A Tradição do Cinema e do Cineclubismo em Santa Maria Publicada em 31/07/2024 616 Visualizações
Não há muitas controvérsias a respeito de que contemporaneamente as mediações sociais passam em parte pelas mídias digitais; os impactos, ainda sendo analisados e assimilados, em grande medida definem as relações e as formas de viver. O audiovisual passou de uma expressão artística para uma expressão cultural por excelência dos nossos tempos. O ethos de nossa época está impregnado da necessidade de produzir e distribuir imagens, tão numerosas quanto efêmeras, tão novas quanto descartáveis a tal ponto de Giovanni Sartori (Homo Videns – Televisão e Pós-Pensamento. Bauru: EDUSC, 2001) afirmar a existência de uma nova espécie, o homo videns: deixamos de ser o “que sabe” para sermos o “que vê”.
O precursor de todas estas mídias (da televisão aos aparelhos de celular) é o cinema. E o que mais impressiona é a rapidez com que ele se espalhou pelo mundo chegando a se consolidar como elemento primordial da contemporaneidade, criando um novo público, como diz o pesquisador Felipe Macedo (https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/search?q=cronologia) “que, pela primeira vez, trazia para os espaços públicos as mulheres, as crianças” e toda a população historicamente excluída dos espaços nobres da arte e da cultura (pobres, trabalhadores, periféricos). Se pensarmos como referência a “primeira exibição” de filmes ou dos produtos do invento chamado Cinematógrafo (o que se convencionou chamar de “invenção do cinema”), pelos Irmãos Lumière realizada no Salão Grand Café, em Paris, em 28 de dezembro de 1895 (apresentação pública, paga e que deu certo), em menos de um ano, a novidade chegava ao Brasil, em novembro de 1896 foram projetados filmes no Rio de Janeiro e em Porto Alegre e em 19 de junho de 1898, Afonso Segreto fez as primeiras imagens em movimento no Brasil (data em que se comemora o Dia do Cinema Brasileiro). Em Santa Maria, como demonstraram os estudos de Marilice Daronco e Alexandre Maccari Ferreira, há documentos de exibições que datam de 1897. O primeiro registro de sala de exibição é de 1902, o Salão Seyffarth, localizado no centro da cidade.
Gradativamente a cultura de assistir as imagens em movimento se enraizou na com o próprio crescimento da cidade e da população, desde o cinema Recreio Ideal no Theatro Treze de Maio, que funcionou até 1911; com o Cine Independência (1922 - 1995, atual Shopping Popular); com o Cine-Teatro Coliseu Santamariense (1911 - 1945); com o Cinema Ar-Livre (1923 - 1929); com o Cinema Imperial (1935 - 1960); o Cinema Odeon (1937 - 1939) e o Cinema Glória/Glorinha (1956 - 1997), todos, como bem apontou Cristiano Zanella em seu livro, cinemas de calçada (The End – Cinemas de Calçada em Porto Alegre (1995-2005). Porto Alegre: Idéias a Granel, 2006.).
Santa Maria também é o berço da produção de cinema do estado. O pesquisador Glênio Povoas, ao catalogar o Arquivo da Cinegráfica Leopoldis-Som, no Arquivo de Mídias da RBS TV, descobriu o filme “Cerimônias e Festa da Igreja em Santa Maria” filmado por Eduardo Hirtz em 1909. É o documentário preservado mais antigo do Rio Grande do Sul e um dos mais antigos do Brasil. Em 1963, a cidade foi cenário do longa “Os Abas Largas” filme de Sanin Cherques. Nesse mesmo ano foi realizado “A Vida do Solo” (em 16mm e com 45 minutos de duração), precursor do que se chamaria de “filme educativo ambiental”, filmes de animação (com cenas do meio rural) produzido na UFSM coordenado por Anna Primavesi, com desenhos de Joel Saldanha, produzido por Orion Mello e José Feijó Caneda.
Nos anos 70 se destacou a “geração do Super-8” que movimentou a cena cinematográfica: Pedro Freire Junior; Luiz Carlos Grassi, Nicola Chiarelli, Roberto Bisogno, Humberto Ferreira, José Feijó Caneda e outros que além de produzir e protagonizar filmes organizaram o primeiro festival gaúcho de Super-8 em 1975. Neste festival foi lançado possivelmente um dos melhores filmes desse formato, "O Velório de Vicente Silveira", roteirizado e dirigido por Modesto Wielewicki e ganhador do prêmio de melhor direção (o filme foi digitalizado em 2022 por Luiz Carlos Grassi). A saber: Super-8 é um formato cinematográfico lançado em 1965 pela Kodak, como um aperfeiçoamento do antigo formato 8 mm, mantendo a mesma bitola com uma câmera portátil garantindo que cineastas amadores criassem um novo formato de audiovisual doméstico, precursor do VHS nos anos 1980, e do mini-DV na década seguinte.
Há um histórico na organização de festivais de cinema na cidade, do já citado Festival de Super-8, ao Santa Maria Vídeo e Cinema (SMVC, criado em 2002 e indo para sua 17ª edição em 2024), do Festival de Cinema Estudantil (CINEST, desde 2012) ao Assimetria, Festival Universitário de Cinema e Audiovisual promovido pela UFSM em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) desde 2018.
Apesar da farta produção de curtas metragens, potencializado pelo “Curso de Extensão em Produção de Cinema Digital” da UFSM coordenado por Sérgio Assis Brasil entre os anos 90 e primeiros anos dos 2000, o primeiro longa metragem de ficção produzido na cidade somente foi lançado em 2008, “Manhã Transfigurada” com direção do mesmo Sérgio Assis Brasil. “Câncer – Sem Medo da Palavra” de Luiz Alberto Cassol foi o primeiro documentário em longa metragem da cidade de 2009.
Mas Santa Maria viria a se tornar referência no Brasil pela atuação dos cineclubes, sendo destaque no chamado fenômeno da “organização de público”. E aqui se entende o “público” como distinto da massa ou dos espectadores, passivos diante da experiência cinematográfica. De forma geral cineclubes são associações que primam pela democracia, sem finalidade lucrativa e com o objetivo de se apropriar do cinema enquanto produto cultural e bem comum. São variados os tipos de cineclubes, com formas de atuação e organização distintas e sua trajetória está ligada às diferentes situações locais, nacionais, culturais e políticas em que se desenvolveram. Os cineclubes surgiram nitidamente em resposta a necessidades que o cinema dito “comercial” (ou das grandes distribuidoras) não atendia e não atende.
Desde os precursores Edmundo Cardoso com o Clube do Cinema de Santa Maria que funcionou de 1951 até 1961 no antigo Centro Cultural, hoje Theatro Treze de Maio (Clube de Cinema que voltou às atividades em 2022 por iniciativa da Casa de Memória Edmundo Cardoso com a coordenação de Matheus Meller) à Irmão Ademar que fazia exibições na Quarta Colônia ainda na década de 40 foram sendo desenvolvidas experiências com a ideia de cineclubes como espaços de reunião não apenas de cinéfilos mas apreciadores em geral que buscavam além de assistir à uma exibição de conteúdo de cinema, uma troca de experiências. Para além disso, o cineclube seria local de elaboração de análises críticas, de estudo e fruição da arte, ou apenas espaço de conhecimento e entretenimento. Garantia assim o acesso a essa linguagem e suas diferentes expressões.
Foi o caso das exibições coordenadas por Dom Walmor Battu Wicrowisky promovidas pela Ação Católica ainda nos 50 e que acabou incentivando alunos do Colégio Santa Maria a criar o Cineclube Colégio Santa Maria em 1961 (formado basicamente por José Luiz Duarte, James Giacomoni, Paulo Sotto, Ronái Pires da Rocha, Paulo Buss, Teófilo Torrentegui, e Marcos Farret). Como lembrou Paulo Henrique Teixeira (outro histórico cineclubista da cidade) simultaneamente alunos do Seminário São José (entre eles Humberto Gabbi Zanatta), também começaram a desenvolver exibições. É do início dos anos 70 o “Cineminha do Itararé”, (uma sala pequena com cadeira simples e para poucas pessoas) do espanhol Angel Alcântara com projeções em 16mm. E em meados de 1977 estudantes da Universidade Federal de Santa Maria vinculados à Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria (CESMA) conceberam a criação do Cineclube Lanterninha Aurélio até hoje celebrado no país dado sua postura de resistência ainda quando o país vivia sob a ditadura civil-militar. Entre 1995 e 1999 o Otelo Cineclube, mantido pelo Sindicato dos Bancários de Santa Maria promoveu sessões. A TV OVO, coletivo audiovisual e Oficina de Vídeo criada a partir de oficinas de vídeo ministradas em 1996 para jovens da periferia da cidade, criou e desenvolveu durante um ano o Cineclube Porão e até hoje produz e promove sessões cineclubistas nos bairros e distritos da cidade. A Universidade Franciscana manteve o Cineclube UNIFRA entre 2003 e 2011 (a instituição, agora UFN, retomou as atividades com o cineclube Odysseia coordenado pelos professores Bebeto Badke e Roselaine Casanova Corrêa).
O contexto pós anos 90 marcou de forma generalizada o fim dos cinemas de calçada e o aumento do consumo doméstico de cinema (videolocadoras, canais de televisão exclusivos de filmes, plataformas via internet). A especulação imobiliária avançou e desumanizou os centros urbanos bem como foi incrementado o mercado da exploração da fé religiosa (que prioritariamente ocupou os antigos prédios de cinema).
O entretenimento uniforme proposto pelos shopping centers e suas salas de cinema com programação padronizada e sem diversidade caminhou ao lado da precarização dos espaços urbanos de socialização e lazer. E mesmo com tudo isso os cineclubes não deixaram de atuar na cidade. Tanto que Santa Maria foi protagonista no processo da retomada e rearticulação do movimento cineclubista nacional, como política de governo em 2003 na gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, (a cidade sediou a Jornada Nacional de Cineclubes e o Encontro Ibero Americanos de Cineclubes em 2006 e duas Pré-Jornadas Nacionais de Cineclubes, 2009 e 2012; em 2010 Luiz Alberto Cassol chegou à presidência do Conselho Nacional de Cineclubes).
Desde 2016 a UFSM, através do Departamento de Turismo, mantém o Cineclube da Boca, com sessões semanais e com conteúdo de exibição exclusivamente local e regional. Em 2022 se tornou um programa de extensão que abriga um conjunto de projetos voltados não apenas para a comunidade acadêmica, mas para um público voltado aos segmentos mais vulneráveis socialmente: Oficinas de Formação Cineclubista; Filmoteca da UFSM e o Curso de Produção em Cinema e Audiovisual.
Se em uma das suas primeiras experiências, o parisiense “Cinema do Povo” de 1913 (muito bem estudado por Luiz Felipe Mundin, https://lume.ufrgs.br/handle/10183/158300) o cineclube pretendia divertir (sem alienar), informar e emancipar o público (criando no cidadão e na cidadã a consciência de indivíduo, de grupo, de comunidade...), na proposta cineclubista atual se destaca o potencial de democratizar e descentralizar a produção e distribuição do audiovisual e da cultura e também garantir espaços de socialização, de debate, de encontro e do respeito às diferenças e dos diferentes mediados pela magia do cinema. Os cineclubes garantem que o público siga tendo acesso a filmes feitos aqui e a cinematografias do país e do mundo que não se veem facilmente em salas de cinema. Se filmes foram feitos para serem vistos, a tradição cineclubista segue firme em Santa Maria!
Sobre o(a) autor(a)
Por Gilvan Veiga DockhornProfessor do departamento de Gestão emTurismo da UFSM. Graduado, mestre e doutor em História.