UFSM: 30 anos depois da primeira eleição direta a reitor
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03/01/16 20h49m
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Ricardo Rossato, vice do reitor Giberto Benetti, rememora erros e acertos do período
No dia 23 de dezembro de 1985 tomava posse o primeiro reitor eleito pela comunidade universitária da UFSM, e um dos primeiros do país, após o fim do regime militar iniciado após o golpe de 1964, mandato que se estende até dezembro de 1989. Não foi um processo fácil, pois mesmo tendo sido eleito pela comunidade, o professor do curso de Engenharia Civil, Gilberto Aquino Benetti, precisava do aval da Presidência da República. Após um mês de idas e vindas, período em que Benetti emagreceu vários quilos, acabou nomeado. Entretanto, Benetti assume tendo um vice da gestão anterior, que era a do reitor Armando Vallandro. O professor Olindo Toaldo permanece como vice de Benetti até meados de 1987, quando o professor Ricardo Rossato, que pertencia ao departamento de Fundamentos da Educação, é eleito também pelo voto direto para a vice-reitoria e assume em junho daquele ano. Rossato cumpre uma via sacra até sua nomeação, que também passava por injunções políticas, seja na Presidência da República ou no Ministério da Educação, mesmo em um governo que já respondia pela chamada Nova República, com atitudes que deveriam ser opostas às do regime ditatorial.
Passados 30 anos, recorremos à memória do professor Ricardo Rossato, hoje aposentado e com 69 anos de idade, para saber um pouco mais sobre aquele período, tendo em vista que o professor Gilberto Benetti é falecido desde 2008. Em seu depoimento, disponível junto a essa matéria, em vídeo, Rossato lembra que a eleição direta para reitor era uma reivindicação antiga e que chegou a ser pauta da greve deflagrada em 7 de maio de 1984, ainda durante a ditadura militar. Segundo ele, na época, a ANDES (Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior) lutava para que as eleições diretas fossem em todos os níveis, inclusive nas universidades, e para todos os cargos. Já anteriormente, em 1981, houve uma tentativa de eleição direta para reitor na UFSM, que não foi reconhecida pelos conselhos superiores. O processo foi chamado pela Apusm, ABS (atual Assufsm), DCE, e teve entre seus candidatos o professor Gilberto Aquino Benetti e o professor José Fernandes.
Destacamos a seguir os principais trechos da entrevista com o professor Ricardo Rossato, em que ele rememora, por exemplo, o rumoroso episódio da assembleia universitária, em que os segmentos decidiram pela greve, que acabou sendo referendada no Conselho Universitário, com o voto de desempate proferido pelo reitor Benetti. O ex-vice-reitor fala ainda sobre os conflitos com o movimento estudantil e com outros segmentos da UFSM, que esperavam uma gestão de maior proximidade em suas ações. Ricardo Rossato fala, e se emociona, sobre o terrível período em que, participar de uma greve, podia significar desde ameaça de demissão ou mesmo ameaça à integridade física, inclusive dos familiares. Acompanhe os principais trechos e, ao final da matéria, o vídeo, que tem duração de 44 minutos.
O Vice e a indicação pelo regime militar
Benetti assume, mas tem como vice durante dois anos, alguém não eleito pela comunidade, que foi o professor Olinto Toaldo. Rossato conta que, naquela época, o vice-reitor era indicado pela Presidência da República. O reitor Armando Vallandro, que também era uma das lideranças locais da antiga Arena (depois PDS), e que teve a última gestão da UFSM antes da democratização do país, segundo se comentava, tinha preferência para seu vice o professor Fugued Calil. Entretanto, acabou nomeado para a vice-reitoria, o professor Olindo Toaldo, que, segundo Rossato, era a pessoa que tinha bastante proximidade política com o então deputado Nelson Marchezan (PDS), um dos líderes de governo do general João Batista Figueiredo. Então, havia uma disputa muito forte, que passava por uma lista sêxtupla indicada à Presidência da República. Conforme Rossato, ao longo de um ano e meio houve a disputa interna no governo até a nomeação de Toaldo, o que gera essa defasagem temporal na nomeação que se reflete depois na eleição de Rossato.
Após a eleição de Benetti, Ricardo Rossato assume como pró-reitor de Extensão. Na sequência ocorre o processo para eleição do vice, do qual participam, além de Rossato, os professores Sérgio Pires e Nei Pippi. Rossato é eleito, mas em função de que a nomeação continua sendo da Presidência de República, ocorre um impasse político. Na ocasião era ministro da Educação, Jorge Bornhausen, que tinha sua história vinculada ao conservadorismo político. Entretanto, destaca Rossato, Bornhausen tinha nomeado todos aqueles que haviam sido eleitos pela comunidade universitária. Mas, condicionava a nomeação de Rossato, que não tinha filiação partidária, à assinatura de uma ficha junto ao PFL. E, para sair desse imbróglio, o deputado recém eleito (1986), Nelson Jobim (PMDB), que tinha livre acesso ao então ministro da Justiça, Paulo Brossard, faz uma ação política junto ao governo federal. Havia uma reivindicação antiga do Conselho de Reitores de que o vice-reitor deveria ser nomeado pelo reitor, e isso acabou atendido pelo presidente José Sarney. Pressionado pela filiação ao PFL, Rossato comenta que jamais aceitaria essa condicionante para poder assumir o cargo. A postura de rejeitar a partidarização foi explicitada inclusive em uma reunião pública na Câmara de Vereadores.
Rossato destaca ainda o “incômodo” de extrapolar seu mandato na vice-reitoria adiante, já na gestão do reitor Tabajara Gaúcho da Costa, que assumiu no final de 1989.
Questionado, Ricardo Rossato confirma que durante o regime militar, até o início do processo de redemocratização, a condição para assumir tanto a reitoria como a vice-reitoria era ter filiação junto aos partidos de sustentação do governo.
‘Pinochet de Camobi’
A gestão do professor Gilberto Benetti, que ocorreu de 1985 a 1989, foi um tempo de muitos conflitos, especialmente com o movimento estudantil. Durante esse período, até um muro da UFSM foi pichado com a expressão “Benetti, o Pinochet de Camobi”. Rossato refuta as acusações de que a gestão tivesse um ranço autoritário e, muito menos, que Benetti tivesse qualquer semelhança com o general e ditador do Chile, Augusto Pinochet.
Para Ricardo Rossato, o período foi conflituoso e tinha muito relação com as expectativas sobre a gestão, que era encabeçada por docentes oriundos da Associação dos Professores (Apusm). Benetti e Rossato haviam presidido a Apusm e, em 1984, também fizeram parte da direção do movimento grevista, junto com outros nomes que integravam ou apoiavam a gestão, entre os quais, os professores Ronai Pires da Rocha, Luiz Carlos Pistóia de Oliveira, Ronaldo Mota e Érico Henn. Daí se tinha uma expectativa, argumenta Rossato, que, em função dos vínculos com as entidades, especialmente a Apusm, e pela postura de liderança nos movimentos grevistas, que essas pautas seriam assumidas pela gestão da reitoria. Contudo, Rossato explica que a reitoria procurou estabelecer uma diferenciação entre o que era a ação sindical e o que era a política da Administração Central.
Dessa forma, o ex-vice-reitor explica que, o DCE de então, comandado por nomes como o de Paulo Pimenta e Claudio Langone, pressionavam por reivindicações da pauta estudantil, que incluíam ações como ocupação de reitoria e trancamento da entrada do campus. Um outro conflito acabou sendo estabelecido com a Associação dos Servidores (ABS) porque a gestão voltou a instituir as 8h de trabalho, quando vigiam até então as 6h.
Para Rossato, as características da personalidade de Gilberto Benetti eram de uma pessoa calma, centrada e ética, e que apesar de ser visto como uma pessoa autoritária, que isso não correspondia à prática. As decisões em sua gestão sempre foram tomadas de forma colegiada. E mesmo a expressão em que era comparado com Pinochet, segundo Rossato, não era unanimidade entre os estudantes.
‘Morrer abraçados’
Em relação à greve de 1984, Rossato cita um fato pitoresco, até mesmo em função da tensão que era realizar um movimento paredista num tempo em que servidores públicos não tinham esse direito e, por isso, eram passíveis de demissão.
Chamados ao gabinete do reitor Armando Vallandro, durante a greve de 1984, os grevistas foram alertados de que o Ministro da Educação ameaçava demiti-los e cobrava uma posição do reitor, que também teria sido ameaçado de demissão. Nesse momento, comenta Rossato, o professor Pistóia teria dito de forma irônica e provocativa:
- Pois é, professor (Valandro), vamos morrer abraçados?
Assembleia universitária
A assembleia universitária estava prevista no estatuto da universidade desde os tempos da gestão do fundador, reitor José Mariano da Rocha Filho. Só não dizia como viabilizá-la. Então, ela foi realizada com os três segmentos, levando-se em conta que a votação se daria através do voto paritário. O ponto em debate era de que os segmentos entrariam em greve até que se resolvesse a pauta estudantil, que tratava da questão do restaurante universitário. E a greve foi aprovada especialmente a partir da maciça participação dos estudantes. Essa decisão foi levada ao Conselho Universitário, numa reunião longa, tensa, com direito a abaixo-assinado de 70 professores se rebelando contra a possibilidade de haver greve. Houve empate na decisão e o reitor Benetti, com o apoio dos membros da gestão, deu seu voto de minerva favorável à greve, respeitando a decisão da assembleia universitária. A decisão da assembleia, referendada pelo Conselho, admite Rossato, acabou sendo um divisor de águas na instituição, quando os setores conservadores se uniram em um processo reativo que mais tarde inviabilizou, por exemplo, que a Apusm se transformasse em sindicato.
Polícia chamada para desocupar a Casa do Estudante
A Casa do Estudante estava em construção e um dos pleitos dos estudantes era de que o apartamento na Casa (CEU) fosse para duas pessoas e não para três. E a outra pauta apresentada era que a lista dos moradores que ocupariam os quartos, deveria continuar sob o controle exclusivo da direção da Casa, sem que a reitoria tivesse acesso. Ao pedir a lista, isso gerou conflito. Em um determinado dia, o reitor Benetti tinha viajado a Brasília e os estudantes ocuparam o prédio da Casa. E, assumindo a decisão como pessoal, Benetti recorre à Justiça para pedir a reintegração de posse. No exercício da reitoria, Rossato lembra que houve a decisão judicial para fazer a reintegração e ele se reuniu com o comandante da Brigada Militar, quando foi pedido que não houvesse truculência durante a desocupação. Entretanto, a medida não saiu exatamente como o esperado e, hoje, Rossato reconhece que a decisão não foi a mais acertada e completa: “não foi a nossa melhor decisão”. Ele atribui essa medida a um certo “cansaço” em função de vários conflitos com os estudantes, como as várias ocupações do prédio da reitoria.
Frutos colhidos
Ricardo Rossato avalia que o período foi de bastante aprendizado e que o principal fruto colhido desse processo foi a consolidação da democracia, com a escolha do reitor pela comunidade sendo sacramentada pelos governos democráticos. No entanto, ele lembra que aqueles anos foram muito difíceis, com precarização e a falta de recursos, que inviabilizavam uma maior qualificação da universidade, seja em termos de graduação ou da pós-graduação. E também, a falta de expansão das universidades, refletida pela dificuldade na realização de concursos públicos.
Comissão da Verdade
É importante que se resgate tudo relativo a esse período e foi bom que o reitor (Paulo Burmann) tenha feito isso ao instituir a Comissão da Verdade na UFSM, analisa Rossato. No entanto, ele não acredita que haverá avanços em grandes descobertas sobre essa época, pois o próprio país tem uma legislação ainda bastante retrógrada quando se trata da transparência de documentos. Ainda temos muitos documentos, muitas políticas, que permanecem secretas, diz ele. Para Ricardo Rossato, a Lei da Anistia favoreceu na realidade, os militares, citando como exemplo, o coronel Brilhante Ustra, que morreu recentemente, sem nunca ter sido responsabilizado pelos crimes cometidos durante a ditadura.
No caso da UFSM, ele cita que, assim que o reitor Benetti assumiu a reitoria, se ouviu falar que documentos foram retirados do setor da antiga Assessoria Especial de Segurança e Informações (Aesi) e queimados. Perguntado se lembrava como funcionava a Aesi, Rossato enfatiza que os documentos existentes desapareceram e, que, o primeiro ato do reitor eleito foi extinguir a Assessoria. Indagado sobre as lembranças de quem comandava a Assessoria, Rossato diz que não apenas não lembra, como também é fato que, na época não se sabia bem quem trabalhava para o setor de informações, pois as pessoas atuavam protegidos pelas sombras. Ele conta episódios de ameaças que recebeu, por ter relatado em uma assembleia da Apusm, que não haviam obtido apoio para a obtenção de passagens a Brasília, de alguns deputados, como Nelson Marchezan. E, emocionado, relata que na greve de 1984, sua família também recebera ameaças anônimas.
Para conferir a íntegra da entrevista, clique logo abaixo.
Entrevista e texto: Fritz R. Nunes
Fotos: Rafael Balbueno e Arquivo/UFSM
Vídeo: Ivan Lautert
Assessoria de imprensa da Sedufsm