As licenciaturas e o Novo Ensino Médio: escola não é mercado
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17/08/21 19h49m
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Nara Ramos e Laura Senna, da UFSM, também destacam situação de estudantes em meio às mudanças
Quais as possíveis consequências do Novo Ensino Médio para os cursos de licenciaturas e os desdobramentos dentro das universidades? Essa é uma das questões que foram apresentadas pela assessoria de imprensa da Sedufsm às professoras Nara Vieira Ramos, do departamento de Fundamentos da Educação da UFSM, e Laura Senna Ferreira, do departamento de Ciências Sociais, também coordenadora da Licenciatura em Ciências Sociais da UFSM. Na última segunda, 16, havíamos iniciado o debate com as duas educadoras, que fizeram uma avaliação ampliada do projeto que entra em vigor a partir do próximo ano.
Nara Ramos afirma que a formação dos professores nos cursos de licenciatura é por área de conhecimento e a reforma do ensino médio retoma as décadas de 70 e 90 na formação por competências. Citando artigo da professora Monica Ribeiro, chamado “Impertinências entre trabalho, formação docente e o referencial de competências”, Nara destaca a fala da articulista, segundo a qual, “as aproximações entre competências no campo do trabalho em geral (trabalho produtivo) e as políticas da formação de professores trazem como consequência uma perspectiva reducionista e limitadora da formação e do trabalho docente, seja pela primazia de um saber-prático, em detrimento da articulação entre teoria e prática, seja pela ênfase no desempenho, tornando secundário o processo, essencial na composição de um percurso formativo sólido e abrangente”.
E a docente complementa a visão: “consideramos impertinente o referencial das competências para a formação de professores por ser reducionista e economicista”. E, portanto, diz Nara, “nossa expectativa é de que os cursos de licenciatura resistam mais uma vez a essa investida mercadológica”.
Já Laura Senna argumenta que o currículo do Novo Ensino Médio terá (a partir de 2022, quando inicia para valer) duas bases:
- A BNCC (Base Nacional Comum Curricular);
- Itinerários formativos específicos definidos pelos sistemas de ensino, com ênfase nas áreas de conhecimento ou atuação profissional. Assim, do total de 3.000 horas – até a reforma eram 2.400h – a serem implementadas até 2022, 1.200 horas serão destinadas aos itinerários formativos e a escola precisará oferecer pelo menos um itinerário. As outras 1.800 horas serão destinadas à BNCC, frisa a docente.
Ela explica que os currículos escolares ainda estão em alteração, que há projetos-piloto, mas “nada conclusivo ainda”. Para Laura, na medida em que esses currículos estão em construção, “seria importante ocupar esses espaços para debater e definir os caminhos”. No entendimento dela, a partir do “novo Ensino Médio” não se sabe quais conhecimentos estarão em disciplinas ou em itinerários, pois isso ainda está aberto.
A coordenadora da Licenciatura em Ciências Sociais também procura explicar o que são os chamados projetos. “Os ‘projetos de vida’ e os ‘projetos integradores’ incentivam a ideia de aprendizagem via execução de projetos”. Nesse sentido, complementa, duas grandes mudanças se verificam: 1. primeiro ano comum a todos e, a partir do segundo ano, a escolha do itinerário; 2. ampliação da carga horária do ensino médio. “Alguns estados estão optando por manter as disciplinas inicialmente para permitir aos estudantes escolher o itinerário formativo depois. Tudo isso vai impactar e está impactando os cursos de licenciatura, pois a inserção dos professores será diferenciada, logo, as licenciaturas também serão alteradas".
Notório saber e a disputa em aberto
Um dos aspectos do “novo ensino médio” é a possibilidade de contratação de professores não licenciados, o que na legislação é chamado de “profissionais de notório saber”. No que se refere a esse ponto, a professora Nara Ramos sublinha que esses profissionais são previstos apenas para os itinerários formativos técnico profissionais, de acordo com a Lei 13.415/17, e não para as áreas do conhecimento.
Para Laura Senna, a ideia de um notório saber é “uma via de mão dupla”. Segundo ela, é bastante frequente que “demandas progressistas são apropriadas pelos grupos e recebem outro sentido e o notório saber tem sido um desses casos”, frisa a docente. “Pode servir para reconhecimento de mestres e mestras em cultura popular, saberes tradicionais, conhecimento da área da saúde, alimentação, conhecimentos milenares que são sabedorias construídas de modo coletivo por metodologias baseadas nas trocas, vivências e experiências, transmitidas entre as gerações”.
Sendo assim, diz Laura, “o reconhecimento desses conhecimentos como notório saber é uma conquista da qual participaram indígenas, comunidades africanas, professores, voltados para uma perspectiva de que todos crescemos com um diálogo entre os saberes”. Todavia, acrescenta, “isso não tem nada a ver com contratar profissionais sem licenciatura, por meio de terceirização, contratos temporários, via parceria com empresa privadas para ensinar jovens”.
As contratações de profissionais com notório saber no lugar do professor podem se tornar recorrentes e no cômputo geral impactarem os egressos das licenciaturas, que terão menos possibilidades de inserção profissional e, por consequência, impactar na procura das licenciaturas e até mesmo na evasão dos cursos, acredita Laura. Todavia, argumenta, essa reforma ainda está em aberto e os cursos de licenciatura e os licenciados têm insistido que a formação dos estudantes do ensino médio não é treinamento e que, por isso, exige dos profissionais do ensino uma formação teórico-prática capaz de articular os conhecimentos específicos com os saberes educacionais.
Autonomia das e dos estudantes
Um dos itens da nova legislação do ensino médio que é alardeada como ponto positivo, pelo governo, é a que refere que estudantes teriam autonomia para escolher em qual área querem aprofundar seu conhecimento, visando, especialmente, suas aspirações profissionais. Na visão da professora Nara Ramos, dizer que haverá autonomia é “uma falácia”, tendo em vista que persiste uma dualidade importante: “um ensino médio para os ricos (na escola privada) e um ensino médio para os pobres (escola pública)”.
Em função disso, acredita ela, esse novo modelo só aumentará o abismo entre a escola pública estadual e a escola privada. Ela frisa que é “escola pública estadual” porque não é o mesmo caso dos institutos federais, que oferecem um ensino médio de qualidade, com professores bem remunerados e com excelente infraestrutura, inclusive sendo melhor avaliadas que as escolas privadas nas avaliações em larga escala.
Portanto, analisa Nara, fica perceptível que os jovens (e as jovens) não terão autonomia de escolha na escola pública estadual, porque serão ofertados os itinerários que tenham profissionais disponíveis. Logo, complementa ela, é falso dizer que o jovem poderá escolher qual caminho seguirá, na medida em que está sendo sonegada parte importante do conhecimento para os (as) jovens.
A educadora ainda destaca que, no caso das escolas privadas, fica claro que darão ênfase aos itinerários do aprofundamento nas áreas de Matemática, Linguagens, Ciências da natureza e Ciências Humanas e não ofertarão formação técnica profissional. Já no que se refere às escolas públicas estaduais, pondera Nara, é grande a probabilidade de que farão a “escolha da formação técnica e profissional”, tendo em vista a ilusão de uma possível colocação no mercado de trabalho, mas, como uma mão de obra barata.
E a autonomia da escola?
Laura Senna comenta sobre o tema da suposta autonomia de estudantes que “alguns setores produtivos são favoráveis à profissionalização dos estudantes ainda no ensino médio”. Todavia, ressalta ela, a escola não é um mercado e “é preciso ter cuidado com os riscos de mercantilização dos espaços escolares associados, por um lado, a ideia de empreendedorismo na escola e, por outro, a formação para o trabalho”. E complementa: “a autonomia da escola é um valor do qual não podemos abrir mão. A escola forma para a vida como um todo”.
O mundo da empresa, diz a professora, tem um lugar que é o do mercado, mas a escola é diferente, com outra lógica e tem outros objetivos. Do ponto de vista da aprendizagem e de possibilitar experiência na cultura, mercado e escola possuem racionalidades distintas, destaca. “Quando a mercado coloniza o espaço da escola temos a sobreposição de um campo em relação ao outro. Precisamos entender porque não conseguimos realizar uma reforma da educação de ordem republicana e democrática que universalize o acesso à educação de qualidade, pública, laica e universal”.
Para Laura, a reforma a ser feita seria no sentido de ampliar o acesso, de incluir e garantir a permanência dos estudantes, ampliar a qualidade e os investimentos, aprender para além dos rankings e fazer essa fase da vida ter um sentido positivo em termos de conhecimento, socialização juvenil e possibilidades de futuro. Contudo, diz ela, “uma reforma como essa precisa ser protagonizada pela base, ou seja, pela comunidade escolar, especialmente pelos professores e estudantes”. Exatamente o que não ocorreu com a lei do novo ensino médio.
Nesta quarta, 18, publicaremos a opinião de alguns (algumas) dirigentes sindicais a respeito do novo ensino médio.
Texto: Fritz R. Nunes e Bruna Homrich
Imagens:EBC, Arquivo/Sedufsm Arquivo Pessoal
Assessoria de imprensa da Sedufsm.