Ensino domiciliar é benesse dada ao fundamentalismo religioso, avaliam docentes
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25/05/22 10h22m
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Projeto que regulamenta a prática no Brasil foi aprovado na última semana pela Câmara dos Deputados
O ensino domiciliar, ou homeschooling, foi aprovado pela Câmara dos Deputados no último dia 18 de maio. Expressa no Projeto de Lei (PL) 3.179/2012, a proposta de que crianças e adolescentes possam ser educados em casa, fora do ambiente escolar, é duramente rechaçada por entidades sindicais, pesquisadores/as ligados/as à área da educação e professoras e professores.
Segundo o texto-base aprovado na semana passada, a Educação Básica – Ensino Infantil, Fundamental e Médio- pode ser oferecida em casa, sob a responsabilidade de pais, mães ou tutores e tutoras legais. O projeto também prevê a obrigação do poder público de zelar pelo adequado desenvolvimento da aprendizagem do estudante. No Brasil, o ensino domiciliar não é permitido. No entanto, além do PL 3179/12, desde 2019 tramita também na casa legislativa o PL 3262/19, que permite a prática do homeschooling sem que isso se configure crime de abandono intelectual.
Ocorre que, na prática, o PL aprovado é uma benesse concedida ao fundamentalismo religioso. É o que avalia o vice-presidente da Sedufsm, Ascísio Pereira, para quem a educação domiciliar traz diversos equívocos pedagógicos e esconde, por detrás das justificativas apresentadas por seus defensores e defensoras, um perigo silencioso.
“A questão que está por trás é essencial: o fundamentalismo “religioso” silencioso. Aqueles que são contra a “ideologia de gênero” querem tirar o filho da escola. Até os liberais se manifestaram contrariamente a esse projeto. E, se até os liberais são contra, é importante que o movimento docente articule-se com todos e todas que são contrários a esse projeto, com todas as correntes que pensam a questão da educação, não necessariamente aquelas que se alinham ao que a gente pensa. É preciso barrá-lo no Senado”, perspectivou o dirigente da Sedufsm.
Opinião semelhante tem a docente do departamento de Educação Especial da UFSM, Leandra Boer, que pondera ser o projeto de educação domiciliar uma afronta responsável por anular ou, no mínimo, enfraquecer a potência da coletividade.
“É responsabilidade de toda uma sociedade democrática construir um projeto educacional de escolarização. Dany-Robert Dufour, no livro intitulado a ‘Arte de reduzir as cabeças’, da década passada, denuncia a total desresponsabilização com o acolhimento e ensino dos recém-chegados, com as novas gerações. A precarização de um processo de educação/escolarização pública e coletiva requer a resistente luta em defesa da escola e das novas gerações, requer projetos de acolhimento ao mundo histórico-cultural”, defende a docente.
Para ela, “é inadmissível que, simplesmente, um processo de ensino seja decidido e definido no limite dos acessos históricos, culturais e sociais que estão determinados no suposto direito supremo de ser pai e mãe. A sociedade e o Estado não podem se desresponsabilizar, pois têm o dever constitucional de defender as novas gerações e a escola que, no coletivo, tem a possibilidade de ser instrumento de proteção da nova geração, potencial de ensino (do cultural produzido pela humanidade) e de constituição presente e futura desta sociedade. Podemos decidir sobre como qualificar processos educacionais de ensino e formação das novas gerações, pensar nas desigualdades, respeitar as diferenças, projetar uma existência coletiva que seja baseada em um conhecimento coletivo. O que vai na contramão deste processo [...]”, complementa Leandra.
O que diz o texto-base aprovado?
De acordo com o substitutivo aprovado, de autoria da deputada Luisa Canziani (PSD-PR), para usufruir da educação domiciliar o/a estudante deve estar regularmente matriculado em instituição de ensino, que deverá acompanhar a evolução do aprendizado. A cada três meses, o registro das aulas e atividades deverá ser enviado à escola e uma tutora ou um tutor da instituição de ensino terá encontros semestrais com as alunas e os alunos, mãe, pai, responsáveis ou pessoa que acompanha e orienta a educação da criança ou do adolescente.
A mãe, pai ou responsável da criança ou adolescente em ensino domiciliar deverá ter escolaridade de nível superior ou educação profissional tecnológica em curso reconhecido. A comprovação dessa formação deve ser apresentada perante a escola no momento da matrícula, quando também ambos/as os/as responsáveis terão de apresentar certidões criminais das Justiças federal e estadual ou distrital. Já o conselho tutelar, nos termos da legislação, deverá fiscalizar a educação domiciliar.
Se o projeto virar lei, as regras entrarão em vigor 90 dias após sua publicação. Para quem optar pela educação domiciliar, nos dois primeiros anos haverá uma transição quanto à exigência de ensino superior ou tecnológico.
De acordo com Elizabeth Barbosa, da coordenação do Grupo de Trabalho de Política Educacional (GTPE) e 2ª vice-presidente da Regional Rio de Janeiro do ANDES-SN, a aprovação do PL irá retirar direitos conquistados prejudicando milhões de estudantes. "É muito preocupante o que está acontecendo. A aprovação do homeschooling fere diretamente a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional], que garante a educação escolar de qualidade, assim como fere a Constituição Federal que garante que a educação é para todos e um dever do Estado. Com a aprovação do homeschooling a obrigação passa para os pais e para o próprio estudante", criticou a docente.
Leandra avalia que o principal prejuízo do ensino domiciliar é a produção de indivíduos cada vez mais individualistas e compenetrados em disputar e competir com as e os demais. “Uma sociedade que aos poucos aniquila as diferenças ao invés de conviver, conhecer e respeitá-las”, acrescenta.
Quem sai ganhando com o ensino domiciliar?
Compartilhando da mesma análise de Pereira, Leandra credita ao fundamentalismo religioso os ônus a serem obtidos de uma possível transformação do PL em lei.
“Se existe algum benefício o vejo para aquelas famílias que, pelo autoritarismo familiar de um regime que não aceita divergências, vão impedir as crianças e adolescentes de viverem os coletivos e construírem suas escolhas sendo lançadas e ensinadas na diferença. O que importa é dizer que não consigo ver benefício para as crianças e adolescentes, sob a perspectiva de que temos responsabilidade pelo acolhimento dos recém-chegados. Não há benefício quando não se tem as oportunidades de viverem processos coletivos, as negociações e os processos de convivência com o outro - sejam pessoas ou pensamentos que a escola pode promover”, critica Leandra.
Outro ponto salientado pela docente da UFSM foram os impactos da educação domiciliar também na carreira docente. “No homeschooling (ensino domiciliar), como as garantias da LDB serão consideradas? Quem faz o acompanhamento das condições de trabalho e garante a autonomia docente? Que tipos de submissão e precarização da carreira e dos profissionais aos moldes dos séculos passados teremos que reproduzir novamente?”, questiona.
Ao gosto de Bolsonaro
O projeto sobre a educação domiciliar estava parado na Câmara dos Deputados desde dezembro de 2019, mas voltou a ser movimentado em março de 2021, após Jair Bolsonaro entregar aos presidentes eleitos da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), uma lista com 35 pautas prioritárias do governo no Congresso para 2021. A aprovação do ensino domiciliar era um dos compromissos de campanha do Bolsonaro com sua base conservadora, sobretudo a ala ligada às igrejas evangélicas.
No Brasil, o movimento em defesa da educação domiciliar ganhou força nos setores mais conservadores da sociedade, que protestam contra, por exemplo, atividades que buscam falar sobre questões de gênero e sexualidade nas escolas. O discurso seria o de que escola estaria ensinando "perversões para as crianças, dentre elas, a ‘ideologia de gênero'".
O ANDES-SN defende a educação pública e de qualidade enquanto direito de todos e todas, conforme escrito na Constituição Federal de 1988, portanto, um dever do Estado. Para o Sindicato Nacional, toda criança tem o direito a receber uma educação de qualidade, com profissionais qualificados, conforme prevê a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, além do direito à socialização, à convivência comunitária e a ser parte de um mundo inclusivo, aprendendo a lidar com as diferenças. A participação e vivência na comunidade escolar são imprescindíveis para a efetiva inclusão social e formação como cidadãos e cidadãs.
Fonte: ANDES-SN, com edição de Bruna Homrich
Imagem: Paulo Sérgio/Câmara dos Deputados
Assessoria de Imprensa da Sedufsm