Incêndio à estátua de Borba Gato reacende discussão sobre o lugar da memória em nosso país
Publicada em
10/08/21
Atualizada em
10/08/21 19h57m
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Docentes defendem que monumentos sejam acompanhados de placas que expliquem as atrocidades cometidas pelos supostos homenageados

Paulo Galo Lima ficou conhecido em 2020, quando surgiu como liderança do “Entregadores Antifascistas”, um dos coletivos responsáveis por convocar as manifestações de trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos, que levaram milhares às ruas e receberam amplo apoio da população.
“Já trabalhei com fome várias vezes carregando comida nas costas”, foi uma das frases ditas por Galo em entrevista à época. Mais recentemente, ele voltou às notícias de jornais, mas por outro motivo: ao lado de sua companheira, Géssica Barbosa, foi preso no dia 28 de julho, após se apresentar à polícia como autor do incêndio à estátua em homenagem ao bandeirante Manuel de Borba Gato, em São Paulo. Outras duas pessoas foram responsabilizadas até então pelo ato, e todas têm em comum o pertencimento ao coletivo “Revolução Periférica”.
Em seu depoimento na delegacia, Galo afirmou que o ato não teve como objetivo causar medo na população, mas abrir o debate sobre o quão desejada seria uma estátua que fizesse referência a uma figura associada com tortura, genocídio e estupro. Abriu-se o debate.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o historiador Eduardo Bueno (Peninha) afirmou que Borba Gato não teria se envolvido nas caçadas e matanças aos indígenas. Em contrapartida, no livro “O povo brasileiro”, de Darcy Ribeiro, o bandeirante é apresentado como um dos responsáveis por caçar e vender mais de 300 mil indígenas para senhores de engenho.
Para Diorge Konrad, docente do departamento de História da UFSM, não há como dissociar Borba Gato do conjunto de bandeirantes, amenizando suas atitudes.
“Os bandeirantes, no geral, foram exploradores de terra e de trabalho compulsório dos povos originários e dos africanos, agindo com extrema violência racial, étnica e física, cometendo os mais variados crimes que são injustificáveis sobre uma suposta “moral de época”. Estupro e tortura são crimes imprescritíveis, assim como assassinatos e genocídios são crimes injustificáveis historicamente, não podendo ser relativizados. Assim, não há como relativizar a criminosa trajetória de gente como Borba Gato. Estão na galeria de infâmia da História”, pondera o docente.
Em momentos como esse, explica Konrad, o papel dos historiadores é fundamental, pois, a partir de suas investigações, podem denunciar atrocidades do passado, demonstrar quais interesses sociais, políticos e econômicos as motivaram e questionar o real caráter de algumas figuras homenageadas em nossos dias. “Nosso papel é de rememoração, como forma sociocultural e política para a construção de um mundo sem violência, de igualdade social e de respeito à natureza, sem opressores e oprimidos”.
Espaço social como aprendizagem
Ainda que o incêndio à estátua de Borba Gato carregue ineditismo, o sentimento de inconformismo que o alimentou não é de hoje. Vêm crescendo, nos últimos anos, ações que pretendem “rebatizar” ruas e prédios públicos que tenham recebido nomes de pessoas ligadas ao regime militar, torturadores, racistas ou ultraconservadores.
Marta Borin, docente do departamento de Metodologia do Ensino e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural da UFSM, alerta para o fato de que o espaço social é um ambiente de aprendizagem, de forma que o patrimônio público urbano – monumentos, nomes de avenidas ou instituições – tem muito a nos dizer sobre a memória brasileira. Ao entender, então, a cidade como um território educativo, é possível apreender os investimentos simbólicos, éticos, morais e estéticos ali expressos.
“O discurso contido no nome das ruas, nos monumentos, nas edificações, nas praças, nas exposições dos museus, permite conhecer não somente a história que se quer contar, como também um conjunto de signos. No entanto, a maneira como se transmite o saber em cada sociedade é diferente, depende do background de cada um, do que se conhece sobre história e patrimônio, entendido como um campo de conflitos, material e simbólico, entre classes de diferentes grupos. Daí a nossa luta pela igualdade de educação”, observa.
Como em outros espaços da sociedade, o patrimônio, destaca a docente, é, também, campo de conflito, de disputa pela legitimação de uma versão da história e, comumente, de silenciamentos e apagamentos das vozes consideradas dissonantes.
“No campo do patrimônio é necessário dar voz aos diferentes grupos sociais, aos marginalizados, tradicionalmente relegados ao esquecimento, pois todos são protagonistas da história. Neste sentido, somos convidados a “ler”, a conhecer, a nos apropriarmos dos bens patrimoniais da cidade, para que possamos problematizar e questionar a história construída, geralmente representada por um conjunto de “tradições inventadas”, como por exemplo, os monumentos, as mitologias, heróis e heroínas nacionais, que têm por objetivo criar e comunicar “identidades nacionais” elitizadas”, problematiza Marta.
A criminalização é o caminho mais curto
Se o patrimônio público, então, conta a história a partir da perspectiva de um grupo de pessoas, há, necessariamente, diversos outros grupos que se sentem lesados, e por vezes desautorizados, a se apoderarem por completo desse espaço. Isadora Bispo, advogada, mestra em Patrimônio Cultural e militante do Movimento Negro Unificado (MNU) de Santa Maria, propõe a reflexão: “Seria interessante você passar por um espaço onde vê a referência de quem chicoteou e torturou a sua população? Isso é uma agressão”, diz, lembrando que, ao invés de criminalizar e prender quem ateou fogo à estátua, o Estado brasileiro deveria estar discutindo as agressões, violências e desigualdades por que passam as pessoas negras ainda hoje.
“Criminalizar uma pessoa é muito mais fácil, é o caminho mais curto. Por que o Estado brasileiro não olha para a população negra e enxerga a dívida histórica de reparação que tem com essa população? Que a Lei Áurea não nos serviu porque só jogou a população negra para os morros, favelas e periferias, colocando-a em situação de desvantagem com relação aos outros povos? Se nós temos como referências estátuas e monumentos que representam um passado escravocrata, um passado de sofrimento e dor para a população negra, por que preservar esses monumentos? Ninguém está olhando para as dores e subjetividades da população negra e indígena”, problematiza Isadora.
Cabe lembrar que, ainda no ano passado, durante as grandes manifestações mundiais desencadeadas pelo assassinato de George Floyd, manifestantes ingleses derrubaram em um rio a estátua do traficante de escravos Edward Colston, na cidade de Bristol.
Destruir é a solução?
Frente ao debate sobre a destruição ou não de monumentos que façam referência a figuras detestáveis da história nacional, as opiniões são diversas e abrem um amplo debate. Contudo, algo em comum entre os(as) entrevistados(as) é o entendimento de que apenas colocá-las ao chão é insuficiente.
Marta Borin lembra, por exemplo, do Memorial do Muro de Berlim, na Alemanha; ao passo que Konrad destaca o Memorial de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, e o antigo prédio do DOPS, em São Paulo, também transformado em museu e local de pesquisa acerca dos horrores ali cometidos.
“Parte do muro, símbolo da Guerra Fria, foi destruído, mas, em vários pontos da cidade é possível ver uma linha no chão, feita de paralelepípedos, para marcar onde o Muro ficava e a data da divisão da cidade de Berlim, 1961-1989. Ou seja, o fato histórico ficou registrado. No entanto, grande parte do muro ainda está de pé para lembrar a brutalidade cometida pelo governo da República Democrática Alemã. No muro preservado a história é contada por meio de grafites, imagens das vítimas, exposições temporárias etc. Como a especificidade do monumento está precisamente relacionada ao seu modo de atuação sobre a memória, neste caso, a celebração da queda do Muro de Berlim trouxe no bojo daquele acontecimento o seu contraponto, a preservação da memória do outro, do seu algoz, para que a barbárie do passado jamais seja esquecida”, comenta Marta, para quem a preservação de monumentos, independentemente da intencionalidade, pode propiciar a reflexão crítica acerca da história nacional.
Na avaliação de Konrad, a derrubada ou destruição de estátuas, monumentos ou demais homenagens públicas pode ser utilizada por grupos de matizes políticas variadas: tanto para destruir figuras como Borba Gato ou Edward Colston, como para depredar uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco [como feito pelos deputados do PSL Rodrigo Amorim e Daniel Silveira]. Para o docente, seria mais pedagógico se as homenagens aos genocidas, escravistas ou torturadores fossem direcionadas para museus e parques, acompanhadas de placas que informem os atos terríveis por eles praticados, “[...] para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça”, defende.
O docente, contudo, não deixa dúvidas: a criminalização de Galo atesta que a justiça brasileira tem raça e classe, sendo cada vez mais necessários atos de reparação histórica, a exemplo de cotas e outras ações afirmativas que nos aproximem de um futuro igualitário. “A “derrubada” mais importante nesta quadra histórica (pela política, por impedimento, por eleição, etc.) deve ser dos criminosos que agem no Planalto e seus apoiadores dos ministérios e das planícies”, afirma.
Marta também questiona se não seria mais interessante manter tais monumentos como forma de apontar quem foram os pioneiros da discriminação racial no Brasil. “Com isto, poderíamos diminuir a monumentalidade da estátua fazendo uso da historiografia e da nova história da cultura negra e indígena, confrontando-a com a história do passado nacional, aquele que nega o passado escravista”, sugere.
Inserção de placas in loco
Rosa Blanca, docente do departamento de Artes Visuais da UFSM, reconhece que há, no Brasil, além de uma dívida histórica, a continuidade de processos de racialização e a própria institucionalização do racismo. Contudo, ela não acredita na destruição dos monumentos como caminho resolutivo para esta realidade.
“Atualmente estão sendo pensados projetos que visam a inserção de placas in loco, que expliquem a história dos monumentos ou das figuras históricas, de modo que o/a cidadão/ã possa aprender a nunca esquecer quem foi o personagem erguido em praça pública. Também há projetos que contemplam a ideia de criar museus onde possam ser levados os monumentos, antes que sejam destruídos, com o objetivo de que nunca se repitam esses capítulos racistas e indesejáveis da história”, comenta a docente.
Ela ainda aponta como perspectiva a formulação de políticas públicas de incentivo à construção de monumentos e outras formas de ocupação do espaço público que atendam às necessidades de reparação histórica das populações. Como exemplo, Rosa cita o monumento erguido em Londres, ano passado, em homenagem à Mary Wollstonecraft, considerada a mãe do feminismo. A escultura nasceu das mãos de uma artista mulher, a Maggi Hambling.
Vitória
Paulo Galo e os outros dois manifestantes presos pelo incêndio à estátua de Borba Gato tiveram suas prisões revogadas nesta terça-feira, 10, mediante decisão da 5ª Vara Criminal de São Paulo. Nos últimos dias, postagens e manifestações públicas em defesa à liberdade de Galo foram realizadas por diversas entidades e organizações políticas.
Texto: Bruna Homrich
Imagens: Brasil de Fato/Thais Haliski e Revista Fórum/Reprodução
Assessoria de Imprensa da Sedufsm
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