Qual a autonomia que a universidade tem para escolha de reitor e vice?
Publicada em
07/05/21
Atualizada em
08/05/21 11h25m
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UFSM prepara-se ao processo eleitoral, mas intervenções em outras instituições são precedentes que preocupam

A segunda-feira, 10 de maio, é a data definida pelo calendário aprovado no Conselho Universitário (Consu) da UFSM, no dia 28 de abril, para que chapas se inscrevam para participar do processo eleitoral que deverá escolher o reitor e vice da instituição. Diferente de pleitos anteriores, dessa vez não haverá uma consulta paritária entre os segmentos, mas, sim, uma pesquisa de opinião. A consulta, segundo discutido no Consu, se tornou inviável a partir de 2018, quando elaborada a Nota Técnica nº 400, que só permite a deflagração através do Conselho Universitário, na proporção de 70% de docentes a 30% dos demais segmentos, conforme determina a Lei de Diretrizes e Bases (LDB).
As mudanças implementadas na UFSM buscam fechar possíveis lacunas de um questionamento jurídico ao resultado. Entretanto, qual a garantia de que esse processo será respeitado no momento em que for encaminhada a lista tríplice para o Ministério da Educação? Desde que assumiu o governo Bolsonaro, em muitas instituições, os mais votados pela comunidade não foram os nomeados. São os casos, apenas citando o RS, dos dirigentes da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e da instituição multicampi, Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), que possui campi também no PR e em SC.
Desde o final da década de 80, após a redemocratização do país e a elaboração da “constituição cidadã”, raras vezes o governo federal deixou de nomear o mais votado pela comunidade universitária em uma lista tríplice. Mesmo após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 1996, que definiu que os conselhos superiores das instituições precisam ter percentual majoritário de professores e professoras (70%), sempre foram encontrados métodos para que a escolha de reitor e vice não afrontasse a legislação. Porém, a nomeação do (da) mais votado (a) sempre contou com a anuência do governante ou da governante em exercício. Essa complacência, entretanto, deixou de acontecer a partir do governo de Jair Bolsonaro.
UFFS resiste à intervenção até hoje
No Rio Grande do Sul, o primeiro caso de desrespeito à escolha da comunidade ocorreu na Universidade Federal da Fronteira Sul, que possui campi nos três estados do sul. Lá, a chapa encabeçada pelo professor Anderson Ribeiro, da área de Física, do campus de Erechim (RS), foi a mais votada em um primeiro turno, com 54% dos votos. Já a chapa do docente nomeado reitor pelo governo federal, encabeçada por Marcelo Recktenvald obteve 20% dos votos no primeiro turno, tendo encolhido ainda mais no segundo turno, alcançado apenas 8% dos votos. A chapa vencedora do primeiro turno manteve-se à frente no segundo turno, alcançando 53% dos votos.
Em depoimento à assessoria de imprensa da Sedufsm, o professor Anderson Ribeiro diz que o percentual de votos da chapa de Recktenvald seria ainda menor se fosse considerada apenas a votação da comunidade acadêmica. Ocorre que a UFFS é uma das instituições que possui uma participação significativa da comunidade externa, o que inclui sindicatos, cooperativas, setores empresariais. Segundo Ribeiro, “houve um intenso trabalho de setores da comunidade regional mobilizados pelo nomeado para se inscreverem no processo eleitoral e votar”.
Após a nomeação de Recktenvald houve uma intensa mobilização, em que estudantes ocuparam a reitoria da instituição, docentes fizeram assembleias e definiram que o desfecho dado pelo governo era ilegítimo. O embate teve como um dos pontos altos uma votação junto ao Conselho Universitário em que se pedia a destituição do dirigente máximo da UFFS. Apesar das diversas manobras, o conselho aprovou a destituição por 35 votos a 13. Diante do resultado, a reitoria ingressou na justiça, que anulou a decisão da justiça, na primeira instância, sob a alegação de que a única motivação para uma destituição seria no caso de um ato que caracterizasse improbidade administrativa.
Segundo o diretor da seção sindical do ANDES-SN na universidade (Sinduffs), Vicente Ribeiro, que participou da coordenação da entidade de 2019 a 2021, e seguirá de 2021 até 2023, havia uma agenda de luta para 2020, mas a comunidade foi surpreendida pela pandemia do movo coronavírus. Ainda assim, iniciativas foram tomadas, como por exemplo, uma denúncia encaminhada ao STF devido a declarações antidemocráticas do dirigente da instituição. Além disso, a seção sindical integra a Frente Nacional pela Autonomia Universitária, cujo objetivo é modificar as leis que ferem o preceito constitucional da autonomia.
Na visão do candidato mais votado, Anderson Ribeiro, em que pese o arrefecimento da luta em função das condições sanitárias, a situação de conflito continua. Esses embates são motivados “pelas constantes tentativas de imposição de agendas governamentais à comunidade acadêmica, o que aconteceu desde o princípio, como com a tentativa de imposição da adesão ao programa ‘Future-se’, e se manteve nos tempos atuais com tentativas de manutenção de aulas e/ou modelos remotos inadequados na situação da Covid-19”, diz ele.
UFRGS e a falta de legitimidade do reitor
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a situação foi parecida com a da UFFS. A chapa mais votada para a reitoria foi a 2, que tinha o professor Rui Oppermann como candidato a reitor e Jane Tutikian como a vice. A primeir colocação na consulta foi tanto junto à comunidade universitária assim como entre os membros do Conselho Universitário. Entretanto, o nomeado pelo MEC foi o terceiro e último colocado na consulta, professor Carlos Bulhões que, porém, tinha como “padrinhos políticos” dois deputados bolsonaristas: o federal, Bibo Nunes (PSL), e o estadual, Rui Irigaray (PSL). Houve diversos protestos na universidade, boa parte deles capitaneados pelo DCE, com apoio dos demais segmentos, mas a nomeação não foi revertida.
A chapa 3, que foi a segunda colocada na consulta da UFRGS, era liderada pela professora Karla Muller, tendo como vice, a professora da Faculdade de História, Claudia Wasserman. Questionada sobre a forma com que a sua chapa recebeu a nomeação de Bulhões, Claudia Wasserman disse à assessoria de imprensa da Sedufsm que “o contexto nacional após a eleição de Bolsonaro, incluindo desprezo pela educação como um todo, e em especial ataque às Universidades Públicas ,nos indicava que havia a possibilidade de indicação do último colocado na consulta à comunidade, visto que houve também esforço por parte do referido professor, com interferência de políticos bolsonaristas, para que esse desfecho ocorresse”.
Ainda conforme a avaliação da historiadora, o que ocorreu “está sendo extremamente prejudicial para nossa Universidade por dois motivos: a falta de legitimidade da administração central e a ineficiência dessa administração que estamos assistindo no dia-a-dia da Universidade”, afirma ela.
Ufpel: um drible na intervenção bolsonarista
Na Universidade Federal de Pelotas (Ufpel), em janeiro feste ano, o mesmo modus operandi do governo federal. Inimigo declarado do reitor que saía, professor Pedro Hallal, coordenador da pesquisa Epicovid em todo o país, o presidente Jair Bolsonaro não nomeou o mais votado na consulta, professor Paulo Roberto Ferreira Júnior, do Centro de Desenvolvimento Tecnológico, que era o candidato de situação. Em seu lugar, nomeou a segunda colocada na lista tríplice, professora Isabela Andrade. Ocorre que Isabela havia feito parte da chapa encabeçada por Ferreira. Após a nomeação, em 7 de janeiro de 2021, eles responderam que, na prática, ambos comandariam a reitoria.
Em entrevistada via whatsapp à assessoria de imprensa da Sedufsm, Ferreira explicou quais os sentimentos após a não nomeação à reitoria e, ao mesmo tempo, como foi a construção de uma saída inusitada para o processo eleitoral da Ufpel. Segundo ele, ao constatar, as duas horas da manhã, que seu nome não havia sido referendado pelo MEC, a sensação foi de “perplexidade e tristeza”. “Estávamos organizados para fazer a gestão no formato em que eu seria o reitor e a Isabela (Andrade), que foi nomeada, seria pró-reitora de Planejamento. Eram os lugares em que nos preparamos para estar, eu me apresentei para a comunidade [na consulta] nessa posição de reitor”, enfatizou.
O professor destaca ainda que Isabela fazia parte da lista tríplice, assim como Eraldo Pinheiro, mas ambos integrantes do mesmo projeto político, tendo em vista que as demais chapas, derrotadas na consulta à comunidade, não se inscreveram para o referendo do conselho superior. “Então, éramos eu, a Isabela e o Eraldo. Nessa ordem. Tivemos as votações no Conselho Universitário. Tive muito mais votos que o segundo e o terceiro, porque já era esperado que o Conselho endossasse meu nome”, ressalta Ferreira.
Isso [a não nomeação] desestabilizou bastante porque não foi assim que a gente se apresentou. A Isabela era diretora de um centro de Engenharias, um grande centro da universidade. Ela tem todas as condições para ser reitora. Não é esse o ponto. O ponto é que a gente se preparou para fazer de outro jeito. Nesse momento seria eu o reitor. Eu e a vice-reitora convidamos a Isabela e o Eraldo, que foram membros da lista tríplice, para comporem duas pró-reitorias. A Isabela seria pró-reitora de Planejamento e Desenvolvimento. E o Eraldo seria pró-reitor de Extensão e Cultura. Somos o mesmo grupo, temos o mesmo projeto. Inclusive estamos fazendo a gestão da universidade com exatamente a mesma equipe se fosse eu o reitor”, acrescentou Ferreira.
O “jeitinho” encontrado pela chapa concorrente na Ufpel, apesar de inviabilizar uma intervenção do governo ao estilo feito na UFFS e na UFRGS, não foi bem recebido por todas as entidades. A seção sindical dos docentes (Adufpel), publicou uma nota em seu site, no dia 7 de janeiro, em que explicita divergência com o método. Diz um trecho do texto que: “A ADUFPel-SSind, historicamente comprometida com os preceitos democráticos e de autonomia das IFES, repudia mais esta intervenção do governo federal e está convocando a categoria para a construção de mobilização em defesa da democracia. Vivenciamos uma situação dramática de ataques aos serviços e servidores públicos e precisamos mover a roda da história. Envidaremos todos os esforços junto à comunidade e à sociedade para deslegitimar esse ato, na defesa intransigente de que reitor eleito tem que ser nomeado”.
Os limites da autonomia e os limites do governo
Em fevereiro deste ano, o plenário virtual do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, indeferiu pedido de liminar na Arguição de Descumprimento Fundamental (ADPF) 759, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) com o objetivo de que, na nomeação dos reitores e dos vice-reitores das universidades federais e dos diretores das instituições federais de ensino superior, o presidente da República, Jair Bolsonaro, indicasse os nomes mais votados nas listas tríplices enviadas pelas instituições. A decisão tomada pela maioria seguiu o voto do ministro Alexandre de Moraes.
Em dezembro do ano passado, o relator da ação, ministro Edson Fachin, havia concedido parcialmente liminar à OAB e definiu que a escolha do chefe do Poder Executivo deveria recair sobre os membros das listas tríplices que tenham recebido votos dos colegiados máximos das instituições universitárias e cumpram os requisitos legais de titulação e cargo. Ou seja, o escolhido pelo Presidente tem que estar na lista tríplice, mas não determina que tenha que ser o (a) mais votado (a).
Entretanto, a maioria dos ministros seguiu o voto de Alexandre de Moraes pelo indeferimento da liminar. Para ele, o ato de nomeação dos reitores de universidades públicas federais, regido pela Lei 5.540/1968, com a redação dada pela Lei 9.192/1995, não afronta a autonomia universitária, prevista no artigo 207 da Constituição Federal.
Segundo Alexandre de Moraes, trata-se de um ato de “discricionariedade mitigada”, realizado a partir de requisitos objetivamente previstos na legislação federal, que exige que a escolha do chefe do presidente da República recaia sobre um dos três nomes eleitos pela Universidade. “Se o chefe do Poder Executivo não pode escolher entre os integrantes da lista tríplice, não há lógica para sua própria formação, cabendo à lei apenas indicar a nomeação como ato vinculado a partir da remessa do nome mais votado”, disse.
No entendimento de Moraes, a autonomia universitária prevista na Constituição se concretiza por meio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996), que assegura a liberdade de gestão do conhecimento e a liberdade administrativa das universidades que os reitores integram, dirigem e representam, na condição de órgão executivo. Assim, analisa o ministro, o simples ato administrativo de escolha do reitor pelo presidente da República não teria o efeito concreto de interferir na autonomia universitária. “O próprio reitor é limitado pelos órgãos colegiados que, necessariamente, compõem a universidade pública”, ressaltou.
Apesar da decisão do STF, existe uma outra medida, que é uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade), movida pelo Partido Verde (PV), que deverá ser julgada no final de junho. Através dessa ação, o que se quer é garantir que o presidente nomeie o primeiro colocado das listas tríplices, a menos que haja um motivo que impeça essa nomeação, destaca o candidato a reitor mais votado na Ufpel, Paulo Ferreira Júnior.
Como evitar o desrespeito à decisão da comunidade universitária?
Para o eleito e não nomeado na UFFS, Anderson Ribeiro, “a raiz do problema está na não efetivação plena da Autonomia Universitária, nos moldes estabelecidos na Constituição Federal”. Diz ele que “as IFEs não têm autonomia de gestão financeira e patrimonial, uma vez que o orçamento é estabelecido de acordo com agendas do governo de plantão, ao invés de ser estabelecido como políticas públicas de estado. Também não gozam de plena autonomia administrativa, uma vez que não podem autodeterminar a sua gestão executiva.”
Ribeiro acrescenta ainda que “a lei que estabelece a lista tríplice para a escolha dos reitores é uma lei originalmente de 1968, e é ainda um resquício da ditadura, e mostra-se retrógrada e obsoleta, inclusive considerando a legislação que institui os Institutos Federais, instituições irmãs das universidades, que já não prevê tal mecanismo”, critica.
Na opinião do professor da UFFS, “é urgente a mudança da lei da eleição dos reitores, ao mesmo tempo que é fundamental ampliar e aprofundar o debate da Autonomia Universitária e seu papel na educação superior, no desenvolvimento científico e tecnológico e na inovação”.
Claudia Wasserman, candidata a vice-reitora na segunda chapa mais votada à reitoria da UFRGS, avalia que “o dispositivo que determina o envio de uma lista tríplice e a escolha pelo do dirigente máximo da instituição pelo presidente da república é uma excrescência do regime militar e fere a autonomia universitária. Deveria ser revogada, visto que o conselho superior das Universidade, aquele ao qual o próprio reitor é submetido, é escolhido livre e diretamente pela comunidade.”
Para a historiadora, “enquanto o dispositivo que dá ao presidente da república a atribuição de escolher numa lista o dirigente da Universidade, ficamos à mercê dessa possibilidade de vermos a vontade da comunidade desrespeitada. Então, a luta da comunidade acadêmica contra esse dispositivo deve ocorrer em todos os âmbitos”, frisa ela. E complementa: “enquanto isso não acontece, eu diria que uma excelente forma de afirmar a autonomia da instituição é promover a união da comunidade em torno dos gestores escolhidos por ela, valorizando igualmente o peso eleitoral dos três segmentos”, defende Claudia.
Paulo Ferreira Júnior, da Ufpel, destaca que “a legislação da lista tríplice é antiga e ultrapassada, mas acabou ficando mantida porque a Constituição de 88 garante a autonomia das universidades”. Ele questiona: “qual a decisão que mais merece ser respeitada, em termos dessa autonomia, senão a escolha do líder máximo da instituição?”. E acrescenta: “todos os presidentes vinham entendendo que a lei da lista tríplice devia ser cumprida observando a Constituição, que fala sobre a autonomia universitária. Os institutos federais já têm, na sua lei, a garantia de que o eleito será nomeado. Mas até nos institutos já vimos intervenções. Então, não basta a lei”, diz ele. “É preciso que a presidência da República e o MEC respeitem a autonomia das instituições”, observa.
Sobre formas de evitar que a decisão da comunidade universitária não seja desrespeitada, Ferreira comenta que uma possibilidade é “fazer acordos internos para que a lista tríplice seja composta pelas pessoas que forem escolhidas pela comunidade, para evitar justamente que aconteça de uma pessoa que não faça parte desse grupo seja escolhida – como um terceiro colocado com nenhum ou pouquíssimos votos”. Para ele, o procedimento adotado na Ufpel “pelo menos impede que uma pessoa completamente fora do projeto, fora da discussão que foi conduzida e que não teve o apoio da comunidade, seja o reitor ou reitora”.
Para Vicente Ribeiro, da seção sindical docente na UFFS, é preciso lutar pela modificação da lei. Mas, além disso, uma medida importante da comunidade universitária em que irão ocorrer eleições seria antecipar a mobilização, buscando inviabilizar candidaturas que tenham o intuito de, mesmo sendo derrotadas no processo de escolha, se coloquem disponíveis para compor a lista e assim viabilizar a intervenção do governo federal, sugere ele.
Na visão do diretor do Sinduffs, também poderia ser uma estratégia buscar o compromisso prévio das candidaturas em não aceitar compor a lista do caso de não terem sido os mais votados, ao mesmo tempo em que também se pode buscar, nas próprias instâncias das universidades, alterar estatutos, de forma que se pudesse evitar qualquer tentativa de gestões autoritárias.
Texto: Fritz R. Nunes com a colaboração de Bruna Homrich e informações de Sul 21 e portal do STF.
Imagens: Ezequiela Scapini (Brasil de Fato); ANDES-SN; Arquivo/Sedufsm
Assessoria de imprensa da Sedufsm
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