Entidades falam sobre imposição autoritária do Novo Ensino Médio
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Atualizada em
18/08/21 15h57m
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Projeto que passa a valer em 2022 não qualifica a escola e objetiva formar mão de obra barata
O Novo Ensino Médio vem colecionando críticas tanto no que tange ao seu conteúdo, quanto no que se refere à metodologia com que foi construído. Desde a última segunda, 16, temos problematizado a questão. Inicialmente, entrevistamos as professoras Nara Ramos (Educação) e Laura Senna Ferreira (Ciências Sociais), que fizeram uma abordagem mais global do tema. E, na terça, 17, ambas debateram os impactos desse projeto governamental- que inicia oficialmente em 2022- para as licenciaturas e para os (as) jovens.
Na reportagem desta quarta, 18, destacamos as falas de dirigentes sindicais ligados à área da educação que, em comum, afirmam: o projeto foi construído sem levar em consideração as opiniões e necessidades de professores(as), pesquisadores(as) e comunidade escolar.
E disso decorre, na avaliação deles (as), a formulação de um modelo de escola que, ao invés de combater o fenômeno da evasão escolar, tende a reforça-lo; ao invés de fortalecer a qualidade da educação ofertada aos(às) alunos, empobrece-a; no lugar de trazer uma formação humana e cidadã, favorece o tecnicismo, o aligeiramento e a divisão social do trabalho entre quem pode e quem não pode pagar.
Celma Pietczak, coordenadora do Sindicato dos Professores Municipais de Santa Maria (Sinprosm), pondera que o Ensino Médio brasileiro tem problemas necessários de serem enfrentados. Contudo, as respostas para tais questões caminhariam no sentido contrário ao que vem sendo proposto na nova lei.
“Entendo que a politecnia seria o caminho adequado, uma formação que alcançasse a pluralidade de conhecimentos, o domínio dos avanços científicos e tecnológicos, enfim, os saberes que levem à formação integral do estudante”, comenta a professora. Isso, por exemplo, confrontaria a alteração trazida na lei, que mantém apenas as disciplinas de língua portuguesa e matemática como obrigatórias para os três anos do ensino médio, excetuando Artes, Educação Física, Filosofia e Sociologia.
“Tem sido prática recorrente as mudanças em educação sem a participação dos sujeitos nela envolvidos. Foi assim também com a BNCC que desconsiderou conversas anteriores e não promoveu a participação dos educadores. Os impactos disso são mudanças que desconsideram a realidade das escolas, dos estudantes e das comunidades, mudanças mais comprometidas com grandes corporações e seus interesses e menos com o que de fato é a escola e sua função de transformação social”, opina Celma.
Descompromisso e precarização
Ascísio Pereira, vice-presidente da Sedufsm e docente do departamento de Fundamentos da Educação da UFSM, também compartilha a análise de que, no Brasil, as reformas educacionais vêm, geralmente, de cima para baixo. Abusando de falácias e recorrendo a um modelo de educação que remonta às décadas de 1960 e 1970, o Novo Ensino Médio cumpriria o papel de formar mão de obra precarizada e barata para o mercado de trabalho. Uma força de trabalho a ser preenchida por filhos e filhas da classe trabalhadora, ao passo em que, quem pode pagar, terá acesso a uma formação mais qualificada.
“O compromisso de quem propõe essa reforma não é com a educação dos filhos da classe trabalhadora. É uma proposta falsa de um ensino médio que não tem como se cumprir. Qualquer pessoa que conheça minimamente a realidade da escola pública brasileira, sabe que isso [o Novo Ensino Médio] não tem como se concretizar”, comenta o diretor da Sedufsm.
Uma escola não interessante
Uma das principais consequências de se aprovar e implementar uma lei sem diálogo com os atores envolvidos é a formatação de uma escola não atrativa para os(as) estudantes. Lucio Ramos, diretor do 2º núcleo do Cpers Sindicato, explica que o Novo Ensino Médio tende a empobrecer os currículos, contrariando a defesa de educadores(as) a respeito de uma educação mais humanitária e cidadã.
“As alterações deveriam ser feitas em cima de debates, onde todos nós pudéssemos ser escutados e opinar. O impacto maior [dessa falta de diálogo na aprovação da nova lei] é afastar ainda mais o aluno da escola. Há um grande número de jovens que pararam de estudar. E um projeto como esse não vai facilitar que eles voltem para a escola. A escola seguirá não sendo interessante”, diz Ramos.
Da mesma forma que Ascísio, o professor estadual também acredita que o modelo de escola implementado pelo Novo Ensino Médio tem como objetivo formar mão-de-obra barata e dificultar o despertar dos(as) alunos(as) para reflexões mais amplas sobre cidadania e direitos.
Maria Lúcia Coelho Corrêa, diretora do Sindicato dos Professores do Ensino Privado no RS (Sinpro/RS), sinaliza que toda mudança é bem-vinda, mas a nova lei que passa a vigorar em 2022 assusta pois foi aprovada sem um amplo debate, ficando sua elaboração restrita a um legislativo que, de forma geral, tem pouca noção das necessidades e deficiências da educação brasileira. “A maior parte dos professores pouco sabem das mudanças [que virão]. A complexidade desse processo pode gerar insegurança. O professor é o principal agente e precisa se apoderar dessas condições e subsídios para que, de fato, o Novo Ensino Médio qualifique a educação e proporcione melhores perspectivas para nossos estudantes”, explica a diretora sindical.
Falsas condições de autonomia
Uma das previsões da lei, que passa a vigorar a partir de 2022 nas escolas públicas e privadas, é de que os(as) estudantes escolham se especializar em uma das áreas do conhecimento definidas pela Base Nacional Comum Curricular (Linguagens e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas) ou ainda em um tipo de ensino técnico profissionalizante. Para Ascísio, a autonomia dos estudantes nessas escolhas deve ser bastante debatida, visto que estes estarão inseridos em uma sociedade marcada por grandes assimetrias sociais e em uma escola que expressa tais assimetrias. Assim, as próprias condições de desenvolvimento da autonomia são também determinadas por essa realidade.
Celma, do Sinprosm, reflete que, em uma sociedade desigual, estudantes serão levados(as) a escolherem formações de acordo com suas necessidades de inserção profissional.
“Estudantes pobres, filhos de trabalhadores, acabarão optando pela formação técnica e limitarão a possibilidade de acesso à universidade, por exemplo. A escola que deveria ser um caminho de possibilidades oferecendo condições de emancipação numa etapa que se insere na Educação Básica vai limitar a trajetória desses estudantes. Isso vem ao encontro da fala do próprio ministro da educação de que a universidade deve ser para poucos”, diz a professora, referindo-se à fala do ex-ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez, que afirmou: “A ideia de universidade para todos não existe”.
Quem serão os profissionais de notório saber?
Segundo o Novo Ensino Médio, é possível que as escolas contratem professores e professoras sem diploma de licenciatura para ministrar disciplinas da parte técnica e profissionalizante, admitindo a inserção, nas salas de aula, dos “profissionais com notório saber”.
Ascísio alerta para a importância de nos perguntarmos quem serão esses profissionais. “Quem é o notório saber? São religiosos que virão para a escola ensinar notório saber em moral religiosa? Serão militares falando sobre segurança pública? Só tem um jeito de fazer educação pública com qualidade em todas as áreas, que é contratando o serviço público por concurso público, com garantia na legislação. Fora disso, é conversa para enganar a sociedade. Os professores das universidades terão que lutar muito para enfrentar essa questão”, diz o docente, referindo-se à fragilização das licenciaturas prevista na nova lei.
Lucio Ramos chama a atenção para o fato de que as escolas tenderão a ofertar conteúdos e cursos que atendam às demandas da região em que a escola está inserida. “As pessoas não vão encontrar mais vantagens em fazer licenciatura, porque vão disputar vagas com os profissionais de notório saber, que muitas vezes serão indicados por corporações, grupos, entidades”, problematiza.
Abrir brecha para que as escolas contratem os “profissionais com notório saber” é, efetivamente, acentuar a desvalorização do profissional docente e, consequentemente, dos cursos de licenciatura. Essa é a opinião de Celma.
“O ataque aos professores já acontece pela desvalorização salarial, pelas condições de trabalho, pelo desprestígio social, realidade que tem tornado pouco atrativos os cursos de licenciatura. Essa possibilidade apresentada pelo Novo Ensino Médio desconsidera a formação para a docência justamente por desconsiderar a função social do professor e não visar à formação integral dos estudantes”, reflete.
Privatização
Por fim, um dos pontos também criticados pelas entidades sindicais na lei do Novo Ensino Médio é a possibilidade de privatização da educação pública no Brasil. E o próprio ensino remoto demandado pela pandemia fez brilhar ainda mais os olhos das empresas, visto que escolas e universidades passaram a adquirir serviços tecnológicos, como plataformas virtuais, necessários à execução das atividades.
Lucio cita as plataformas Google Meet e Google ClassRoom como algumas das mais utilizadas nesse período. “Possivelmente, com essa nova metodologia, vai se contratar e pagar muito caro por serviços de plataformas, de apostilhas, de aulas [online]. É interesse dessas grandes corporações a privatização dentro das escolas”.
Celma atenta para a autorização, segundo a nova lei, de que parte da formação possa ser realizada em instituições parceiras, a exemplo de instituições privadas, “especialmente no itinerário de formação profissional. O governo opta por destinar verbas para empresas privadas a investir no sistema público de ensino. Grandes corporações ligadas à educação ganham cada vez mais espaço no país e reduz-se o protagonismo das comunidades escolares”.
Um modelo sem função social
Para quem duvida da distorção que representa esse novo modelo de ensino médio, não precisa ir muito longe. Cláudia do Amaral, professora no Colégio Politécnico da UFSM e coordenadora do Sinasefe Santa Maria, explica que, na unidade em que trabalha, o Novo Ensino Médio já está em vigor. Contudo, ao contrário do que propõe a nova lei, excetuando diversas disciplinas, a comunidade escolar optou por oferecer aos e às estudantes uma formação integral, que abarque as diferentes áreas do conhecimento.
“Considero que seria importante a revisão do Ensino Médio, porque estava esvaziado de função social. Ora se destinava ao ensino propedêutico, voltado à preparação para concursos, vestibulares e ENEM. Ora estava voltado para o mercado de trabalho - no caso da educação integrada, quando se juntam Ensino Médio e técnico. Porém, nessa fase da vida, dos 14 aos 18 anos, a formação integral é fundamental. Focar já numa área seria furtar desses jovens a possibilidade de terem contato com as ciências humanas, com as artes”, explica a professora.
O Politécnico, conta Cláudia, ao invés de implementar o itinerário profissional, optou pelo itinerário de formação integral. “Propusemos o itinerário integrado, que envolve todas as áreas, voltando-se também ao mundo de trabalho e ao desenvolvimento de diferentes habilidades, criatividades, empreendedorismo, liderança, empatia - todos aspectos importantes para o mundo do trabalho, mas não necessariamente voltado a uma profissão específica”, diz a docente. Ela acredita que exigir dos(as) estudantes que escolham uma área para se especializar é uma demanda bastante precoce.
“Mesmo no final do Ensino Médio, os estudantes em sua maioria não têm certeza quanto às áreas que vão seguir. É muito cedo. Além disso, vai depender muito que as escolas da comunidade que esses alunos frequentem ofereçam o itinerário relacionado à área que ele almeja. Os estudantes que frequentarem escolas particulares acabarão tendo privilégios porque lá serão oferecidos todos os itinerários”, pondera Cláudia.
Texto: Bruna Homrich e Fritz R. Nunes
Imagens: Arquivo/Sedufsm
Assessoria de imprensa da Sedufsm