Mais de 65 mil pessoas foram resgatadas do trabalho análogo à escravidão no Brasil
Publicada em
28/01/25
Atualizada em
29/01/25 16h31m
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Neste 28 de janeiro, Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, lembramos alguns casos emblemáticos ocorridos, especialmente, no Rio Grande do Sul

Trabalhadores foram resgatados de uma pedreira, onde atuavam como quebradores de pedras utilizando ferramentas manuais primitivas. Eles estavam expostos a condições degradantes e perigosas, sem equipamentos de proteção individual, com graves riscos à saúde e segurança, como trabalho em posições não ergonômicas, exposição à insalubridade e iminentes riscos à vida. Os locais de vivência, construídos pelos próprios trabalhadores para armazenar ferramentas, também eram utilizados para refeições e, em alguns casos, para o descanso. Esses abrigos apresentavam condições precárias, como fiação exposta, falta de higiene e a ausência de água potável e sanitários. Os trabalhadores não tinham registro em carteira de trabalho e eram remunerados exclusivamente por produção, sem acesso a direitos trabalhistas como 13º salário, férias ou descanso remunerado.
(Resgate de 13 trabalhadores na Paraíba, dezembro de 2024)
A trabalhadora atuava como empregada doméstica desde 1996 em uma residência. Durante esse período, ela não recebia salários, férias ou 13º salário. A trabalhadora não possuía um quarto próprio para dormir e, nos últimos três meses, acumulava as tarefas domésticas com a obrigação de cuidar de um dos patrões enfermos. Todos os pertences da trabalhadora, acumulados ao longo de quase 30 anos de serviço, resumiam-se a poucas roupas simples, produtos de higiene, um cobertor e um espelho.
(Resgate de trabalhadora em Minas Gerais, dezembro de 2024)
Os trabalhadores eram provenientes de diversos estados, incluindo um argentino e oito brasileiros dos estados de Pernambuco, Bahia e Maranhão. Eles foram encontrados em alojamentos precários, com alimentação insuficiente e submetidos a condições de trabalho exaustivas. A inspeção identificou ainda casos de aliciamento, endividamento, informalidade, retenção de salários, cobranças indevidas, jornadas excessivas em ambiente insalubre e falta de pagamento de verbas trabalhistas.
Aves descartadas do processo produtivo eram, em alguns casos, a única fonte de proteína consumida pelos trabalhadores. Eles dormiam em colchões diretamente no chão, o fornecimento de água estava cortado há duas semanas, obrigando os trabalhadores a buscar água em um valão próximo para consumo, preparo de alimentos e uso do vaso sanitário. Muitos trabalhadores dobravam a jornada, restando-lhes poucas horas para descanso e alimentação. A fiscalização caracterizou o trabalho em condições análogas às de escravo, incluindo modalidades como trabalho forçado, condições degradantes, jornadas exaustivas e servidão por dívidas.
(Resgate de 10 trabalhadores no Rio Grande do Sul, dezembro de 2024)
Os relatos que abrem esta matéria foram publicados no portal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), e são apenas alguns dos últimos casos de resgate de trabalhadoras e trabalhadores que foram encontrados em condições análogas à escravidão no Brasil, que já somam mais de 65 mil, desde que foram criados os Grupos Especiais de Fiscalização Móvel, em 1995. Situações como estas fazem parte da rotina de auditoras e auditores-fiscais do trabalho. Três deles, Erastóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage, Nelson José da Silva e o motorista que os acompanhava, Ailton Pereira de Oliveira, foram assassinados em uma emboscada enquanto apuravam denúncias de trabalho escravo em fazendas da região de Unaí, em Minas Gerais. Era 28 de janeiro de 2004. Cinco anos depois, a data passou a ser marcada como Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
Um dos mandantes da execução desses quatro servidores públicos, o fazendeiro Norberto Mânica, estava foragido até 15 de janeiro deste ano, quando foi preso em Nova Petrópolis/RS por agentes da polícia civil.
Um caso emblemático no Rio Grande do Sul impactou o Brasil
A 65 km de distância do local em que Mânica foi finalmente detido fica a cidade de Bento Gonçalves, onde ocorreu um caso de trabalho análogo à escravidão de grande impacto e repercussão nacional, em fevereiro de 2023. Três grandes e conhecidas vinícolas do Rio Grande do Sul usavam mão de obra análoga à escravidão na colheita da safra da uva. Foram 210 trabalhadores resgatados, numa operação conjunta entre Polícia Rodoviária Federal (PRF), Polícia Federal (PF) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), após três trabalhadores conseguirem fugir do alojamento onde achavam-se mantidos e pedirem ajuda.
A fiscalização apurou que os trabalhadores estavam apinhados num alojamento pequeno, sem segurança, higiene e haviam passado por ocorrências de abusos e violência física e psicológica: surras com cabo de vassoura, mordidas, choques elétricos e ataques com spray de pimenta. Além disso, eram ofertados alimentos estragados ou a compra de outros num mercado local, a preços extorsivos, que o empregado estava sempre devendo e não conseguia sair sem pagar a conta, não recebia o salário e ficava preso no local por conta da dívida.
Como foram aliciados na Bahia, já durante a viagem para o Rio Grande do Sul contraíram dívidas de alimentação e transporte, o que vieram a saber somente depois de chegarem ao destino. Além disso, iniciavam o trabalho às quatro da manhã com uma jornada extremamente exaustiva que se estendia até às oito ou nove horas da noite. E ainda eram coagidos a permanecer no local sob pena de pagamento de uma multa por quebra do contrato de trabalho. Quando um trabalhador reclamou das condições degradantes foi ameaçado de morte. Você pode escutar sua história comovente no podcast No Labirinto, produzido pela Repórter Brasil, uma das mais importantes organizações de informação sobre trabalho escravo.
A violência da situação foi um dos elementos que chamaram a atenção de todo o país. Mas “o fato de que a maioria dos trabalhadores era da Bahia e foi encontrada no Rio Grande do Sul também deu uma dimensão simbólica difícil de ignorar, com os resgatados tendo se submetido a uma viagem do tamanho do Brasil para tentar obter oportunidades apenas para se ver em uma situação de condições degradantes”, escrevem os jornalistas Carlos André Moreira (RS) e Rogério Paiva (BA) na Revista Labor, do Ministério Público do Trabalho (MPT).
As vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi terceirizavam a mão de obra para a colheita da uva, através da contratação da empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde LTDA, que recrutou os trabalhadores na Bahia. Embora as companhias não fossem as contratantes diretas dos trabalhadores, se beneficiaram da mão de obra submetida a condição análoga à escravidão através do serviço terceirizado e foram igualmente responsabilizadas.
O que também abalou o país é que a terceirizada prestava serviços para a cadeia da uva e do vinho atuando para três das mais destacadas companhias do Estado, que é o maior produtor de uva e derivados do Brasil, respondendo por cerca de metade da produção nacional. “Há ainda uma identidade forte entre o setor e a região da Serra, e o produto costuma ser associado a requinte e sofisticação”, lembram os jornalistas do MPT, que assinaram a matéria Virou Vinagre, do Ministério Público do Trabalho. A repercussão do caso colocou o tema do trabalho análogo à escravidão em debate no Brasil inteiro.
As três vinícolas publicaram notas oficiais desculpando-se pelo ocorrido, dizendo que não compactuam com as práticas e que não tinham conhecimento de como os trabalhadores eram tratados. No entanto, para o Ministério Público do Trabalho, há, por parte das vinícolas contratantes, a chamada responsabilidade solidária no que diz respeito às condições oferecidas aos trabalhadores.
Para a juíza e doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), Valdete Souto Severo, ao optarem pela terceirização, as empresas assumem também o risco do resultado dessa escolha: “É sempre a mesma coisa, a declaração de surpresa, de que não sabiam de nada, de que agora tomarão providências, mas aí que está o problema, na origem, na escolha de terceirizar. Mesmo que a gente parta do pressuposto que é possível terceirizar, é preciso entender que essa escolha administrativa acaba gerando como efeito a possibilidade de acontecer coisas como essa e a tomadora realmente não saber. Então não se trata de dizer que essas vinícolas deliberadamente escolheram escravizar os trabalhadores, mas elas assumiram esse risco e a responsabilidade por isso quando resolveram terceirizar e não fiscalizaram”, explicou a doutora em direito do trabalho para reportagem do portal de notícias Sul 21.
O Ministério Público do Trabalho firmou termo de ajuste de conduta (TAC) com as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton no valor de R$ 7 milhões em indenizações, R$ 5 milhões por danos morais coletivos e R$ 2 milhões por danos individuais, valor que foi dividido entre os resgatados. Os valores do dano moral coletivo são revertidos para entidades, fundos ou projetos visando a recomposição do dano, informa o MPT.
Os números dos resgates no RS
A repercussão do caso em Bento Gonçalves também revelou que os resgates vinham num crescimento exponencial no Rio Grande do Sul. Em 2023 foram 345 pessoas resgatadas, um número recorde, mais que o dobro do ano anterior, 156. E que já representava, por sua vez, o dobro do número de resgatados eresgatadas em 2021, que foram 76. Em 2024, entretanto, houve uma queda para 91 pessoas resgatadas.
De 1995, quando iniciou o trabalho de resgates, até 2024, foram 1.002 pessoas libertadas depois de passarem pela condição de trabalho análogo à escravidão no Rio Grande do Sul. Neste mesmo período foram mais de 65,2 mil trabalhadoras e trabalhadores flagrados em todo o Brasil, desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego.
O ano de 2024 ficou marcado pela maior operação da história contra trabalho escravo no país, que resgatou 593 trabalhadoras e trabalhadores após 23 equipes de fiscalização participarem de 130 inspeções em 15 estados e no Distrito Federal, realizadas entre os dias 19 de julho e 28 de agosto.
Acompanhe o número de resgates no Rio Grande do Sul entre os anos de 2015 – 2024
2015 |
2016 |
2017 |
2018 |
2019 |
2020 |
2021 |
2022 |
2023 |
2024 |
32 |
17 |
06 |
0 |
02 |
05 |
76 |
156 |
345 |
91 |
Bacharel da UFSM estuda trabalho doméstico análogo à escravidão
A bacharel em Direito pela UFSM, Jaiari da Rosa Fonseca, analisou em que medida os mecanismos jurídicos vigentes no Brasil são ou não eficazes para combater, efetivamente, o trabalho doméstico análogo à escravidão. Sua pesquisa resultou na monografia intitulada "O trabalho doméstico no Brasil e a (in)efetividade dos mecanismos jurídicos: Uma análise a partir do podcast 'A Mulher da Casa Abandonada'" sob a perspectiva da legislação brasileira". Jaiari identificou que mesmo com avanços legislativos importantes, como a Emenda Constitucional n° 72/2013 (PEC das Domésticas) e a Lei Complementar n° 150/2015, que dispõe sobre a jornada para trabalhadores domésticos, há muitas lacunas para a aplicação prática dessas normas.
Em entrevista à Assessoria de Imprensa da Sedufsm, a pesquisadora reconhece também que a fiscalização enfrenta desafios devido a fatores históricos, culturais e estruturais. “No Brasil, embora a abolição da escravidão tenha ocorrido há mais de um século, as heranças permanecem evidentes. É muito presente as relações de poder, que são marcadas por desigualdades históricas de raça, gênero e classe, o que expõe a vulnerabilidade das empregadas domésticas [...] É impossível não sentir indignação ao perceber como essa prática, tão desumana e degradante, ainda é presente.”
Segundo ela apurou, de 1995 até outubro de 2024, menos de 2% das pessoas resgatadas por condições de trabalho análogos à escravidão eram domésticas. Em dados do IBGE de 2019, 6,2 milhões de pessoas trabalhavam no serviço doméstico, e dessas 92% eram mulheres, sendo 65% delas pretas ou pardas. “Esses dados refletem a dificuldade de identificação desses casos, havendo subnotificação. Um fator que contribui para a invisibilidade é a narrativa de ‘como se fosse da família’. É alarmante como esse discurso é naturalizado na sociedade, porque mascara a relação trabalhista e é utilizado pelos empregadores para se eximirem das obrigações legais”.
Apesar da existência de mecanismos jurídicos, a pesquisadora conclui que eles ainda não são eficazes, especialmente tendo em vista a invisibilidade do trabalho doméstico análogo à escravidão e o princípio da inviolabilidade do domicílio. O caráter privado do trabalho doméstico dificulta a fiscalização. Soma-se ainda o fator da baixa escolaridade das vítimas que, muitas vezes, não têm conhecimento de seus direitos e, por isso, a fiscalização do trabalho doméstico depende das denúncias por parte das próprias vítimas ou, muitas vezes, dos vizinhos. “Um questionamento que levanto, a partir disso, é como pode ser efetivamente fiscalizado algo que nem é visível para a sociedade e para os órgãos fiscalizadores. Assim, a concretização da efetividade (da fiscalização) apresenta barreiras, tanto sociais, quanto legislativas e institucionais”, afirma Jaiari.
A bacharel em direito pela UFSM diz que este estudo lhe trouxe uma compreensão mais ampla sobre a complexidade do problema e a necessidade urgente de ação. Indica que o Brasil não investe em políticas de prevenção para combater o trabalho análogo à escravidão, e, na maioria das vezes, só intervém posteriormente, quando as vítimas já se encontram nessas condições. “Ainda há um longo caminho a percorrer para garantir que os direitos das trabalhadoras domésticas (e dos trabalhadores em geral) sejam efetivamente respeitados. O que destaca a importância da educação, da conscientização e de políticas públicas que assegurem condições dignas de trabalho”, ela defende.
O podcast “A Mulher da Casa Abandonada”, utilizado por Jaiari para tratar do tema, aborda a história de Margarida Bonetti que, junto com o marido, foi acusada de manter uma empregada doméstica em condições análogas à escravidão por quase duas décadas nos Estados Unidos, durante os anos 1970 e 1980. A empregada já "trabalhava" para os pais de Margarida, que a deram de “presente" para a filha, quando esta se mudou para outro país.
A empregada foi mantida em cárcere privado, submetida a longas jornadas, sofreu violência física e verbal e teve negado o acesso a direitos básicos, como salário, saúde e liberdade. A vítima vivia em condições degradantes, incluindo dormir no porão da casa, sem banheiro ou janela. O podcast expõe a exploração e os abusos físicos e psicológicos sofridos pela vítima. Também, aborda as questões de racismo, elitismo e impunidade que permeiam essas práticas. A bacharel identifica ainda um mesmo padrão nos casos de trabalho doméstico análogo ao de escravo, que ultrapassa fronteiras.
Um caso recente em Santa Maria
Em Santa Maria, uma mulher de 45 anos foi resgatada do trabalho análogo à escravidão em que se encontrava há 21 anos trabalhando como doméstica na residência de uma família da cidade. Ela nunca recebeu salário nem direitos trabalhistas, tão pouco foi registrada como empregada. Adelaide não tinha permissão para ir e vir livremente, recebia apenas comida e moradia pelo trabalho que realizava e suas roupas eram supridas por doações.
O resgate em junho de 2023, conforme noticiou o Diário de Santa Maria, envolveu auditores-fiscais da Gerência Regional do Trabalho, Ministério Público do Trabalho, Polícia Federal e o Centro de Referência de Assistência Social, vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Social do município. A condição de escravidão em que se encontrava só foi possível identificar quando a vítima foi atendida no Pronto Atendimento Ruben Noal, no Bairro Tancredo Neves, onde foi diagnosticada com Transtorno de Ansiedade Generalizado (TAG).
A médica observou no prontuário da paciente a possível situação de trabalho escravo e a encaminhou para o Santa Maria Acolhe, serviço de referência para população que esteja em sofrimento psíquico agudo em decorrência de situações de natureza traumática. A equipe da Secretaria de Desenvolvimento Social entrou em contato com auditores-fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego para relatar a situação e, a partir daí, seu resgate foi realizado.
Jornada análoga à escravidão (o caso 10x1 em Porto Alegre)
Recentemente gerou grande repercussão nacional o debate em torno da escala de trabalho 6x1 (seis dias trabalhados para um de folga). Relatos de trabalhadoras e trabalhadores submetidos à exaustão e ao adoecimento pelo pouco tempo de descanso ou espaço na vida para o lazer ou outras atividades que não seja trabalhar, ganharam amplo destaque nas redes sociais e na mídia em novembro do ano passado. Mobilizações de rua denunciando a exploração dos trabalhadores e das trabalhadoras aconteceram em diversas capitais e cidades médias do país e tiveram forte influência do Movimento Vida Além do Trabalho (VAT), do vereador Rick Azevedo, do Rio de Janeiro, e da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para acabar com a escala 6x1, de autoria da deputada Erika Hilton, do PSOL.
Se aprovada a PEC, será retirada do texto constitucional a previsão de escala de trabalho 6×1, o que levaria a escalas 5×2 ou até 4×3, algo que já é testado em alguns países e sem redução de salários. “A escala 6x1 tira do trabalhador o direito de passar tempo com sua família, de cuidar de si, de se divertir, de procurar outro emprego ou até mesmo se qualificar para um emprego melhor. A escala 6x1 é uma prisão, é incompatível com a dignidade do trabalhador”, defendeu Erika.
Quando a escala 6x1 passou a ser vista como absurda, trabalhadores e trabalhadoras delataram que os supermercados da Companhia Zaffari, no RS, submetem seus empregados a uma escala que chega a 10 dias trabalhados para apenas um de folga. A denúncia veio a público em dezembro passado em matéria do portal Brasil de Fato. Mas outras irregularidades e violações de direitos também são relatadas pelos funcionários.
“Enquanto o Zaffari lucrou R$ 7,6 bilhões em 2023, 12,5 mil trabalhadores enfrentam escalas de até 10 dias seguidos de trabalho para uma folga, salários líquidos de cerca de R$ 1,2 mil e jornadas exaustivas com manipulação de banco de horas”, repercutiu Juliana Souza, vereadora eleita do PT em Porto Alegre.
Um acordo entre o Zaffari (12ª maior rede de supermercados do Brasil) e o Sindicato dos Empregados no Comércio de Porto Alegre permitiria as condições degradantes. Desde a reforma trabalhista de 2017, adotou-se o princípio do negociado sobre o legislado, ou seja, a legislação é flexibilizada. A Consolidação das Leis Trabalhistas prevê o direito a um descanso semanal para o trabalhador. No entanto, entende-se que um acordo coletivo pode driblar essa lei.
“Na prática, se o seu sindicato aceita que você trabalhe dez dias consecutivos, não vai dar nenhum problema para a empresa. Só que sejamos sinceros, não existe nenhuma negociação possível em pé de igualdade numa relação de trabalho entre patrão e empregado, porque o trabalhador vai aceitar o que for necessário para ele manter o próprio emprego. E aí a gente disfarça a exploração como se fosse um acordo”, alerta a pesquisadora e palestrante Mariane Santana, que aborda a influência da cultura nos modos de viver contemporâneos.
Para ela, quando o tempo do descanso pode ser “negociado”, quem paga é o corpo do trabalhador. “Não podemos perder de vista que o descanso é um direito, e não um privilégio. Dez dias em pé, dez dias atendendo cliente, dez dias repondo mercadoria, carregando caixa, para no final ter só um dia de descanso. O que se pede dos trabalhadores é que eles escolham entre ter saúde ou ter salário. Trabalhar até a exaustão não deveria ser o preço para a gente conseguir se manter no emprego”, adverte Mariane, que também estuda psicologia organizacional e gestão de pessoas na PUC-RS.
Segundo Valdete Souto Severo, juíza do trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, a combinação de violações de direitos como a jornada de 10 dias (ou mais), trabalho em três domingos consecutivos, condicionamento do auxílio-alimentação ao consumo interno, restrição e constrangimento ao adoecimento dos funcionários, como denunciam os trabalhadores do Zaffari, em tese, pode vir a ser enquadrado como trabalho análogo à escravidão.
É o que entende também a deputada Erika Hilton: “Eu e o @RickAzzevedo, fundador do @Movimento_VAT, acabamos de denunciar a rede Zaffari à justiça por exigir de seus funcionários a escala de trabalho 10×1. Não podemos admitir que, em nenhuma circunstância, os trabalhadores sejam submetidos a uma escala tão cruel e desumana. Por isso, pedimos ao Ministério Público do Trabalho que investigue, inspecione e, se necessário, inclua a rede Zaffari na lista conhecida como a Lista Suja do Trabalho Escravo. E também pedimos ao MPT e ao Ministério do Trabalho e Emprego que implemente, nacionalmente, um canal para denúncias de jornadas de trabalho ilegais, exaustivas e degradantes, como a utilizada pela Rede Zaffari”, escreveu a deputada em uma postagem no Instagram.
Atacar a causa do trabalho escravo
Em fevereiro de 2024 aconteceu em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, o seminário "Direito Fundamental ao Trabalho Decente: caminhos para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo". A escolha da cidade foi simbólica, por conta dos trabalhadores resgatados um ano antes na “indecência da escravidão”, lembrou o presidente do TRT-4, desembargador Ricardo Martins Costa. Em 2023, 3.190 pessoas haviam sido resgatadas de trabalhos análogos à escravidão em todo o território nacional. Na carta publicada ao final do evento, a constatação de que “o trabalho escravo contemporâneo é um fenômeno estrutural, que não pode ser individualizado. Trata-se da consequência de um sistema de produção, que visa a uma máxima redução de custos e resulta na superexploração e desumanização de trabalhadores e trabalhadoras”.
No painel que teve como tema "A Organização Internacional do Trabalho e o Trabalho Forçado", estava presente a coordenadora do Programa de Princípios Fundamentais no Trabalho da OIT no Brasil, Maria Cláudia Falcão. Segundo ela, estudos da OIT apontam que 80% dos trabalhadores resgatados em condições de escravidão foram trabalhadores infantis. Ela defende a necessidade de se erradicar o trabalho infantil como fundamental para o enfrentamento ao trabalho escravo, porque um trabalhador infantil tem muita chance de se envolver em formas de trabalho degradantes na vida adulta.
Conforme a coordenadora, a pobreza e a desigualdade são os fatores fundamentais tanto para a existência do trabalho infantil como do trabalho escravo. "A OIT está preocupada em entender as raízes desses fenômenos, para que quando chegar o momento da intervenção a gente ataque a causa e não apenas os sintomas", declarou. Segundo ela, é importante que se analise os aspectos de vulnerabilidade que rondam a vítima de trabalho escravo, e não apenas a condição dela em particular. "A comunidade em que está inserida, os problemas sociais do entorno, as políticas públicas que podem incidir na vida dessa comunidade" foram circunstâncias citadas pela palestrante como fundamentais para que as pessoas resgatadas não voltem ao trabalho escravo. "Não há desenvolvimento possível com a presença do trabalho escravo", enfatizou a painelista.
Já em abril de 2024, após mais um caso de trabalho escravo no Rio Grande do Sul, dessa vez em Taquara, o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS) promoveu na cidade uma reunião ampliada do Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, ao Tráfico de Pessoas e de Proteção do Trabalho do Migrante para discutir medidas de enfrentamento.
Na ocasião, conforme reportou o site do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, o desembargador Manuel Cid Jardon, também gestor do Programa Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo para a região de abrangência do TRT-4, defendeu que para combater o trabalho escravo é necessário a realização de ações multidisciplinares e de forma integrada, que as instituições dialoguem e realizem ações planejadas e coordenadas. “O trabalho escravo atenta não só contra a dignidade do ser humano, mas contra a democracia, mercantiliza a força de trabalho com uma visão neoliberal, como se o trabalhador fosse um objeto, numa grave violação de direitos humanos”, declarou o magistrado.
Canais de denúncias sobre Trabalho Escravo:
DISQUE 100
O Disque Direitos Humanos funciona diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. As ligações podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem direta e gratuita, de qualquer terminal telefônico fixo ou móvel, bastando discar 100.
Sistema Ipê
O Sistema Ipê é um sistema para coleta, concentração e tratamento das denúncias de trabalho em condições análogas às de escravo no território brasileiro.
Ouvidoria do TRT da 4ª Região
A Ouvidoria recebe denúncias de assédio moral e assédio sexual, no âmbito do TRT-4, trabalho infantil e trabalho escravo. Assim como denúncias de assédio eleitoral nas relações de trabalho.
Para esta reportagem, mantivemos contato com a Assessoria de Comunicação do Ministério Público do Trabalho no RS e a Procuradoria do Ministério Público do Trabalho em Santa Maria. Usamos como fonte conteúdos jornalísticos do Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho, Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região, Agência Brasil, Agência Gov, Repórter Brasil, Brasil de Fato, Sul 21, Extra Classe e Diário de Santa Maria. Também entrevistamos a bacharel em Direito pela UFSM, Jaiari da Rosa Fonseca.
Texto: Jefferson Pinheiro com a colaboração de Bruna Homrich
Arte: Italo de Paula
Fotos: Divulgação MTE, MPT e SINAIT
Assessoria de imprensa da Sedufsm
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