Docentes que perderam estudantes na tragédia da Kiss partilham memórias dez anos depois
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28/01/23 11h07m
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Neste 27 de janeiro de 2023, a tragédia evitável de Santa Maria, que tirou a vida de 242 jovens, completa uma década
Ligações e mensagens na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 marcaram para sempre a história de professores e professoras da UFSM. Hoje, trazemos as memórias de quatro docentes ligados ao Centro de Ciências Rurais (CCR), unidade que mais sentiu os impactos da maior tragédia evitável de Santa Maria e do Rio Grande do Sul.
André Vasconcelos Soares, atual vice-coordenador do curso de Medicina Veterinária, relembra que, naquela noite, há dez anos, chegara a passar em frente à boate e cogitar entrar para prestigiar a festa então promovida, pois incluía estudantes do curso no qual lecionava. Contudo, por não ter adquirido o ingresso previamente, decidiu ir para outro local da cidade, onde, por volta das três horas da manhã, ele e as demais pessoas que lá estavam começaram a receber mensagens. Diferentes pessoas, diferentes números de celular, a mesma informação: algo estava acontecendo na boate Kiss, talvez alguém tivesse se machucado, mas nenhum texto chegava perto de dimensionar o tamanho da tragédia que se passava naquele momento.
“Segundos depois, um amigo (que morava no prédio geminado à boate), e que estava em outro evento, me contatou dizendo que o seu apartamento estaria com problemas (fogo ou algo do tipo; as informações eram desencontradas). Neste momento eu percebi que podia se tratar de algo mais sério. Meu amigo me pediu para eu ir até lá, para ver com ele o que estava acontecendo. Ainda achando que se tratava de algo apenas no prédio dele, e que talvez tivesse alguma consequência secundária à boate, fui! Combinei de encontrá-lo na frente da casa dele. No entanto, ao chegar ao entorno da boate, já não era mais possível chegar de carro a uma quadra da casa noturna, pois os acessos já estavam interrompidos. Me encontrei com ele na esquina da Andradas com a André Marques. E naquele exato momento, pela confusão e barulho ensurdecedor das sirenes, me dei conta da dimensão absurda do que estava acontecendo”, partilha Soares. Ainda sobre aquele momento, ele acredita que nunca será capaz de esquecer as palavras de uma aluna sua, que, naquela esquina, abraçou-o chorando e disse: “...profe, tem muitos que estão presos lá dentro, e muitos da Veterinária, tem pessoas mortas”.
Ao todo, o curso de Medicina Veterinária da UFSM perdeu 15 estudantes naquela noite. Para alguns deles, Soares já havia ministrado disciplinas. Naquele semestre, uma das 242 vítimas era seu aluno e, a outra, sua estagiária. “Os demais viriam a ser meus alunos e, destes, vários frequentavam quase que diariamente o hospital veterinário, onde exerço várias de minhas atividades”, comenta.
“Enquanto estivéssemos juntos, estaríamos bem”
*Uma das diversas ações de acolhimento às e aos estudantes promovidas por cursos da UFSM no retorno às aulas após a tragédia, em 2013
Dois dias após a tragédia, em 29 de janeiro, Soares foi até o hospital veterinário e viu, aberta, a sala onde ministrava suas aulas teóricas. Ali ele não conseguiu permanecer, tamanha sensação de desespero. “Lembro de andar pelos corredores do hospital, corredores esses com um total silêncio. Não tinha o que ser dito. Lá, alguns alunos, funcionários e professores. Apenas nos olhávamos. Mas era um olhar de acolhimento, como se disséssemos uns aos outros: estamos juntos!”, diz o docente.
Algumas semanas depois, quando as atividades foram retomadas na instituição, Soares conta que a sensação de dividir novamente a sala de aula com as e os estudantes era dúbia: “era ao mesmo tempo de uma dor muito grande e de um “não querer” sair de perto deles! Era como se, enquanto estivéssemos juntos, estaríamos bem. Ao menos era o que eu sentia! E alguns me relataram o mesmo. Ainda assim, repito, não consigo até hoje explicar em palavras o que senti!”.
“Essa tragédia me mudou completamente como docente”
Passados dez anos, Soares diz que a tragédia evitável da boate Kiss transformou essencialmente sua postura frente à docência. Após ter vivenciado tão de perto a dor de estudantes e de seus familiares, ele passou a desenvolver outra relação com as e os alunos, enxergando-os como seres humanos que têm suas dores, falhas, lutos e dificuldades – muitas vezes, inclusive, financeiras.
“Me preocupo verdadeiramente com aquele ser humano que está sentado ali, assistindo minha aula [...] Quando vejo algum aluno com alguma dificuldade, não me furto da responsabilidade que hoje eu penso que tenho, de estar disponível para auxilia-lo. Passei a entender que quando os meus alunos se formam são partes de mim que estão ganhando o mundo por aí. Por isso, por todos eles que se foram, tento a cada dia dar o melhor de mim; melhor de mim como docente, melhor de mim como funcionário da instituição, melhor de mim como filho, melhor de mim como amigo, melhor de mim como ser humano. Essa é uma premissa que vou levar para toda a minha vida”, conclui.
“A parte mais difícil foi receber os pais”
À época da tragédia, Claudia Sautter era coordenadora do curso de Tecnologia em Alimentos da UFSM. Ela recebeu a notícia em casa, ainda de madrugada. Estudantes que moravam nas proximidades da boate entravam em contato, preocupados com os colegas. Inicialmente ela não acreditara ser possível mas, ao ouvir as sirenes, a realidade se impôs.
Ao relatar como foi o retorno à sala de aula, ela destaca os sentimentos de luto, desamparo e falta de perspectiva. Devido a seu cargo de gestão, ela também assumiu o contato com os familiares de vítimas.
“Como coordenadora, a parte mais difícil foi receber os pais que entregavam livros emprestados da biblioteca e descrever como eram seus filhos no Curso, seu desempenho, como se relacionavam com os colegas, mostrar os laboratórios e salas de aula”, compartilha.
Após o incêndio, destaca Claudia, o curso de Tecnologia em Alimentos, que perdeu 15 estudantes, passou por uma série de transformações.
“Foi uma tragédia que marcou profundamente o Curso em todos os aspectos. Não houve mais festas promovidas pelos alunos. Por vários anos os alunos e professores tiveram que se esforçar para reconstruir a visão do Curso. Hoje, atentamos muito mais para observar o comportamento emocional. Também à segurança de infraestrutura, de treinamento e pessoal. O Curso amadureceu como um todo”, constata.
Para ela, uma das principais medidas tomadas após a tragédia evitável foi a lei sobre Segurança, Prevenção e Proteção contra Incêndios nas edificações e áreas de risco de incêndio no Estado do Rio Grande do Sul. “A escolha de projetos arquitetônicos, materiais para construção tem evoluído para prevenir outros materiais acidentes. No entanto, há muito o que se melhorar tanto na Lei como em cursos e treinamentos periódicos para a população”, aponta Claudia.
“Os alunos esperavam que os professores soubessem o que fazer, mas também não sabíamos”
Não há formação que prepare um ou uma docente para lidar com uma tragédia coletiva como a que transcorreu em Santa Maria naquela madrugada. Por isso, o sentimento mais destacado por João Cesar Dias Oliveira, professor do departamento de Morfologia e, à época, coordenador do Curso de Medicina Veterinária da UFSM, era o de “não saber como fazer”.
Ele, que soube da tragédia por um telefonema do secretário da Veterinária, Paulo Roberto de Morais Modesto, às cinco e meia da madrugada do dia 27, disse que, em um primeiro momento, havia a notícia de que duas meninas do curso haviam falecido no local.
“A Medicina Veterinária teve 15 vítimas ao total (bem mais do que as duas iniciais), então todos os 15 eram meus conhecidos como Coordenador do Curso, já que tinham vítimas em sua maioria dos semestres iniciais, mas também dos finais. Naquele semestre eu ministrava duas disciplinas. Em uma (no 4º semestre) perdi uma aluna, a Helena P. Dambros e, na DCG no primeiro semestre, perdi duas, a Isabella Fiorini e a Maria Mariana Ferreira. E, claro, conhecia e tinha convivência com muitas outras das vítimas do Curso. A Michéli Dias de Campos foi nossa bolsista de trabalho na Coordenação do Curso”, conta Oliveira.
Para o retorno das aulas, professores e professoras dos mais diversos semestres reuniram-se e planejaram uma acolhida às e aos estudantes.
“[O] sentimento [era] de não saber como fazer. Os alunos esperavam que os professores soubessem como, mas não sabíamos, então, com algumas ajudas e experiências pessoais, todos os professores do Curso de cada semestre se reuniram e esperaram os alunos da primeira aula do retorno para conversar, ver como estavam, e dizer que estavam juntos com eles para enfrentar os tempos difíceis que estavam começando no retorno pós-Kiss”, relembra.
Oliveira acredita que muitas falhas individuais e/ou de instituições ocorreram para resultar em um fato tão relevante. Hoje, ele considera a prevenção fundamental, embora pondere que as pessoas têm “memória curta” ou dificuldade em acreditar nos eventos e experiências pelos quais não passam diretamente.
“[...] basta ver a baixa vacinação para poliomielite, já que os jovens não viram casos e aí descuidam da prevenção, com vacina. Por isso a importância de continuar a falar sobre o ocorrido de diferentes formas. Jamais vou esquecer a imagem que vi naquele ginásio fazendo o reconhecimento de vítimas e sempre que possível falo para meus alunos terem cuidados nos locais de festas e reuniões. Como Docente, muitos se deram conta de que não têm todas as respostas, especialmente em eventos não técnicos, onde todos estão muito abalados. Acho que prevenção é fundamental para tudo e sinceramente espero que algo parecido nunca mais se repita em lugar nenhum”, encerra Oliveira.
“Eu, pelo menos, me sinto assim, uma pessoa diferente depois da Kiss”
A atual coordenadora do curso de Medicina Veterinária, Luciana Flores, lembra que recebeu a notícia da tragédia entre quatro e cinco horas da madrugada do dia 27. Ela estava em casa e, de pronto, pensou em seus filhos, especialmente no que poderia ter ido e não foi porque o amigo estava sem dinheiro.
Quando da tragédia, ela ministrava uma disciplina complementar. “A turma que eu estava no momento havia perdido uma colega, mas que estava no semestre anterior. Algumas alunas do primeiro semestre estavam fazendo a disciplina complementar. Outras alunas eu conhecia, porque eram amigas das minhas alunas e frequentavam a minha sala de professora”, conta, afirmando que os sentimentos mais imponentes naquele momento eram a tristeza, o medo, a compaixão e a união.
Luciana diz ser uma pessoa diferente após a tragédia, assumindo tanto uma postura mais vigilante no que tange à legislação, quanto um olhar de gratidão em relação à vida.
“Acredito que o que aconteceu marcou todos de uma forma e outra, eu pelo menos me sinto assim, uma pessoa diferente depois da Kiss. As lições aprendidas foram a de ser mais responsável em relação às legislações existentes, principalmente exercendo cargos administrativos, e, enquanto pessoa, que a vida está para ser vivida, sermos gratos e buscar aproveitar cada dia com as pessoas que amamos como se fosse o último. Infelizmente, o que vejo é que embora algumas medidas tenham sido tomadas em relação ao número de pessoas nos ambientes e cuidados com material utilizados nestes locais, isso não ocorre de modo geral”, diz.
27 pode ser dia não letivo
Embora o Centro de Ciências Rurais da UFSM tenha sido o que mais registrou perdas no incêndio da boate Kiss, todas as unidades de ensino da universidade perderam estudantes. Em reunião do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) na última quinta-feira, 26, o reitor Luciano Schuch afirmou que, nas próximas semanas, a instituição irá discutir transformar o dia 27 de janeiro em não letivo, em homenagem às vítimas e sobreviventes da tragédia.
*Vigília dos 10 anos do incêndio na boate Kiss, realizada na madrugada do dia 27 de janeiro de 2023
Da quarta, 27 de janeiro, até o sábado, 28, ocorrem atividades na cidade em memória aos 10 anos do incêndio na boate Kiss. Vigílias, intervenções artísticas, soltura de balões, coletiva de imprensa, debates e culto integram a programação, que, este ano, traz como tema: "Kiss, 10 anos: resgatar a memória é construir o futuro".
Texto: Bruna Homrich
Entrevistas concedidas a Fritz Nunes
Arte: Italo de Paula
Imagens: Arquivo Sedufsm e Rafael Balbueno
Assessoria de Imprensa da Sedufsm