Salas de aula remotas. Quando o virtual é o real SVG: calendario Publicada em 25/05/2020 SVG: views 2443 Visualizações

Desde a escola jesuítica, não víamos mudanças radicais nas práticas de salas de aula. Elas foram instituídas na Escolástica e perduraram ao longo do tempo, sobrevivendo ao medieval, ao moderno e chegando ao pós-moderno com poucas alterações sob a perspectiva ritualística do espaço físico e das relações entre os mestres professores e seus discípulos, os estudantes. Isto sempre incomodou-me como berço e glória da pedagogia tradicional.

E então chegamos ao período que, talvez, venha a ficar registrado como a Grande Pandemia do Século XXI. Pouparei o leitor das estatísticas de morte e sobrevida do Covid-19 porque as temos aos borbotões nos meios de comunicação e no cotidiano de nossos refúgios-lar, onde isolados socialmente enfrentamos demandas não apenas de sobrevivência, difícil para muitos desempregados e também para os que tentam administrar a rotina familiar e o trabalho, agora em home office (ofício/trabalho em casa).

Essa nova realidade provocou a ruptura com a sala de aula escolástica, com mudanças bruscas nas práticas de ensino, desde a pré-escola à pós-graduação. Fomos destituídos de nossas salas de aula e tudo o que a significa: materiais; pastas; kits experimentais; dentre outros recursos didáticos. Alguns mestres agora se perguntam, como podem ensinar? E outros, ainda, se lhes é dado o direito de ensinar em meio ao caos social. Deparei-me como formadora de professores na graduação e na pós-graduação, com as duas questões e penso que, aos poucos, meus colegas também estão percebendo o paradoxo em que nos encontramos, embora não tenha dados oficiais que o comprovem.

Os gestores do ensino, equipe técnico-diretiva e professores aceitaram o desafio de desenvolverem estratégias para aulas remotas, rompendo definitivamente, talvez, com a noção de salas de aula solidificada no pensamento pedagógico. Das tarefas domiciliares ao uso das tecnologias digitais, retomamos nossas práticas de ensino, enviando materiais pelo ambiente de ensino-aprendizagem Moodle e outros, pelas redes sociais, recriando tempos e espaços escolares e acadêmicos.

 E, então, começam a surgir muitos casos de estudantes com dificuldade de participar da nova “moda” porque não têm acesso à Internet, ou porque não sabem ainda como confiar neste modelo pedagógico cuja via de acesso são as tecnologias de informação e comunicação (TIC). Agrava-se o quadro, ao pensarmos que cada família está desenvolvendo estilos que lembram os malabaristas em um contexto econômico difícil, além do enfrentamento do perigo eminente do adoecimento fatal. O G1 anunciava na sexta, 22 de maio, que as secretarias estaduais de saúde registraram 21.116 mortes provocadas pela Covid-19 e 332.382 casos confirmados da doença em todo o país.

Na educação básica, os pais parecem apoiar a tarefa de ensinar para que seus filhos não percam o ritmo das aulas, embora talvez desejem que isto seja pelo menor tempo possível. Por meio das mídias digitais, parece ser tudo mais fácil; afinal, quem não tem na atualidade um smartphone e a autonomia de acessá-lo, compartilhar informações e aprender. Porém, uma pergunta que não cessa tem aprisionado o meu pensamento e o meu ânimo a acessibilidade às tecnologias educacionais. Ainda que veja a popularização e o poder das “lives” seja facilmente constatado vivo em constante “desassossego pedagógico” cuja base teórico-prática tentarei clarear.

Embora eu já tenha respondido várias enquetes e formulários de pesquisa, ainda não temos dados precisos sobre o que está acontecendo com o sistema educacional como um todo; quantos alunos estão aprendendo com o ensino remoto e, destes, quantos são suportados por recursos não digitais; também não sabemos como os professores estão se adaptando a esse aparente giro pedagógico e possível mudança de paradigma.

O ensino passou de presencial a distância, mas não ainda não transformamos o modelo fragmentado de oito a dez disciplinas por semana. Também não reformulamos o currículo de modo a agrupar os conteúdos por área do conhecimento e nem instigamos à inter/transdisciplinaridade. Observamos a comunicação ainda vertical, dos professores aos estudantes, mas e a intercomunicação entre os professores e entre os estudantes? Em suma, o que desejo sublinhar é que estamos tentando, mas tentar talvez não seja suficiente diante do prolongamento da indicação de isolamento social. Diante desse crescente avanço do Covid-19 poderemos não ter mais um ponto de volta às primeiras semanas letivas de 2020.

É possível que tenhamos que desenvolver modos adaptados de viver, trabalhar e também novas pedagogias que deem credibilidade ao ensino remoto. E, principalmente, garantir o princípio básico da educação pública: ensino obrigatório, gratuito e de qualidade a todos. Também, e não menos importante, garantir a universalização do acesso ao ensino público , tarefa urgentíssima, antes que se percam definitivamente os avanços da educação brasileira desde a Constituição de 1988, passando pelas duas leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1971 e 1996), pelo Plano Nacional de Educação, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e outras políticas públicas que garantem o acesso e permanência da educação básica à educação superior.

Retornando ao pedagógico nosso de cada dia, vemos no ensino superior, os professores deslocarem as aulas de presenciais à distância, enfrentando desafios em relação ao comportamento dos alunos, os quais possuem pouca experiência de estudo nessa modalidade. Digamos de uma modalidade que surge modelando o conceito de autoeducação, autonomia de aprendizagem, aprendizagem significativa, os quais não têm referência na sua trajetória estudantil. Não tínhamos essa prática e nem essa necessidade priorizada quando a nossa realidade foi interrompida e recebemos a ordem de “ficar em casa”.

São essas as consequências de não priorizar a modalidade de Educação a Distância e do sistema híbrido de aprendizagem, desvalorizando esses potenciais para novas práticas pedagógicas e novos conceitos de salas de aula.

Temos elencado algumas situações típicas, com estudantes. Veem pouca vantagem nas aulas on line, porque não se prepararam adequadamente para cada encontro virtual; não se motivam a ler nas telas e sim nas anotações;  vivem uma situação familiar e/ou contexto pessoal do qual é complexo abstrair;  dificuldade em interessar-se em aprender, estudando muitas matérias descoordenadas entre si; ou ainda, mantêm-se em ocupações que não lhes permitem seguir adequadamente o curso. O que se pode fazer nessa altura dos acontecimentos, tendo passado metade do primeiro semestre e sem perspectiva de retorno seguro às aulas?

Em todo o mundo, as pessoas seguem sendo orientadas a manter distanciamento social em ambientes coletivos. Algumas tentam retomar as atividades econômicas, mas ainda com as medidas de isolamento mantendo as pessoas em casa e as crianças com aulas remotas. Existe evidência do temor de que uma segunda onda de contágio volte a assolar os países que até o momento acreditam já ter passado pelo pico da pandemia. Inclusive, alguns reabriram as escolas e logo tiveram que fechá-las novamente. E, mesmo retornando, será necessário rastrear as pessoas que tiveram contato com o vírus e evitar que aquelas que se enquadram nos grupos de risco sejam expostas ao perigo de contaminação. Muitos ainda não caíram em si, percebendo que desta vez o mundo inteiro parou e agora é obrigado a desconstruir hábitos e crenças.

Compartilho experiências para repensar com os colegas o que estamos fazendo agora, como usar as tecnologias educacionais disponíveis para melhorar os processos formativos de futuros professores e gerar sinergias entre os Formadores de Formadores. Esse propósito abraça a formação inicial e continuada de professores, pois no mundo do trabalho já se encontram os nossos egressos, diante da árdua tarefa de manter as aulas remotas como alternativa viável para que as crianças e jovens não rompam o vínculo com a escola. Existe uma emergência na educação porque as sirenes escolares soam para uma instituição que agora se alonga para o lar de cada criança e jovem. A escola e a sala de aula passam a existir, verdadeiramente, no mundo virtual. Portanto, o virtual é o real. Ao sentir a força desta constatação, vejo-me instigada a reportar-me a Pierre Lévy (1994) e Jacques Derrida (1995; 1996).

Pierre Lévy ocupa-se do tema em sua obra “O Que é Virtual?”, editada em português pela Editora 34 em 1996. Ao expor “O que é a Virtualização?”, o autor expõe como  “fácil e enganosa” a oposição entre real e virtual, afirmando que o virtual, na verdade, se opõe ao atual, na medida em que tende a atualizar-se, sem chegar, contudo, à uma concretização efetiva. Buscando a sua argumentação com base em Gilles Deleuze, afirma que o virtual se distingue, ainda, do possível, na medida em que este último já estaria constituído, estando somente em estado latente, pronto a se transformar no real. Não teria, assim, a criatividade do virtual. Diz Lévy:

Contrariamente ao possível, estático e já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização (Lévy, 1996, p.16).

O virtual alcança a condição de fornecer as tensões para o processo criativo que envolve a atualização. Não como algo previsível e estático, a exemplo da passagem do possível para o real. Esta concepção de virtual parece ter relação com o que estamos percebendo na atualidade, obtida pelo trabalho da desconstrução do ensino tradicional. Jacques Derrida concebe a desconstrução como resultante do processo dinâmico que envolve tanto a différence (diferença) como a différance (diferência), ou seja, procedimentos de fundo estrutural. Ao  final dos processos significantes da atualidade, caso fosse possível chegar até lá, a desconstrução  seria uma fonte geradora com características semelhantes ao conceito de virtual defendido por Lévy (Derrida, 1994).

Isto posto, Pierre Lèvy passa a trabalhar com o conceito de virtual, segundo ele, em uma de suas principais modalidades, ou seja, o desprendimento do aqui e agora. Neste ponto, podemos retomar o tema da escola ou universidade remota com seus repentinos estilos de ensino e de aprendizagem, cujos elementos igualmente são “nômades e dispersos”, ou seja, trabalha-se outra vez com o conceito de ausência. Esta argumentação é reforçada pela consideração desses espaços de ensino como algo “desterritorizalizado”, que, embora exija suportes físicos, não possuiria, de fato, “um lugar”. Para o autor, quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam, eles se tornam “não-presentes”, se desterritorializam. Uma espécie de desengate os separa do espaço físico ou geográfico ordinários e da temporalidade do relógio e do calendário. Então, estaríamos frente a uma possível “desterritorialização” da escola e da universidade? Elas existem fisicamente como referentes, no entanto não podemos delas nos aproximar. Então, nos nossos novos fazeres pedagógicos midiáticos, virtualizamos esses espaços, tornando-os não presentes, então se “desterritorializam”.

Continuando a pensar com Lèvy (1996), o autor indica, o que se “desterritorializa” não é totalmente independente do espaço-tempo de referência, uma vez que devem sempre se inserir em suportes físicos e se atualizar, agora ou mais tarde. Isto indicaria que, na nossa atual condição de isolamento obrigatório, embora desenvolvendo um ensino remoto, mas nos inserimos nos espaços escolares ou acadêmicos físicos, de onde somos provenientes, sendo estes “espaços-tempo de referência”, podendo se atualizar, “agora ou mais tarde”.  Foi a virtualização lhes fez tomar a tangente. Ou seja, estamos agora no limiar de algo novo e criativo ou simplesmente uma experiência mal vivida a qual contamos abandonar tão logo seja possível.

Considerando o argumento de que a virtualização torna variados os espaços e temporalidades, novos meios de comunicação estabelecem modalidades diversificadas de tempo e espaço, estabelecendo diferença naqueles que estão envolvidos, entre si, e também em relação aos que se situam fora do novo sistema. E Lèvy (1996) vai além ao afirmar que chegam a ser criadas qualidades de histórias diferentes. Eu penso que essas histórias diferentes precisam ser narradas e tomadas na atualização dos “espaços-tempo de referências”. Na sua história, faz muita diferença você estudar nas regiões mais beneficiadas da cidade, do estado, do país; estudar em escola pública ou privada; em escola pública municipal, estadual ou federal. Faz muita diferença você nascer e viver em uma comunidade central ou periférica; ter pais analfabetos, não ter pais, ter apenas pai ou mãe, viver na rua ou ter uma família que cuida de você.

Quando eu trouxe à discussão em minha turma de estudantes de mestrado e doutorado a questão das vivências escolares neste tempo assolado pela pandemia, ouvi histórias que nos balançaram a todos. Histórias verdadeiras, de professoras que estão assumindo a função social junto às famílias dos alunos, providenciando alimentação, roupa e todo o tipo de socorro. Contaram que saem à rua e veem seus alunos na rua, sem cuidado e proteção alguma. Esse é o reverso do isolamento social. Estariam melhor na escola, mais protegidos e alimentados? Seria esta a oportunidade de atualizar as funções da escola e do estado? E quem cuida dos professores, expostos a toda situação de desconforto e perigo de contaminação? Alguém lembra que os professores também têm suas famílias e a si para cuidar? Em um momento de tantas controvérsias e paradoxos seria mesmo propício manter o ano letivo em curso? Entre ganhos e perdas, o isolamento social, total ou parcial, poderia ser um momento para se aprender outras lições e criar novas possibilidades para a escolarização. No entanto, se escolhe o caminho de mantutenção da desigualdade e da injustiça social.

Voltando às questões do início, de que alguns mestres agora se perguntam, como podem ensinar e outros, ainda, se lhes é dado o direito de ensinar em meio ao caos social. Esta repentina virtualização do nosso tempo-espaço escolar e acadêmico nos obriga a parar de "pensar apenas em dar aulas" e “cumprir calendários letivos”, sejam semestrais ou anuais. A proposta seria parar e refletir sobre outras questões que envolvem a vida no planeta, a consciência global, o equilíbrio bioecológico, o direito das massas à vida e à educação. E, inclusive, criar o movimento de re-territorialização a partir das escolas e das universidades, desconstruindo o que nos prende ao paradigma tradicional e qualificando diferentes histórias na atualização dos “espaços-tempo de referências”.

Referências

DERRIDA, Jacques. (1994). Espectros de Marx. Rio: Relume-Dumará.

LÉVY, Pierre (1996). O Que é Virtual?. Rio de Janeiro: Editora 34.

 

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por Adriana Moreira da Rocha Veiga
Professora Associada do Departamento de Fundamentos em Educação, Centro de Educação

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