Uma lei que impactou a vida de milhares: estudantes e servidores atestam a importância das cotas na UFSM
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09/09/22 21h57m
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No último dia 29 de agosto, Lei de Cotas completou 10 anos. Na UFSM, contudo, processo foi implementado no vestibular de 2008.
No dia 13 de julho de 2007, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) da UFSM aprovou, por 19 votos favoráveis e 18 contrários, o Programa de Ações Afirmativas de Inclusão Racial e Social. A disputa foi ferrenha. Entre os conselheiros, a votação empatou, de forma que o voto de ‘minerva’ ficou a cargo do então reitor, Clóvis Lima.
Hoje docente do departamento de Geociências da UFSM e recentemente sindicalizado à Sedufsm, Anderson Machado integrava, em 2007, a comissão responsável por elaborar a minuta de resolução, encaminhada para apreciação do CEPE, que instituiu o primeiro Programa de Ações Afirmativas da universidade. À época, ele era representante estudantil na comissão, também formada pelos demais segmentos da comunidade universitária (docentes e técnico-administrativos em educação) e por integrantes da sociedade civil organizada. Desde a constituição de tal comissão, até a aprovação do Programa pelo CEPE, o movimento negro, em conjunto com o movimento estudantil, cumpriu papel de protagonista.
“No ano de 2007, em consonância com o processo de mobilização nacional que fez com que o Estado brasileiro se comprometesse com as políticas de ações afirmativas de combate ao racismo e promoção da igualdade racial, desde a adesão às resoluções de Durban (2001), o movimento social negro de Santa Maria e região iniciou uma série de discussões e mobilizações para que a Universidade Federal de Santa Maria implementasse um programa com esta perspectiva. Todo esse processo foi fundamental em minha trajetória, além do aprendizado por estar lutando junto aos meus pares que estavam organizados na comissão (na época eu era representante estudantil na mesma), impactou minha subjetivação e reconhecimento enquanto negro”, relembra Machado.
Quem também acompanhou de perto a implementação das Ações Afirmativas na UFSM foi Ana Lúcia Melo, técnica-administrativa aposentada da universidade que integrou, assim como Machado, a comissão de elaboração da minuta. Ela lembra um pouco o processo que antecedeu a vitória das ações afirmativas no CEPE, desde a audiência realizada na Câmara de Vereadores de Santa Maria, até reuniões específicas nos centros com a presença de representantes de universidades onde as cotas já haviam sido aprovadas (especialmente do Rio de Janeiro e de Salvador).
“Em 2006, o professor Clóvis Lima assume como reitor, e seu vice é o Felipe Müller. Naquele momento nós já havíamos, como movimento negro, tentado aproximação, e houve a promessa de que poderíamos pensar em um processo de mobilização. E isso foi feito. O pró-reitor de Graduação foi encaminhado, e a primeira audiência pública ocorreu na Câmara de Vereadores em 2006. Foi a primeira aproximação para o debate de cotas raciais e sociais. Essa mobilização contou bastante com o movimento negro, com a Associação das Pessoas com Deficiência Visual e também com a Associação das Pessoas Surdas. E também havia já um movimento para que incluíssem cotas para indígenas. Então era bem amplo”, resgata Ana Lúcia.
*Reunião da Comissão de Seleção e Ingresso e a Comissão de Autodeclaração da PROGRAD/UFSM com técnico-administrativos da UFG. À direita, de cachecol lilás, Ana Lúcia Melo
Ao relembrar o que sentiu no momento em que teve de dar o voto de desempate na reunião do CEPE que debatia as cotas, Clóvis Lima diz que não teve qualquer receio de se posicionar favorável.
“O clima na universidade, principalmente entre os alunos, era de expectativa e de otimismo com relação à decisão do CEPE. Lembro que no dia da reunião os corredores que davam acesso à sala de reuniões estavam lotados de alunos, que esperavam e pressionavam pela aprovação das cotas. A discussão foi longa, mas ao final houve a aprovação. Após a reunião, aprovadas as cotas, eu encontrei os estudantes nos corredores e disse: “agora é tudo com vocês”, no sentido de aproveitarem a oportunidade, que não é nenhuma benesse, é uma oportunidade que dá igualdade de acesso à universidade pública a todas as pessoas”, relembra Lima.
Na avaliação do ex-dirigente, as cotas foram um marco histórico no sentido de diminuir as diferenças entre os menos e os mais favorecidos. “Sempre pautei minha vida pela justiça, por aquilo que eu entendia que estava contribuindo com a sociedade. Por muito tempo quem entrava na universidade pública era quem tinha melhores condições”, comenta Lima, que esteve à frente da reitoria da UFSM entre janeiro de 2006 e dezembro de 2009.
O que dizia a Resolução Nº 011/07
A minuta de resolução nº 011, aprovada pelo CEPE em 2007, trazia a seguinte previsão:
- Reserva de 10 a 15% de vagas para estudantes afro-brasileiros (o primeiro vestibular que recebeu a aplicação das novas normas, em 2008, teve a reserva de 10%);
- Reserva de 20% das vagas para estudantes que tivessem cursado todo o ensino fundamental e médio em escola pública;
- Reserva de 5% das vagas para estudantes com deficiências;
- Destinação de vagas suplementares para indígenas. Em 2008, primeiro ano de aplicação do Programa, foram criadas cinco vagas, tendo esse número aumentado nos anos posteriores.
Cabe destacar que, naquele mesmo ano, em 2007, a UFRGS também aprovava uma proposta de reserva de vagas. UFSM e UFRGS eram, então, as únicas universidades do Rio Grande do Sul a adotarem as ações afirmativas. Nacionalmente, a primeira instituição a implementar um sistema de cotas e uma reserva de vagas exclusivamente para estudantes negros foi a Universidade de Brasília (UnB), em 2004.
Anos mais tarde, em 2012, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 12.711, em cuja essência estava a reserva de 50% das vagas de ingresso no ensino superior a estudantes cotistas – provenientes de escola pública, negros, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e população de baixa renda. Embora diversas universidades brasileiras já adotassem ações afirmativas, a lei buscou dar um formato nacional às iniciativas localizadas.
No dia 29 de setembro de 2022, completaram-se dez anos da aprovação da chamada Lei de Cotas, e, por isso, a matéria deve passar por uma revisão após o processo eleitoral de outubro.
Há uma disputa grande em torno do debate: por um lado, parlamentares do campo progressista defendem não apenas a manutenção, mas a ampliação das cotas para a pós-graduação e concursos públicos; por outro, deputados e senadores conservadores que objetivam dar fim à lei.
Os dados, contudo, não deixam margem a dúvidas: segundo o Consórcio de Ações Afirmativas, que reúne pesquisadores de várias universidades brasileiras, o ingresso de pessoas de baixa renda aumentou consideravelmente. Enquanto em 2001 a porcentagem de ingressantes pertencentes às classes C, D e E era de 19%, tal número subiu para 52% em 2020. No mesmo período, o ingresso de negros, pardos e indígenas saltou de 31 para 52%.
A Assessoria de Imprensa da Sedufsm contatou a Pró-Reitoria de Graduação da UFSM a fim de obter dados relativos ao ingresso de estudantes cotistas, contudo, até o fechamento desta reportagem, não tivemos retorno.
Para Anderson Machado, que acompanhou o processo de implementação das cotas raciais e sociais na UFSM, e hoje retorna à instituição como docente, a Lei de Cotas é um instrumento fundamental no processo de “tornar-se” negro, contribuindo para que as pessoas negras se reconheçam enquanto tal e colocando em cheque o racismo estrutural presente na sociedade brasileira.
“Por isso, esse dispositivo é tão atacado, pois ele é um instrumento de combate às desigualdades raciais, consequentemente sociais e de desvelamento de como se constitui a sociedade brasileira, ou seja, pela diversidade - somos uma sociedade multiétinica e multirracial, porém essa condição é permanente extirpada pela “supremacia branca” como diria Bell Hooks”, analisa o docente.
Como é ser um professor negro dentro da UFSM?
Se o Programa de Ações Afirmativas e a posterior Lei de Cotas contribuíram para aumentar o ingresso de estudantes negros, pardos e indígenas na UFSM, ainda se observa um embranquecimento dos principais postos de conhecimento e de poder. Por isso mesmo, Machado, ao se reconhecer na condição de negro e de docente, reafirma seu compromisso ético-racial.
“Considero que temos grandes referências negras que nos fazem sentir, pensar e agir dentro e fora das instituições de ensino. De todo modo, aqui estamos falando da Universidade, desde uma percepção enquanto geógrafo negro - um território em disputa e enquanto tal, é tarefa da negritude disputa-la em seus múltiplos âmbitos e buscar sua transformação, a partir da descolonização e enegrecimento dos saberes; da produção da pesquisa e do reconhecimento dos notórios saberes presentes em nossos terreiros, comunidades, periferias e relações de irmandade; da construção de ações de extensão que fortaleçam e lutem ao lado da busca pelos direitos territoriais da população negra e povos originários”, defende o docente.
Para ele, é fundamental que a Lei de Cotas nos Concursos Públicos Federais (Lei 12.990/14) seja expandida, visando a que, por exemplo, negras e negros tenham melhores oportunidades e condições de disputa nos concursos para a docência universitária.
“As diferentes áreas do conhecimento precisam se abrir para a negritude; processos, temas e pontuações diferenciadas, contribuem para o estímulo de nosso reconhecimento, representatividade e para as possibilidades reais de conquistarmos vagas em um ambiente extremamente desigual e meritocrático. Defender políticas de ação afirmativa é dizer que o princípio da isonomia não nos é suficiente; para situações desiguais são necessárias políticas diferentes, do contrário, reproduz-se a desigualdade”, conclui.
Uma trajetória inteira construída dentro da UFSM
Oneide dos Santos, professor, artista e pesquisador na área de Dança, teve toda sua trajetória acadêmica forjada na UFSM, onde concluiu graduação (em Dança Licenciatura), mestrado (em Educação) e, agora, ingressa no doutorado (também em Educação). Ele também atuou como professor substituto do curso de Dança na instituição.
Muito além de propiciar uma formação teórica e profissional, as cotas, para Oneide, ajudaram-no a se reconhecer como uma pessoa negra, sujeito de direitos, a quem foi possível traçar um caminho completamente diferente do até então conhecido por sua família.
“Venho de São Borja, interior, fronteira oeste do Rio Grande do Sul. Minha bisavó foi empregada doméstica, minha avó e minha mãe também foram empregadas domésticas. Ou seja, só comigo esse ciclo – que é de classe, mas também é racial – foi interrompido. Sou o primeiro da minha família, em mais de 70 anos, a entrar na universidade. Hoje fui aprovado para o doutorado em Educação na universidade. Isso era inimaginável se pensarmos nessas outras gerações. A Lei de Cotas foi uma transformação na minha vida. Foi muito importante. Desde a graduação até eu entrar como professor substituto na UFSM. A Lei também me deu uma profissão”, partilha Santos, para quem, em um país fundamentalmente preto e pardo, a Lei de Cotas é fundamental.
Trata-se, para Santos, de um direito historicamente negado, através do qual negros e pardos, bem como indígenas, pessoas com deficiência e filhos e filhas da classe trabalhadora, conseguem melhorar concretamente suas vidas. “Por isso a Lei de Cotas é fundamental, na graduação e pós-graduação, e também para ser professor universitário. Hoje o quadro de professor universitário no Brasil é, em sua maioria, branco”, acrescenta.
“Não basta só abrir a vaga”
Junto à discussão da Lei de Cotas, abre-se, também, um espaço para que se problematizem as condições de permanência das e dos estudantes cotistas dentro das universidades. Se a assistência estudantil como um todo vem sofrendo duras tesouradas em razão dos cortes orçamentários promovidos pelo governo Bolsonaro, aqueles e aquelas mais afetados são, justamente, as e os cotistas.
Santos alerta para o fato de muitos estudantes ingressarem via ações afirmativas mas não conseguirem concluir seus cursos, seja por terem de trabalhar, seja por não conseguirem se manter financeiramente estudando. “Acredito que a Lei deva ser ampliada e fortalecida cada vez mais. É importante não dar só o acesso, mas garantir que o aluno cotista tenha esse direito até o final da sua formação. Porque com o estudo e a formação ele vai adentrar o mercado de trabalho de uma forma mais qualificada e eficiente, e aí sim vai conseguir mudar a sua próxima geração e as outras realidades que virão a partir dele”, defende o artista e pesquisador.
As cotas para além da universidade
Ana Lúcia Melo participou, há poucos anos, de um processo de avaliação de candidatos que concorriam à vaga de juiz no TRF-4. Ela compôs a banca escolhida para acompanhar os processos de autodeclaração racial.
“Foi um momento ímpar, porque o TRF, um operador do Direito, uma das máximas instâncias do judiciário brasileiro, chama pessoas da universidade (4 pessoas) para participarem como banca avaliadora no concurso de juiz. Eram 24 pessoas, só que me parece que elas acabaram não passando por outras etapas, e nos apareceu uma candidata que se autodeclarou parda, que nós confirmamos. Então esse é um fato... o fato de nós termos sempre acreditado na política de inclusão, o que significa ter uma cidadania racial plena”, relembra Ana.
Em sua avaliação, passados dez anos da aprovação nacional da Lei de Cotas, a sociedade brasileira adquiriu confiança nessa política pública.
“Vamos continuar em busca de cidadania racial, enquanto houver negros que passam por dificuldades em função da sua desigualdade educacional, da pobreza. É necessário que se defenda a manutenção das cotas e que possam ser aprimoradas”, projeta Ana.
Em novembro de 2021, em sessão do CEPE, a UFSM aprovou a implementação de uma política de ações afirmativas na pós-graduação, à qual os programas da universidades podem aderir até o dia de 2024. Leia mais.
Texto: Bruna Homrich
Imagens: Arquivos Pessoais
Assessoria de Imprensa da Sedufsm