O Ser Negro e a Universidade: reflexões de um docente negro Publicada em 21/11/2024 46 Visualizações
Chegou o 20 de Novembro. Pela primeira vez no Brasil, é feriado nacional. Depois de tantas lutas, Oliveira Silveira (1941-2009) e os(as) quilombistas fazem kizomba em òrum. Mas, não nos deixam esquecer em àiyé que - consciência negra é ter conhecimento a respeito de nós mesmos. Por isso, neste texto, gostaria de abordar brevemente alguns dos aspectos acerca do significado da expressão entre o ser negro ,bem como sua relação com o campo do saber, para repensar caminhos possíveis à Universidade, instituição que se tornou, no mundo moderno ocidental, o centro elementar de sistematização e difusão do conhecimento considerado válido.
Nesse sentido, destaco inicialmente que somos herdeiro(a)s de uma senda ontológica oriunda do colonialismo, da escravidão e de seu subjacente racismo, na qual o(a) negro(a) constituiu a zona de não-ser, uma região extraordinariamente estéril e árida (FANON, 1952) [1]. Não logramos, portanto, no alvorecer da modernidade, da possibilidade de nos constituirmos enquanto ser, somos objetificados(as), quiçá flertaríamos com a animalidade. Nas palavras do filósofo africano, o(a) negro(a) constituía o resto - lugar onde vigora o puro poder negativo, o(a) negro(a) e a África, em particular, eram representados como símbolos de uma vida vegetal e limitada (MBEMBE, 2018) [2].
Diante desta ausência de essência, como podemos falar em um ser negro? Ou ainda mais, da relação deste ser com a produção do saber? Acontece que a zona árida é também o lugar de um acontecer, de um despojamento que forja o ser negro; o ser negro é um devir, é um constante processo de tornar-se ser. A psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza descreveu muito bem esta contingência em sua obra Tornar-se Negro (1983) [3]. Isso significa que estamos em um constante processo de torna-se sujeito(a)s, reencontrando nossas origens, ressignificando nossa subjetividade, compreendendo nossa corporeidade e estética, dentre outros elementos, que buscam o resgate de experiências e potencialidades.
Kilomba (2019)[4], define que sujeito(a)s são aquele(a)s que conseguem definir sua própria realidade, estabelecer suas próprias identidades, nomear suas próprias histórias. Como objetos somos sempre definidos pela exterioridade, sendo a passagem de objetos à sujeito(a)s um ato político de descolonização. Porém, é um ato constantemente atravessado pelos dispositivos do racismo, uma realidade violenta, na qual a construção da diferença vincula-se a valores hierárquicos e a relações de poder que condicionam as desigualdades globais na partilha e no acesso aos recursos valorizados (tais como o emprego, a habitação, a saúde, a educação, a representatividade política, ou seja, todas as esferas da vida social, econômica e política). O racismo é, na perspectiva da autora, estrutural, institucional e cotidiano.
Não obstante, é na medida em que reposicionamos a condição negra de não-ser a ser, ou de objeto a sujeito, é que podemos friccionar a relação entre o(a) negro(a) e a produção do saber.
Nesse mesmo sentido, a crítica de outro filósofo do continente africano, o congolês Valentin Mudimbe (2019) [5], em sua reflexão acerca da estrutura colonizadora, o levou a discutir a riqueza do que denomina de gnose africana, ou seja, a ordem do conhecimento africano, que implica em buscar conhecer, em estabelecer métodos e modos de investigação para atingir tal conhecimento, ou até mesmo para conhecer o outro. Assim, interpreta esta gnose como um sistema de conhecimentos, onde questões filosóficas fundamentais emergem, tanto sobre a forma e o conteúdo do conhecimento africanizante; bem como sobre o estatuto dos sistemas de pensamento tradicionais e sua relação com o conhecimento normativo - ou seja, com a episteme euro-norte-centrada ocidental.
Assim, aponta que surgiram dessa gnose tanto os discursos africanos sobre a diferença, quanto às ideologias da alteridade - dos quais a negritude, a personalidade negra e a filosofia africana podem ser consideradas como as mais bem estabelecidas na história intelectual de África. Identidades e alteridades assumidas são noções que versam sobre a relação entre o eu e o outro, conformam, um sujeito-eu ou um sujeito-nós, estruturado por múltiplas histórias, as quais tem sido silenciadas no campo da episteme referida. Isto posto, considera-se que esta relação entre a produção do sujeito-eu e do sujeito-nós, presente na sabedoria ancestral africana, é um dos elementos das potências da gnose africana, na medida em que esses saberes se contrapõem à experiência espaço-temporal ocidental, marcadas pelo princípio do alterocídio - uma relação de fabricação do outro como dessemelhante de si, visto como um objeto propriamente ameaçador, do qual é preciso se proteger, desfazer, ou destruir, na impossibilidade de seu total controle (MBMEBE, 2018).
Em confluência a essa perspectiva, situa-se a noção de cosmopercepção africana trabalhada pela socióloga nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí (2021) [6], cujo o termo representa uma forma mais inclusiva de compreensão das concepções de mundo dos diferentes grupos culturais, visto que estes mobilizam uma combinação de sentidos em suas relações e percepções. Ao destacar esta noção, com base na sociedade yorubana, a autora explicita haver uma contraposição em relação ao mundo ocidental, cuja razão toma como elemento fundamental, o olhar como condição para distinção das lógicas culturais, reduzidas, portanto, na noção epistemológica de cosmovisão.
Portanto, há um vasto saber negro circunscrito em nosso fazer, em nosso existir desde África até os territórios afrodiaspóricos. Porém, chegamos nos bancos das Universidades, o pretenso espaço da diversidade do saber, onde muito pouco se discute que a raízes destas instituições foram negras, a exemplo da Universidade al-Qarawiyyin, em Fez, Marrocos, reconhecida como uma das mais antigas do mundo ocidental. Ao contrário disso, nossa referência de estudos, inclusive para pensar as reformas universitárias é Bolonha, na Itália. Todo o gigantesco trabalho de Cheikh Anta Diop (1923-1986), que desde a tese do Egito Negro [7], revelou um mundo de ciência, filosofia e saber constituído na cosmogonia egípcia, fora capturado e transformado no cânone filosófico, científico e político greco-latino e seu adjacente eurocentrismo.
Porém, o(a) negro(a) está na Universidade e quer saber - onde está o seu saber? No universo do conhecimento ocidental, objetos circulam, sujeitos são produzidos, controles se estabelecem, fractais se multiplicam. Mas, os saberes ancestrais, as filosofias do nós, o sentir-pensar, a circularidade, a oralidade, a afetividade e tantos outros valores civilizatórios pouco ecoam em nossas salas aula e formulações epistemológicas. Mas, a senda foi aberta e o ser negro chegou para descolonizar a instituição que o colonialismo tomou para si, com nossos adinkras, com nossos corpos-territórios, cheios de ladino-amefricanidade-quilombista e desejos de comunidade, faremos kizomba para transformar a espaço fragmentário da pretensa universalidade, que ainda nos violenta material e simbolicamente, que constantemente desperdiça a nossas experiências e invalida/injustiça nossos saberes. Pois o(a) negro(a), tornou-se intelectual e aprendeu com seus antepassados que ser intelectual é ser contra a corrente (Milton Santos, 1926- 2001).
Além deste artigo, professor Anderson nos concedeu uma entrevista ao Ponto de Pauta com reflexões a respeito do dia da consciência negra (20 de novembro) no Brasil. Acesse aqui.
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Notas:
1. FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008 [1952].
2. MBEMBE, A. Crítica da razão negra. 1.ed. Rio de Janeiro: n-1 Edições, 2018.
3. SOUZA, N. S. Tornar-se negro. Ou As vicissitudes da identidade negro brasileira em Ascenção social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
4. KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
5. MUDIMBE, V. Y. A invenção da África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2019.
6. OYĚWÙMÍ, O. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
7. DIOP, A. C. The African Origin of Civilization: Myth or Reality. 1.ed. Chicago: Lawrence Hill Books, 1989.
Sobre o(a) autor(a)
Por Anderson Luiz Machado dos SantosProfessor do departamento de Geociências da UFSM, integrante da coordenação do NEABI/UFSM e do MNU-Santa Maria