Memórias da ocupação que resultou no bairro Nova Santa Marta
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06/12/21 19h14m
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30 anos depois, alguns protagonistas, homens e mulheres, relembram os tempos duros, mas também os avanços
A ocupação de uma área da então fazenda Santa Marta, localizada na região oeste de Santa Maria, na madrugada de 7 de dezembro de 1991, viria a se tornar uma das maiores ocupações urbanas do país. No entanto, naquele momento, o que movia aquelas poucas dezenas de famílias, era a busca de um teto para morar, em uma época de muita crise econômica, exacerbada no governo José Sarney (1985-1990) e não debelada no governo Collor (1990-1992).
Foram dezenas de reuniões com pessoas de várias regiões da cidade entre abril de 1990 e dezembro de 1991, subsidiadas por respostas de pedidos de informações aos órgãos ligados às diferentes esferas de governo, que prometiam programas de moradia popular, mas acabavam não cumprindo. Diante dessa situação, lembra Fernando Menezes, à época coordenador municipal do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e membro da direção estadual, a decisão acabou sendo por ocupar uma área estatal, primeiro da Rede Ferroviária, que não deu certo, depois, então, a do estado, na Fazenda Santa Marta.
Maria de Fátima Gonçalves, hoje com 59 anos, moradora da Vila Prado (vizinha à Santa Marta) estava entre as pouco mais de 50 famílias que primeiro ocuparam o local, onde mais tarde passaria se chamar Vila 7 de Dezembro. Fátima destaca que não foi nada fácil viver os primeiros dias e meses na área, sem luz ou água. Para ela, só conseguiram permanecer no local porque havia uma organização prévia, com o planejamento do MNLM.
Matéria do jornal A Razão registrando as primeiras barracas na ocupação
Fátima recorda que uma moradora da Vila Prado, dona Terezinha Menezes, foi uma das que cedeu energia elétrica para os ocupantes e, também, que no início, havia uma pressão forte dos órgãos governamentais, especialmente da Brigada Militar, para que as pessoas desocupassem. Mas, para ela, a organização por parte do Movimento, que se apoiou nas igrejas, sindicatos, partidos políticos, deu suporte à permanência. “A liderança do Fernando Menezes e da Sandra Feltrin (advogada do escritório Wagner Associados e hoje já falecida) foi fundamental. Eles foram guerreiros”, exclama Fátima.
Leonel Pacheco, 59 anos, hoje morador da Vila Pôr do Sol, e que também estava na primeira leva de ocupantes, destaca um dos momentos que considera marcantes naquela luta inicial: “quando a nossa grande liderança do Movimento, representada na figura do Fernando (Menezes), de punho erguido, disse ‘passamos o arame, agora é esperar e lutar’.” A maior angústia, conta Pacheco, era justamente não saber se conseguiriam permanecer na área.
A fazenda
O bairro Nova Santa Marta integra o que outrora se chamava fazenda Santa Marta. Dados disponíveis na internet apontam que, em 1979, a área tinha um total de 1.126 hectares. Deste total, 728 hectares eram da Companhia de Desenvolvimento Industrial e Comercial do Estado (Cedic); 300 hectares eram do Distrito Industrial; 343 hectares eram da Companhia Habitacional do Estado (Cohab); 484 hectares eram da secretaria de Agricultura; 38,70 hectares foram usadas para a construção da Cohab Santa Marta e, até 1991, ano da ocupação, 304 hectares estavam sem uso algum.
Às vésperas dos 20 anos da ocupação em 2010, o censo demográfico do IBGE registrou 12.722 moradores (as). Entretanto, atualmente, conforme dados extraoficiais, vindas das lideranças comunitárias, a população já atingiria cerca de 25 mil pessoas. As vilas que compõem a Nova Santa Marta são: 7 de Dezembro; Alto da Boa Vista; 10 de Outubro; 18 de Abril; Loteamento Marista; Núcleo Central e Pôr do Sol.
Preconceito: os sem-teto e os pés no barro
Emilia Gross, hoje com 52 anos, é uma das importantes lideranças comunitárias da Nova Santa Marta. Em 1993 ela foi uma das ocupantes da região conhecia como Alto da Boa Vista. “Quando ocupei, morava de aluguel, tinha dois filhos pequenos- um de 3 anos e outro de 1 aninho”, relembra ela. Sobre aquele período, Emilia recorda: “sem emprego, morando numa barraca, sem água e sem luz. Tivemos que lutar muito para sobreviver”, frisa.
Questionada se enfrentavam preconceitos, ela responde taxativamente: “Sofremos muito preconceito. Tínhamos dificuldade para nos inserir no mercado de trabalho, dificuldade de pegar ônibus, pois quando nos viam no ponto, logo falavam, lá vem o pessoal dos sem-teto. Nos dias de chuva pisávamos no barro, pois não tínhamos ruas calçadas, então, sujávamos bastante os ônibus”, diz Emilia. E complementa: “Nossos filhos tinham dificuldades de estudar, pois as vagas nas escolas próximas já tinham se esgotado. Então, além de não termos emprego, tínhamos que ter passagem para os filhos poderem ir para uma escola fora do bairro”.
Suelen Aires Gonçalves, 34 anos, veio com sua família direto de Uruguaiana para a ocupação, em 1995. Formada em Ciências Sociais pela UFSM, atualmente cursa o doutorado em Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Suelen lembra dos primeiros tempos na ocupação, ainda criança. “Inicialmente, fomos morar na rua 10, número 195, na Vila 10 de outubro. Estávamos a duas quadras da divisa com a Vila Prado. Nossa realidade, neste local, era de uma rua sem saída, com água e luz somente para algumas residências”.
Ela lembra que, num primeiro momento, tinham água e luz de forma clandestina, de conexões com os vizinhos e compartilhamento dos gastos. “Logo após, tivemos água e luz instalados neste local. Sobre a infraestrutura, era péssima: ruas sem drenagem, sem saneamento básico. No ano de 1995, não tínhamos acesso à escola na ocupação, e nem a vários outros serviços”, descreve ela.
Superação e avanços
Fátima Gonçalves afirma que a luta inicial dos ocupantes era em busca de um terreno e benfeitorias para poder sobreviver, como água e luz. Com o tempo, depois de muita pressão, mobilização política, com o passar dos governos, as melhorias iam acontecendo, ainda que a passos lentos. A líder comunitária relembra um dos momentos mais importantes, alguns meses após o início da ocupação, que foi o sorteio dos terrenos. “O sorteio era para que ninguém fosse privilegiado”, explica ela.
Ex-primeira dama francesa, Danielle Mitterrand, com Fernando Menezes (primeiro à esquerda), em visita ao bairro, em 2002
Fernando Menezes também lembra desse momento. “Os terrenos foram sorteados publicamente, sem apadrinhar ninguém em terreno melhor ou pior. O nome era colocado no saquinho com 200 papeizinhos, que continha o número da quadra, o número do lote, marcados pela comissão em conjunto com a Cohab. E tu era sorteado para se dirigir e identificar o teu lote. Era uma emoção atrás da outra. Nos governos seguintes veio a regularização, ainda em fase de conclusão”, ressalta ele.
Foram trocando governos e as conquistas foram caminhando aos poucos, constata Fátima Gonçalves. E no campo da educação, os avanços foram significativos. Primeiro, veio a Escola Marista, depois, já no governo Olivio Dutra (PT) de 1999 a 2002, uma escola estadual, e no governo Valdeci Oliveira (PT), de 2001 a 2004, a escola municipal. Contudo, dentre as maiores conquistas do bairro, que foram estruturais, vieram com as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que garantiram, esgoto, ruas pavimentadas.
Fátima lembra que cronograma das obras foi construído com a participação das lideranças da comunidade durante o segundo mandato do governo Lula (2007 a 2010). Ela cita como nomes relevantes para a construção do projeto, entre outros, o de Leonel Pacheco e o de Cristiano Schumacher (MNLM). Toda essa mobilização e planejamento passou pela elaboração de projetos via técnicos da prefeitura de Santa Maria, à época comandada por Valdeci Oliveira, e encaminhados a órgãos como o ministério das Cidades.
Leonel Pacheco recorda que, naquele momento, atuava em um conselho que tratava da temática das cidades. Em reunião ocorrida na Escola Marista, informou que havia recurso para investimento em regularização, mas que, para tanto, a área precisava ser plenamente do município. A partir desse encontro, novas mobilizações, inclusive trancando a rodovia (BR), para reivindicar que houvesse a municipalização da Nova Santa Marta, o que chamou a atenção da população, gerando pressão nos governos.
Para Suelen Gonçalves, o que houve na Nova Santa Marta, nas últimas duas décadas, foi uma verdadeira “revolução na infraestrutura”. Isso se dá, diz ela, com “a luta pelo PAC no governo Lula, tendo a nossa sempre presidenta Dilma Rousseff como sua ministra chefa da Casa Civil. Dilma veio pessoalmente na ocupação para dar início às obras de infraestrutura que mudaram a nossa ocupação”, enfatizou.
Ela cita ainda como um aspecto de bastante relevância o acesso à educação. “O acesso à educação no território da ocupação é um avanço significativo. Minha geração não teve oportunidade de estudar na ocupação, mas hoje, já tiveram escola no território e isso faz toda a diferença”, sublinha a socióloga.
Suelen Gonçalves (ao microfone) junto com Fátima Gonçalves e Cristiano Schumacher (MNLM)
Fernando Menezes, que além de liderança do MNLM, depois exerceu o mandato de vereador entre 1997 e 2000, e secretário de município (2001 a 2004), ambos em Santa Maria, vê uma série de avanços nas últimas décadas, especialmente a partir dos governos de Olivio (estado), Valdeci Oliveira (prefeitura por 8 anos) e Lula e Dilma (federal). “As conquistas foram mais rápidas que imaginávamos. Várias vilas daquela região onde morei, tais como a Caramelo, Prado e São João, que já eram regulares e com terrenos escriturados, ficaram décadas sem água e luz, e sem ruas pavimentadas. Até hoje, muitas ruas dessas vilas seguem sem pavimentação, ao contrário de vilas da Nova Santa Marta, que alcançaram o benefício, mas com muita luta”.
O apoio da UFSM
A Universidade Federal de Santa Maria também deu sua contribuição para a estruturação da Nova Santa Marta. Em 1999, o governo do estado do RS (Olivio Dutra), a prefeitura de Santa Maria (Osvaldo Nascimento da Silva) e a UFSM (reitor Paulo Sarkis) firmaram um convênio de cooperação técnica. O objetivo dessa parceria era dar início aos estudos e primeiras iniciativas estruturais que permitissem a regularização urbana daquela área, esclarece o professor João Rodolpho Flores, atualmente aposentado do departamento de Ciências Sociais, e que coordenou o trabalho via pró-reitoria de Extensão.
Realidade de parte das ruas da Nova Santa Marta atualmente: asfaltadas
O docente lembra que o trabalho, que teve a participação do CCSH, CT e CCNE, tinha como título “Projeto para a implementação da reorganização espacial do assentamento e sal qualificação urbana”. João Rodolpho lembra que estavam previstos inicialmente estudos e trabalhos técnicos de geoprocessamento das áreas geográficas da Fazenda Santa Marta como um todo. Também realizar cadastro socioeconômico, cultural e ambiental das famílias que passaram a habitar espaço não regularizados da fazenda; e, ainda, a elaboração de projetos técnicos de urbanismo, arquitetura e engenharia voltados à infraestrutura, bem como a elaboração de projetos sociais e culturais para o futuro.
“Por certo, um trabalho exaustivo, de muita paciência, por vezes não compreendido mesmo dentro da UFSM, na medida em que gerava alguns custos, mas que eram parte da nossa contrapartida institucional”. Essa incompreensão, muitas vezes, segundo ele, também se dava via tentativas de intervenções políticas “conservadoras” externas nas ações. “Mas, tenho certeza, foi altamente compensador a todos os participantes”, frisa o professor.
Para João Rodolpho, ainda que tenha levado quase 30 anos para ser efetivada, a regularização urbana daquele espaço da cidade “felizmente teve início nos últimos anos, com a entrega das escrituras de posses. Era essa a meta. Penso que hoje, vendo aquele local, a evolução positiva é uma realidade”.
A luta no sangue e o legado
Comparando desde quando a Santa Marta deixou de ser um campo de gado e se transformou na grande ocupação, alcançamos grandes vitórias, dentre elas, três escolas, creches, instituições que atendem o povo, ruas asfaltadas, luz, água, espaços de acolhimento na saúde, etc., observo grandes avanços, mas que foram alcançados com muita luta, analisa Emilia Gross. “Hoje, avalio que foi muito satisfatório passar por tudo isto, ver meus filhos bem sucedidos, transformados em pessoas com garra, honestidade, solidários, e com uma visão de que, sem luta, não se tem vitórias. Na vida dos moradores, costumo dizer que a luta da Santa Marta está no nosso sangue e jamais pararemos esta luta”, enfatiza.
Leonel Pacheco (ao centro na foto) com Emilia Gross (d) ao seu lado
Para Suelen Aires Gonçalves, ter morado em uma ocupação como a da Nova Santa Marta foi central em sua vida, inclusive para enfrentar os preconceitos. “Sofremos inúmeros preconceitos porque nossa sociedade tem um passado escravocrata e de desigualdades nítidas de gênero e de raça. Tais cruzamentos são a base nas formações das nossas ocupações. Elas têm cara feminina e elas têm cor negra. Enfrentar as desigualdades estruturais de uma sociedade capitalista é uma das possibilidades”, argumenta ela.
Sobre as marcas em sua vida, Suelen destaca: “Acredito que a vivência e a experiência de morar na ocupação foi transformadora. Além da experiência de estar em uma cidade como Santa Maria, desde a formação de um pensamento crítico sobre as questões que são parte da nossa vida em sociedade. E sobre o meu caso, escolhi minha formação acadêmica para ter um a possibilidade de contribuir para com a sociedade através da produção de ciência”.
Na visão de Fernando Menezes, a Nova Santa Marta traz legados sociais, políticos e pessoais. Para Santa Maria, na visão dele, o “legado é o da construção de 10 a 12 mil moradias através da luta e organização popular em função da ausência, por décadas, de uma política habitacional para os mais pobres”. E acrescenta: “Construímos uma Tancredo (Neves), uma Santa Marta, uma (Cohab) Fernando Ferrari, na luta e na marra e nas condições próprias de cada trabalhador e trabalhadora. E nem uma casa é igual a outra como é o modelo das Cohabs”.
E há um legado pessoal? Fernando Menezes avalia que “de todas as minhas experiências na política, em assessorias parlamentares, no mandato de vereador e nos cargos como secretário, nenhuma se compara com os nove meses e meio que convivi com aquelas famílias, que lutaram sem enganação”. E finaliza: “Aprendi a conhecer mais os seres humanos, aprendi que quanto mais eu conheço os ricos, mais amo a solidariedade, a generosidade, a partilha e a união dos mais pobres numa luta dura e incerta como as em defesa de moradia”.
(Abaixo, em anexo, alguns dos depoimentos de entrevistados/as, sem edição, para que possam ser acessados integralmente devido ao seu valor histórico)
Texto: Fritz R. Nunes
Foto: Marcos Borba (TV OVO, imagem do piloto de uma série documental sobre a Nova Santa Marta intitulada ‘Terra Prometida- esse dia vai chegar”); arquivo pessoal dos (as) entrevistados (as)
Assessoria de imprensa da Sedufsm
Galeria de fotos na notícia
Documentos
- Depoimento de Fernando Menezes
- Depoimento de Suelen Gonçalves
- Depoimento professor João Rodolpho Flores