Ciências Sociais e pensamento crítico: os ataques a um campo do conhecimento SVG: calendario Publicada em 28/09/2022 SVG: views 5832 Visualizações

As Ciências Sociais têm como vocação o processo de desnaturalização e estranhamento da realidade social. Com base em conceitos e métodos, busca a compreensão da dinâmica da interação e da experiência social. A sua presença nos espaços públicos se relaciona à construção de canais democráticos de participação vinculados à reflexão sobre os modos e os sentidos da vida social. Nesses termos, quanto mais ampla a sua presença, maiores as oportunidades de uma socialização reflexiva voltada a ampliar a capacidade de intervenção social autônoma.

A preocupação com o campo de trabalho dos egressos da área, sem dúvida, é fundamental, mas, para além desse enfoque, trata-se de atenção com o tipo de sociedade que estamos construindo e de quais atores estão participando dos espaços decisórios e de debate público sobre os projetos de sociedade, de política e de desenvolvimento econômico e social.

Por muito tempo houve a defesa de que a sociedade deveria ser dividida entre dirigentes e dirigidos – há elites que ainda pensam assim. Do prisma de uma democracia de perfil popular, a participação requer condições objetivas e subjetivas. Essas conjunções são variadas, passam por aspectos de ordem elementares, que vão da moradia e alimentação até a renda e envolvem, também, o acesso à educação. Nesse particular que se destaca o lugar das Ciências Sociais e seu potencial de formação reflexiva e política no fortalecimento do esclarecimento e no enfraquecimento dos domínios arbitrários.

Assim, torna-se importante o debate que versa sobre as condições que, na sociedade moderna e complexa, os cidadãos em geral, e a juventude em particular, precisam ter para poder participar de modo livre nos debates locais e nacionais. Para tanto, a alteração nos padrões de distribuição das oportunidades educacionais e de acesso aos saberes científicos se coloca em foco.

Para Pierre Bourdieu há um compromisso de ordem ética que deriva da própria natureza do conhecimento autêntico da Sociologia. A compreensão está de certa forma amarrada a um compromisso ético, uma vez que a maneira como se compreende o problema impacta na sua solução. Por isso, trata-se de uma ciência que frequentemente é alvo de ataques de perspectivas individualistas que se opõem à sociedade. Nesse sentido, para Burawoy (2009, p.23), “nós somos governados por um regime que é profundamente anti-sociológico em seu ethos e hostil à própria ideia de ‘sociedade’”.

Para o sociólogo, “a sociologia vive e morre com a sociedade. Quando a sociedade é ameaçada, também o é a sociologia” (BURAWOY, 2009, p.193). O autor nos coloca a importância de uma Sociologia pública, em diálogo com diferentes públicos, fora da academia. “Por que alguém deveria nos escutar mais do que a outras mensagens alardeadas pela mídia?” (BURAWOY, 2009, p.26), indaga o autor apontando para a importância da atuação nas políticas públicas e nas tantas outras trincheiras da vida social.

As Ciências Sociais tendem a alimentar o pensamento crítico e a demonstrar que a vida tem várias formas de ser vivida. Na sua versão crítica, volta-se a contrapor a passividade individual e se ergue para questionar e, na maioria das vezes, para se opor aos grandes problemas que assolam os “de baixo”: Concentração de renda; fome e insegurança alimentar; problema ambiental; desemprego/subemprego; pobreza; violência; sexismo; racismo; homofobia; concentração da propriedade; perda de direitos sociais e trabalhistas; ofensas a dignidade humana, entre outras imoralidades. Para as Ciências Sociais, contestando as versões obscurantistas, esses eventos não são nem acidentais nem fatalidades, mas produzidos pelas lutas e conflitos sociais.

Florestan Fernandes, sociólogo e intelectual militante, nos ensinou que nas lutas contra as desigualdades não se pode recuar. Paulo Freire, patrono da educação brasileira, passou uma vida inteira dedicada às causas populares. Ambos estiveram nessa vida para colaborar na construção das condições que permitissem a formação de pessoas críticas, abertas às diferenças, à pluralidade, vocacionadas a buscar a igualdade social e habilidosas na capacidade de assumir posições independentes e autônomas. Não por acaso ambos lutaram pela universalização da educação pública, gratuita, laica, universal, por considerar que a educação tem capacidade de alcançar um grande número de pessoas e deve sim ser um direito.

No caso do ensino, esse é um dos espaços fundamentais de democratização dos saberes das Ciências Sociais. É onde a Sociologia – nome que as Ciências Sociais recebe no ensino médio – consegue chegar a um maior número de pessoas. A necessidade de decisões conscientes e esclarecidas numa sociedade complexa como a nossa é que faz das Ciências Sociais decisiva na escola. Em razão disso, é que vem a ser tão preocupante a Portaria 350/Seduc/2021, publicada em 30 de dezembro de 2021, que reduziu a carga horária da disciplina na escola para um período num único ano, ao contrário dos três períodos que tinha, um em cada ano do ensino médio. Com a Lei nº 11.684/2008 a Sociologia foi assegurada nos currículos. Todavia, desde a Medida Provisória nº 746/2016, que se tornou Lei nº 13.415/2017, revoga-se a obrigatoriedade da disciplina na educação básica, impactando as instituições escolares.

No meio de tantas complexidades da vida social, de que maneira realizar as escolhas de modo racional? Como construir o espírito crítico capaz de contribuir na tomada de decisões? Para participar da vida social de modo vigilante e qualificado e se preparar para os problemas concretos da vida econômica, política e social será imprescindível o acesso da juventude brasileira aos saberes das Ciências Sociais. Trata-se de constituir uma postura e uma socialização para o questionamento e habilidade para a atuação voltada ao diálogo. Treinar o olhar e o verbo para construir argumentos de ordem racional, o que vem a ser condição sine qua non para uma participação ativa e consciente na vida social e política, bem como para o fortalecimento das potencialidades radicais da razão, ao que se liga o potencial educativo das Ciências Sociais, produzindo novos hábitos de pensamento e formas de intervenção social baseadas na reflexividade.

Há alguns aspectos nada racionais da ordem social – exploração e dominação, por exemplo – que nos colocam abaixo dos ideais mais básicos de moralidade, igualdade e justiça social, elementos que resistem por pouco tempo aos argumentos e fundamentos postos pelas Ciências Sociais na reflexão crítica frente aos fenômenos sociais. Eis o seu caráter de contravenção ao poder, como dissera o sociólogo Pierre Bourdieu, acerca da capacidade que teria o campo de contrariar o poder e os poderosos.

As Ciências Sociais se fazem presentes em diferentes frentes, seja diretamente pelos seus profissionais seja por meio de seus conteúdos diluídos no tecido social. Além do campo acadêmico e escolar, os espaços de atuação profissional são variados: Partidos, sindicatos, ONGs, movimentos sociais, gestão pública, agências e institutos de pesquisa, consultoria em órgãos públicos, assessoria, secretarias de governo, associações, empresas, entidades internacionais, fundações, repartições públicas, museus, secretaria de educação, entre outros.

Considerando tais aspectos compreende-se que os recentes ataques sofridos pelo campo das Ciências Sociais são aviltantes, seja por meio de redução da carga horária da disciplina nas escolas ou na tentativa de difamação e deslegitimação pública do reconhecimento e reputação da área, impactando a identidade e as oportunidades dos/das seus/suas profissionais, bem como constrangendo e assediando aqueles/aquelas que na sociedade como um todo mobilizam seus saberes. Entende-se que os ataques se dão pela natureza crítica desta ciência, sobretudo, no atual contexto do neoliberalismo conservador, cuja traço é profundamente antissocial e não suporta a análise crítica da vida coletiva e da visão colonial que hegemoniza as instituições sociais.

Os ataques as Ciências Sociais são para que não possamos compreender cientificamente as nossas mazelas sociais e ampliar a nossa imunidade coletiva contra o autoritarismo e a favor da imaginação social. Ataques se dão a área – acusações como de improdutividade e de doutrinação – e aos seus egressos – caso de Marielle Franco, cientista social, estudiosa da segurança pública, defensora dos direitos humanos, membra da comunidade LGBT, mulher negra, assassinada em 2018.

Os ataques são muitos, diversos e constantes. Em 2019, a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) publicou uma nota contra as ameaças de corte de financiamento às Ciências Sociais. O presidente Jair Bolsonaro afirmou que cortaria verbas para cursos de Humanas para focar naqueles cursos, entendidos como os únicos, que trazem retorno imediato ao contribuinte (veterinária, medicina, engenharia... – a propósito, esquecendo-se que essas áreas também dialogam com as Ciências Sociais).

O Ministro da educação à época, Abraham Weintraub, afirmou que a área das “sociais” não deveria ser financiada com recurso público – “Não quero sociólogo, antropólogo e filósofo com o meu dinheiro”, declarou referindo-se aos recursos oriundos de impostos. Para ele, era preciso retirar verbas desses cursos para investir naqueles que “geram retorno de fato”, em oposição às faculdades de Humanas. Com tais manifestações, esses atores políticos querem ter o poder – que não o tem – de determinar a distribuição de recursos na universidade, asfixiando determinadas áreas do conhecimento e ferindo a autonomia universitária.

Como compreender o fato de que um campo do conhecimento e uma profissão possa ser tratada como inimiga? Passa por essa questão o fato de estarmos nos referindo a uma ciência social que com muita frequência, por meio da sua abordagem, contribui para elevar a capacidade de pensar e de agir dos sujeitos. Trata-se de um campo do conhecimento sensível e influenciado pelos atores coletivos atuantes nas lutas sociais, que demonstra que existem diferentes modos de vida coletiva e que o novo pode ser construído no presente. Para os movimentos sociais e para os trabalhadores que não aceitam as desigualdades como inevitáveis, as Ciências Sociais críticas e que se colocam ao lado das causas populares, somam-se na busca pela emancipação humana.

BIBLIOGRAFIA

BURAWOY, Michael. 1.Por uma sociologia pública; 6.O futuro da Sociologia.  In: BRAGA, Ruy; BURAWOY, Michael. Por uma sociologia pública. São Paulo: Alameda, 2009.

 

SBPC se manifesta em defesa das Ciências Humanas e Sociais: http://portal.sbpcnet.org.br/noticias/sbpc-se-manifesta-em-defesa-das-ciencias-humanas-e-sociais/ (Acesso em agosto de 2022)

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por Laura Senna Ferreira
Professora do departamento de Ciências Sociais da UFSM. Doutora em Sociologia

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