O Presente do Passado: 60 anos do Golpe Civil-Militar de 1964 Publicada em 02/04/2024 1071 Visualizações
Em 1º de abril de 2024 rememoramos (no sentido de trazer a memória e não comemorar) os 60 anos do golpe civil-militar que depôs o presidente eleito João Goulart e que gerou uma série de consequências. Já no segundo dia de abril (1964), Ranieri Mazzilli assumiu interinamente o governo e, no dia seguinte, com o poder de fato na mão dos oficiais militares, foi desencadeada uma onda de prisões de líderes políticos, sindicais e camponeses, enquanto João Goulart se refugiava no Uruguai.
No dia 9, o Supremo Comando Revolucionário (formado pelo General Costa e Silva, o Vice-Almirante Augusto Rademaker e o Tenente-Brigadeiro Correia de Melo) decretou o Ato Institucional (que seria o nº 1 de 17 e mais 104 Atos Complementares editados entre 1964 e 1977), permitindo a cassação de mandatos legislativos, a suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão e a punição dos integrantes da administração pública, além de determinar a eleição indireta do Presidente da República para um mandato até 31 de janeiro de 1966.
Cerca de 3.500 pessoas foram diretamente atingidas pelo AI-1 entre deputados federais e estaduais, oficiais das Forças Armadas, lideranças políticas, funcionários públicos e dirigentes sindicais. Em 11 de abril, com candidato único, o Congresso Nacional “elegeu” como presidente o Marechal Humberto de Alencar Castello Branco (e seu vice, José Maria Alkmin, Deputado Federal pelo PSD), inaugurando o regime ditatorial que se estenderia por longos e trágicos 21 anos.
Foi justamente essa permanência no poder que diferenciou essa intervenção da oficialidade militar na política brasileira de outras tantas. Os militares, da mesma forma que em semelhantes situações de crise (como 1945,1954 e 1961), estavam envolvidos diretamente nas definições políticas, contudo, para além do afastamento do presidente e cerceamento de liberdades, a oficialidade militar assumiu o poder decisório e neste permaneceu para além das tarefas reativas (de “depuração” do sistema político-institucional), tentando dar uma resposta não apenas aos sucessivos conflitos políticos, mas à instabilidade econômica e à emergência de setores sociais não bem vindos no pacto de poder.
A legitimidade do governo de João Goulart passou a ser contestada quando as políticas adotadas apontaram para outras direções que não as defendidas pela parcela politicamente ativa da elite da sociedade brasileira. Nos anos 60, esta elite era um verdadeiro mosaico de velhos e novos ricos, camadas médias decadentes e emergentes, progressistas, autoritários e conservadores, mas todos comungavam da convicção de que as estruturas do Estado existiam para servi-los (algo que suspeito não ter sido alterado muito...). Por isso, a reunião em torno de um suposto “inimigo comum” foi facilitada. O colapso das estruturas e instituições do Estado e o desejo de previsibilidade política (estabilidade) levaram segmentos com interesses distintos a encampar ou a anuir o golpe e as primeiras ações dos golpistas no poder.
O golpe, sendo civil e militar aglutinou setores sociais que, de uma ou outra forma, sentiram-se ameaçados não apenas com a política populista, mas com as mudanças que o país e a sociedade viviam e teve êxito em razão da ampla coalizão formada, a qual reuniu segmentos do arcaico ao moderno, do conservador ao progressista, do religioso ao laico. Senhores a serviço de deus, senhoras a serviço do lar, senhores de terno, senhores de botas, chapéu e rebenque, senhores democratas, senhores conservadores, senhores das letras, senhores dos lotes, senhores da informação, senhores de farda, senhores do espetáculo, senhoras de rosário em punho, castos, celibatos, devassos e profanos. Enfim, o golpe de 1964 somente foi possível na medida em que agregou uma série de interesses imediatos. Grande parte da sociedade desejou, acolheu ou se mostrou indiferente à intervenção.
Analisar, para além de narrar, essa História Recente do Brasil exige problematizar como o passado se constrói no tempo, ou seja, como a relação com o passado se altera conforme avançamos (ou retrocedemos) em questões políticas, econômicas e sociais e, a partir disso, como se desenrolam os sentidos de história, de memória, de lembrança, de esquecimento, de comemoração, de rememoração, de lugares (afinal, o Brasil ainda mantém 918 locais com nomes de presidentes da ditadura), de patrimônio cultural, de preservação e de destruição.
Sendo um campo em disputa, a análise e/ou narrativa do passado recente também são tributárias de posições particulares ligadas a visões de mundo individuais como instrumento balizador de conclusões ou de defesa de posição política e ideológica. Os obstáculos à análise da história recente são variados: a aproximação entre a opinião e a ciência; a confusão entre um recorte de observação de um fato e o fato em si, entre o desejo de como as coisas devem ser e a imposição deste desejo como verdade; a quebra da fronteira entre a irracionalidade do pensamento mágico e a racionalidade científica construída ao longo de séculos e séculos de acúmulo teórico, metodológico e objetivante.
Ao mesmo tempo, apesar dos avanços nas pesquisas e na produção acadêmica sobre o golpe civil-militar e a ditadura, mesmo com um maior e mais facilitado acesso a variadas fontes de pesquisa e de informação, com bibliografias e conteúdos midiáticos variados (como filmes, séries, podcast, etc.), e mesmo com a divulgação de memórias (quer de opositores, quer de representantes do governo e agentes do Estado à época), o golpe e a ditadura não são temas de domínio comum. Mesmo durante o processo de redemocratização (pós-1985), o esquecimento, o silenciamento e uma certa hierarquização da memória (a predominância – em um determinado nicho da sociedade - do discurso da resistência à ditadura) relegaram a história recente do país a uma condição menor, quase um tabu.
Como resultado, golpe civil-militar de 1964 e a ditadura que o seguiu entraram em uma zona de distanciamento e de esquecimento somente sendo reativados, enquanto campo de disputa narrativa, recentemente. Mais ainda quando a sombra de uma ruptura democrática voltou a pairar, como demonstraram as manifestações por outra intervenção militar e, sobretudo, os eventos de invasão, destruição e vandalismo às sedes dos três poderes em Brasília em 8 de janeiro de 2023, os atos mais acintosos à democracia desde o golpe de 1964 e da decretação do Ato Institucional nº 5 em 1968, momento de maior explicitação do terror do Estado no país.
A selvageria, a violência, o ódio (refletidos na depredação dos prédios que simbolizam o Estado de Direito no Brasil) transmitidas ao vivo por redes de televisão e pela internet, foram “justificadas” como recurso de “salvação da pátria” e de clamor por “restauração da ordem” e “manutenção de valores morais tradicionais”. Uma repetição, como tragédia, do discurso que procurou legitimar o golpe civil-militar de 1964. Foi revigorada a ideia de que uma parcela conservadora da sociedade brasileira (os “patriotas” e pessoas “de bem”) tem o dever de agir, mesmo que inconstitucionalmente, para supostamente, com o discurso por uma intervenção militar, defender uma nação cujo declínio ético e moral era evidente (e aí se reativaram os fantasmas das “fraudes eleitorais”, dos “abusos do judiciário, principalmente dos ministros do STF” e, o tradicional “perigo comunista”).
Os eventos e o contexto que antecederam o golpe civil-militar de 1964 guardam semelhança com os atos de 8 de janeiro de 2023. Campanhas de veículos de comunicação com grande credibilidade e abrangência (leitores, ouvintes e expectadores) promovendo a desinformação, o medo e apontando os “inimigos” atualizadas em notícias e informações midiáticas divulgadas por veículos de comunicação (via redes sociais mas também em tradicionais e convencionais meios de comunicação) que causaram comoção, pânico moral e difusão de notícias falsas alertando os malefícios e perigos da “esquerda” no poder.
Em 1964, a crise econômica, o descrédito institucional, a proposta de reformas de base, a campanha midiática de oposição, a mobilização política das Forças Armadas e a suposta aproximação do presidente João Goulart (que não guardava nenhuma inclinação comunista ou socialista) com setores da esquerda serviram de mote para o golpe e garantiram um regime de violência, opressão, censura e privilégios.
A não efetivação de uma justiça de transição ao final da ditadura, sem a responsabilização e a punição aos envolvidos pelo golpe e pelas violências em nome do Estado, da mesma forma que a ausência de políticas públicas de memória (como mecanismo pedagógico de educação para e pela democracia) criou um ambiente de tolerância com posturas extremistas não democráticas. Em 8 de janeiro de 2023, colhemos os resultados da ausência de uma ruptura com a herança e com o patrimônio ditatorial. Rememorar para que não se repita jamais!
Sobre o(a) autor(a)
Por Gilvan Veiga DockhornProfessor do departamento de Gestão emTurismo da UFSM. Graduado, mestre e doutor em História.