilherme Boulos do Psol). Ou seja, mesmo que isso signifique o grotesco e o repugnante (vide Pablo Marçal em São Paulo e cópias excêntricas Brasil afora no estilo gonzo da política) o que vale é ter sua mensagem vista, ser compartilhada.
Mas daí surge um paradoxo, mesmo com o esgotamento da forma política, da crítica ao sistema partidário, às instituições de modo geral e da indiferença frente aos projetos políticos, novamente, os partidos tradicionais (senão na nomenclatura, na estrutura, fisiologismo e forma de comando) ditos do centro, da centro direita e direita são os que mais elegeram prefeitos e vereadores, pela ordem: PSD (de Gilberto Kassab), MDB (do deputado Baleia Rossi), PP (do Maluf), União Brasil (formado pela fusão do antigo DEM/PFL e PSL), PL (de Bolsonaro), Republicanos (ligado à Igreja Universal do Reino de Deus). Só depois aparecem o que poderíamos ainda chamar de partidos de centro esquerda: PSB, PSDB, PT e PDT (fonte: https://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2024-content/divulgacao-dos-resultados-das-eleicoes-2024).
O destaque dos partidos do “centrão” (partidos que orbitam em torno da presidência da República, independente de qual sigla esteja na cadeira, que usam sua representação parlamentar em troca de cargos e participação no governo) se deve em grande medida à capacidade pessoal de seus candidatos e aos fundos eleitorais (é muito dinheiro envolvido nas campanhas). De outro modo, algo a ser melhor analisado, estas mesmas candidaturas de centro direita foram a barreira de contenção aos candidatos mais extremistas (caso do Rio de Janeiro).
Grande parte destas legendas como o PSD, o MDB e o PP não deixam muito evidente seus projetos e programas, mesmo PT e PSDB, quando explicitam suas propostas e programas de governo pouco diferem, já que se pautam prioritariamente pela gestão eficaz da máquina pública. Ao eleitor médio, aquele fora da bolha, pouco importa a legenda.
Assim, a definição do voto nas eleições municipais não se explicou pela polarização e nem alguma vinculação ideológica. As polêmicas que envolveram a política nacional, notadamente entre petistas e antipetistas ou, lulistas e bolsonaristas, pouco contagiaram o eleitor na disputa municipal, muito embora, alguns candidatos usassem a vinculação com grandes lideranças para ampliar a base eleitoral (caso de Maria do Rosário em Porto Alegre e Alexandre Ramagem no Rio de Janeiro) e na maioria das vezes tiveram suas pretensões frustradas.
O que é possível perceber através dos resultados eleitorais, passa pelo, no mínimo, descompasso entre o que propõe os projetos macros por parte de partidos progressistas (não confunda com o PP!) comprometidos com a transformação radical ou mesmo conservadora da sociedade e o que pensa, senão a sociedade, uma parte do eleitorado brasileiro que esse discurso visa atingir.
Pensar alternativas para reverter as tendências apontadas nos resultados eleitorais últimos, passa pela reconfiguração do discurso progressista, evitando a polarização rasteira, sem abrir mão dos temas fundamentais (combate à pobreza, à desigualdade, à toda forma de intolerância, de preconceito, de discriminação, defendendo o Estado de Direito, a ciência, as conquistas democráticas, as liberdades e as instituições).
Passa também pela aproximação ou reaproximação com setores sociais que se sentem abandonados nas suas buscas por soluções para os problemas do cotidiano e que, portanto, optam pelas propostas salvacionistas imediatas ou mais críveis.
É voltar o olhar para parcelas da sociedade que historicamente foram desconsideradas e menosprezadas pelos progressistas e que se mostraram fundamentais na definição eleitoral: pequenos e microempreendedores, trabalhadores da agricultura familiar, jovens/adolescentes (que não se vinculam ao movimento estudantil), servidores públicos (fora do movimento sindical), trabalhadores precarizados, neopentecostais (os chamados evangélicos) e tantas e tantos que dão importância aos temas desprezados nos projetos totalizantes, quer ligados à moral, quer ligados aos costumes.
Formar uma ampla aliança e estabelecer pontes de diálogo com esses segmentos, radicalizando discurso e práticas talvez sejam a forma mais concreta, antes de mudar o mundo, de salvaguardar a democracia e evitar retrocessos civilizatórios.
Sobre o(a) autor(a)
Por Gilvan Veiga DockhornProfessor do departamento de Gestão emTurismo da UFSM. Graduado, mestre e doutor em História.