Em tempos de reflexão Publicada em 26/06/2024 487 Visualizações
Eu demorei muito para decidir o que escrever neste texto. Ganhei uma semana a mais e, confesso, suspirei aliviada. Pude sentir a alegria que estudantes sentem quando me pedem mais prazo. Eu sempre concordo. Suspiram com alívio, mas sabem que a demanda continua lá. À espreita.
Mas uma hora a inspiração precisa chegar. Por hora e por aqui, preciso confessar. É técnica de criação que ensino em sala de aula: ainda que as ideias faltem, que a bendita inspiração não venha, começa, por alguma ponta, a desenrolar o novelo das palavras. Eu comecei e, sendo o mais sincera possível com você que está lendo, eu ainda não sei muito bem aonde este texto vai dar. Mas que esse não seja um motivo para você desistir, assim como eu não desisti. Agarrei firme na mão da nossa senhora dos prazos estendidos e seja lá o que ela quiser.
Com destino certo ou em um percurso andarilho, como é mais o nosso caso, meu, seu e deste texto, uma garantia posso dar: uma luz barthesiana guia o meu caminho e, sem saber mesmo o rumo que irá tomar, eu desejo este texto. O que Barthes dizia é que se eu leio algo com prazer, é porque aquelas linhas foram escritas com prazer. Porém, o contrário não é exatamente uma verdade. Tanto não é uma via de mão dupla, que escrever com prazer não me garante que a leitura seja feita da mesma forma. Quem lê, precisa ser sorvido por quem escreve, e que no entre se crie um espaço de fruição. Barthes diz ainda que não é a pessoa do outro que é necessária, mas justamente o espaço: "possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja um jogo". Sinceramente, eu quero que tenha jogo. Mas estou fora de forma. Não, não é falta de escrita, é falta de sentir.
Uma casca grossa. Foi isso que criei nos últimos meses. Enferrujei. Preciso tirar camadas feito cebola e vale até dar uma choradinha, um sinal de que ainda estou viva e cheia de graça. Eu desejo que este texto saia de mim, me desembruteça. Mas e o que causa essa espécie não tão rara de petrificação sentimental, doutor? Te passo a receita em quatro tópicos:
- Uma rotina justa demais. Muito trabalho comprimido entre os horários de deixar e buscar o filho na escola. Minutos contados para o próximo compromisso e, quanto mais atrasada a gente está, menos a criança está interessada em ficar. Um abraço apertado e muitos apelos: mamãe, não quero ficar sozinho na escola hoje. Eu te peço coragem - a vida não é só sobre os nossos quereres - e felicidade por estar em uma ótima escola. Te lembro de como cantamos I wanna see you be brave juntos, há poucos minutos, no carro. Você me pediu para ouvir de novo e eu aumentei o volume. A minha vontade? Te pegar no colo e te dizer que vamos para casa. Mas eu endureço, falo firme, respiro fundo, repito o quanto o meu trabalho é importante, o quanto a escola é o seu lugar. Saio rezando para não ouvir o teu choro e engulo o meu. Seguimos, filho.
- O último mês teve ares de pandemia, um déjà vu que não quero voltar a ver. Um dia começou a chover e não parou mais. Do alto do prédio - e dos privilégios de ter casa, estar seca e ter cama - foi difícil ver a chuva levar de vidas a sonhos, memórias, o presente e muito do futuro. Endureci. Quem sou eu para sentir? A hora era de ajudar quem realmente precisava.
- Em meio às chuvas e trovões, entramos em greve. Na verdade, foi um pouco antes. Em uma assembleia cheia, os crachás se levantaram e, por valorização docente e da universidade, decidimos parar. Decisão coletiva. Mas as chuvas vieram e levaram também um pouco do ânimo. Dia a dia, os crachás foram baixando: mas e o que vão dizer da universidade parada diante dessa tragédia toda? Eu, cá com os meus botões, só consegui pensar que o que muda a vida é universidade forte, acessível, e isso é também o que muda a ideia das pessoas sobre a universidade. Seguimos em greve. Nas assembleias, aprendi muito sobre carreira, sobre opostos e contraditórios, sobre coletividade e sobre a função de um sindicato. Agora, crachás para cima indicam que é hora de voltar. Ganhos mínimos. Sem a proposta que queríamos, sem a valorização que esperávamos, sem muitos que ficaram pelo caminho. Endureci mais um pouco. Lembrei das greves em que acompanhei minha mãe. Sinetas e o Palácio Piratini ao fundo. E de um quadro que tínhamos na sala de casa, foto célebre, frase célebre: hay que endurecerse sin perder la ternura jamás.
- Mas aí veio o PL 1904 e uma gente que teima em legislar sobre o corpo alheio. Legislar não: manobrar, dissimular, chantagear. Transformar esse corpo em pauta-bomba, agitar os ânimos de um país polarizado, sem se importar com o que está em jogo: corpo das mulheres, vida das meninas. No Brasil, 320 crianças e adolescentes sofrem situações de exploração sexual a cada 24 horas. Em média, a cada quatro casos de violência sexual, em três a vítima é criança ou adolescente. Endureci… mais um pouquinho.
Mais um pedacinho da minha crosta se formou. Uma carapaça que vai nos blindando, formada não apenas a partir das coisas que relatei até aqui, mas da vida. Eu desejei chegar até o fim deste texto. Desenlear esses nós, e com a ajuda das palavras, retirar as camadas. Ter minha pele como esponja de novo, capaz de sentir e refletir. Lembrar que para escrever, mais do que refletir, é preciso sentir, e eu sinto muito. Que bom que chegamos até aqui.
1. CARTOLA. O mundo é um moinho. Rio de Janeiro: Marcos Pereira, 1976
2. BARTHES, R. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. SP: Perspectiva, 2002. (trabalho originalmente publicado em 1973)
3. RITA LEE. Saúde. Som Livre: São Paulo, 1981.
4. SARA BAREILLES. Brave. Epic. 2013
Sobre o(a) autor(a)
Por Juliana PetermannProfessora Associada do departamento de Ciências da Comunicação da UFSM