O trabalho escravo continua, mas o cerco a esse crime aumentou
Publicada em
18/02/25
Atualizada em
18/02/25 16h37m
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Novos casos de trabalho análogo à escravidão são identificados na colheita da uva na Serra Gaúcha, mas o Ministério Público do Trabalho no RS e outras instituições estão mobilizadas para enfrentar esse crime contra trabalhadoras e trabalhadores.
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Em 28 de janeiro, no mesmo dia em que publicávamos uma matéria sobre trabalho escravo no Brasil, mais um resgate de trabalhadores em condições análogas à escravidão ocorria na colheita da uva na Serra Gaúcha. Em São Marcos/RS, quatro argentinos foram resgatados justamente no Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
O que poderia ser apenas coincidência, logo se revelou a continuidade de uma situação degradante que tem se repetido nos últimos anos, com mais dois casos revelados na sequência. Numa consulta ao site do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) na manhã do dia 11 de fevereiro, os três últimos casos registrados no país se referiam a resgates de safristas (como são chamados os trabalhadores temporários) na colheita da uva no RS. Depois do dia 28.01, o segundo caso, novamente com trabalhadores argentinos, foi destacado assim no site do Ministério: “Uma força tarefa resgatou no último dia 02 de fevereiro em Flores da Cunha, município a 147 km do Porto Alegre, um grupo de 9 trabalhadores que laboravam na colheita da uva, sendo 8 deles argentinos. A Inspeção do Trabalho do MTE integrou a operação junto com outros órgãos que participaram da operação articulada pela Polícia Federal, a partir de denúncias junto à Brigada Militar do município”.
Já no dia 07 de fevereiro, no terceiro caso em apenas 10 dias, 18 trabalhadores e trabalhadoras indígenas foram resgatadas em condições análogas à escravidão. Entre os alojados, havia um bebê e uma criança de cinco anos, filhos das e dos indígenas. A operação, coordenada por auditores-fiscais do Trabalho, identificou alojamento precário e falsas promessas de trabalho na colheita da uva em Bento Gonçalves, entre outras violações e irregularidades. Em sua maioria da reserva indígena Kaingang de Benjamin Constant do Sul (RS), os 12 homens e seis mulheres, com idades entre 17 e 67 anos, haviam sido contratados por uma empresa terceirizada que prestava serviço para agricultores. A ação contou com o apoio da Secretaria de Assistência Social, da Guarda Municipal de Bento Gonçalves e da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Segundo os produtores rurais, a empresa terceirizada garantiu que todas e todos os trabalhadores indígenas estavam devidamente registrados, o que não aconteceu de fato.
Resgates recorrentes na colheita da uva
Em fevereiro de 2023, 210 trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados numa única operação em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. A situação dos safristas, a maioria vinda da Bahia, foi notícia amplamente divulgada no país, gerou debates e ações de instituições públicas e da sociedade civil.
No ano seguinte, entre janeiro e fevereiro de 2024, o Ministério do Trabalho e Emprego deflagrou a operação “In Vino Veritas” no Rio Grande do Sul, para verificar condições de trabalho na safra da uva na Serra Gaúcha. Em maio de 2023 o MTE já havia assinado, em Porto Alegre, um pacto com a Federação das Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul (FECOVINHO), a Federação dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais do Rio Grande do Sul (FETAR/RS), o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), para adoção de boas práticas trabalhistas no intuito de erradicar o trabalho análogo à escravidão na vitivinicultura do estado. Ao final da operação “In Vino Veritas”, que levou um mês, foram resgatados 27 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Nas propriedades vistoriadas foram encontrados 449 trabalhadores e trabalhadoras safristas sem os devidos registros trabalhistas, um total de 27,13% do total inspecionado.
O objetivo da operação foi garantir o respeito aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras e verificar as mudanças feitas em toda a cadeia produtiva pactuadas pelo setor a partir de 2023. Foram inspecionados estabelecimentos rurais e vinícolas da região, que concentra a maioria da produção nacional de uva e vinhos.
A experiência de organizar os safristas para o trabalho na Serra
Também no dia 28 de janeiro deste ano, enquanto era realizado o resgate dos quatro trabalhadores argentinos em condições análogas à escravidão no RS, um evento em Brasília marcava os 30 anos da política nacional de combate ao trabalho escravo, que abordou os avanços e desafios no enfrentamento ao trabalho escravo, com foco em políticas públicas, fiscalização e a atuação da sociedade civil. Entre as organizações da sociedade estavam a Comissão Pastoral da Terra, ONG Repórter Brasil e a Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados Rurais (CONTAR), representada por Laíssa Pollyana do Carmo, que trouxe um dado preocupante sobre a informalidade: “Dos 4 milhões de trabalhadores assalariados rurais (no país), 60% não têm carteira assinada. Além disso, apenas 12% desses trabalhadores são mulheres.” Para ela, o diálogo entre entidades de trabalhadores, setor produtivo e setor público é fundamental.
Já a Federação dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais no Rio Grande do Sul “vem trabalhando para combater a informalidade”, informa seu presidente, João Larrosa. Segundo reportagem da RBS, são necessários ao menos 25 mil trabalhadores e trabalhadoras nos vinhedos a cada colheita da uva na Serra e a FETAR-RS, em colaboração com o SINE de Arroio Grande-RS, tem levado safristas do Sul do Estado para a região serrana, já que em suas cidades de origem têm menos oportunidades de emprego em comparação à demanda na Serra. Ele aposta nesta parceria com os SINE no Rio Grande do Sul para formalizar e regularizar o trabalho de safrista na vitivinicultura, contribuindo assim para evitar o trabalho escravo.
Larrosa informa que a FETAR-RS está planejando um encontro nacional na Serra com a participação da CONTAR e de representantes de países vizinhos, origem de alguns dos trabalhadores resgatados na colheita da uva. “(eles) Vêm pra cá e são submetidos a trabalho análogo à escravidão de forma cruel por alguns agricultores que parecem continuar confrontando as questões legais, que buscam esse enfrentamento e que, infelizmente, ainda tem o apoio de alguns políticos que compactuam com isso e negam os acontecimentos”, declara à reportagem da Sedufsm. Ele se refere à fala do Deputado Alceu Moreira (MDB-RS), que o próprio divulgou em suas redes sociais: “...porque se um fiscal chegar numa propriedade, ele vai criar um cenário do trabalho análogo do jeito que ele deseja”. Moreira argumenta que o pequeno agricultor que contrata um trabalhador temporário para a colheita da uva e tem sua propriedade fiscalizada é, na verdade, vítima de um “Estado policialesco e ideológico”.
O presidente da FETAR lastima o posicionamento do político que integra a Frente Parlamentar da Agropecuária: “Escutamos o deputado Alceu Moreira questionando as ações do próprio Ministério do Trabalho e, quando se age daquela forma, acaba motivando para que esses casos aconteçam, porque quem escuta aquilo se dá o direito de dizer ‘Eu estou certo. Errado está quem me fiscaliza’.” E o presidente da Federação dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas complementa: “Lamentamos, pois, esse tipo de posição prejudica muito todo um trabalho que vem sendo feito de formalização”.
Mecanização é um caminho indicado pela Embrapa Uva e Vinho
Questionada sobre os casos recorrentes de resgates de trabalhadores em condições análogas à escravidão na colheita da uva no RS, a Assessoria de Comunicação da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, instituição vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária e que desde 1975 vem colaborando para o desenvolvimento da vitivinicultura brasileira, responde em nota (também assinada pela Embrapa em Brasília) que repudia qualquer forma de trabalho análogo ao escravo e defende o respeito à legislação trabalhista. E aponta para uma contribuição tecnológica no enfrentamento do problema: “Consciente dos desafios impostos pela escassez de mão-de-obra no campo, a Embrapa está comprometida em criar tecnologias que possam não apenas facilitar, mas também promover práticas mecanizadas para o sistema de produção da vitivinicultura brasileira, que contribuirão para maior sustentabilidade social e econômica ao setor".
As ações do Ministério Público do Trabalho contra o trabalho escravo no RS
Em entrevista respondida por escrito à Sedufsm, a Procuradora do Trabalho no RS Franciele D’Ambros, Coordenadora Regional da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete), fala sobre as ações que o MPT-RS está desenvolvendo de combate ao trabalho escravo e o contexto social em que acontecem.
Depois do caso ocorrido em 2023, quando 210 pessoas foram resgatadas do trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, quais ações o MPT-RS realizou para que novos casos não acontecessem?
Uma das principais ações realizadas pelo MPT-RS na sequência do resgate dos 210 trabalhadores em Bento Gonçalves, foi a assinatura de um TAC com as vinícolas tomadoras do serviço dos trabalhadores, exigindo não apenas a compensação financeira pelo ilícito praticado no caso concreto, mas também o seu comprometimento na busca da erradicação do trabalho análogo à escravidão na cadeia produtiva da uva, com a efetiva promoção do trabalho decente. Assim, três das principais empresas do setor assumiram também a obrigação de fiscalização e monitoramento da cadeia produtiva da uva como um todo. Em paralelo a isso, o MPT segue atuando na garantia dos direitos trabalhistas e dedicando esforços à fiscalização de irregularidades e à promoção de boas práticas na gestão trabalhista, inclusive mediante a realização de capacitações específicas por meio da sua Coordenadoria.
O que indica o fato de termos recentemente três novos casos na safra da uva em pouco mais de uma semana?
A fiscalização da cadeia produtiva da uva sempre é realizada nos períodos de safra. Em 2024, por exemplo, foi realizada, de 21 de janeiro a 23 de fevereiro na Serra Gaúcha, a Operação In Vino Veritas, força-tarefa coordenada pelo MTE, acompanhada pelo MPT e com apoio da PRF, para garantir o respeito aos direitos dos trabalhadores safristas na colheita e averiguar se as obrigações pactuadas pela cadeia produtiva do setor após o resgate em Bento Gonçalves estavam efetivamente sendo realizadas na prática. No entanto, para além da região de Bento Gonçalves, a fiscalização expandiu-se para outros municípios da região da Serra, onde foram constatados os casos de trabalho escravo em 2024 e em 2025, verificando-se, assim, a efetividade do TAC firmado com as Vinícolas.
O que leva a continuidade desta violação de direitos e a exploração de trabalhadores se repetir na Serra Gaúcha, mesmo depois de tamanha repercussão negativa do caso ocorrido em 2023?
São vários os fatores a serem considerados na análise dos motivos para as recorrências de trabalho escravo não apenas no Estado, mas no país inteiro. O primeiro são os altos índices de pobreza e vulnerabilidade social ainda registrados no país. Quanto maior a vulnerabilidade, maiores são as probabilidades de que trabalhadores desesperados sejam aliciados por falsas propostas de emprego, atraentes quando feitas, mas que se revelam uma fraude quando o trabalhador finalmente chega ao local de trabalho.
Como temos visto recentemente, esse tipo de situação pode levar a problemas mesmo no caso de trabalhadores oriundos de outros países. Necessário esclarecer, contudo, que nos casos mais recentes, envolvendo os trabalhadores argentinos, temos visto mais problemas quando a mão de obra é fornecida por um intermediador, havendo ainda muitas empresas prestadoras de serviços inidôneas. Em relação aos produtores rurais que têm realizado a contratação de mão-de-obra de forma direta, não tem se verificado, de modo geral, esse tipo de problema. Outro ponto a ser ressaltado, e esse de certo modo faz parte das consequências positivas da divulgação dos resgates, é que parece haver uma maior conscientização da sociedade quanto ao tamanho e à gravidade do problema, que vem a se refletir no aumento do número de denúncias e, consequentemente, de resgates. Situações que antes eram consideradas normais não são mais vistas dessa forma pela população, gerando uma maior sensibilização quanto à temática. Em conclusão, o aparecimento de maior número de denúncias não significa dizer que aumentou o número de ocorrências dessa ilicitude, mas que agora elas efetivamente chegam às autoridades de fiscalização.
O que deve ser feito pelo MPT/RS para que a situação do trabalho análogo à escravidão não se repita?
O MPT segue cumprindo com a sua função de fiscal e promotor do trabalho decente. A instituição segue participando de ações fiscais coordenadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, cuja parceria vem sendo fundamental no combate ao trabalho escravo. Para além disso, realiza um trabalho preventivo, de conscientização acerca da temática, em especial por meio do Projeto Reação em Cadeia, que tem justamente o propósito de atuar em face das grandes empresas em setores específicos, para que as situações de trabalho escravo não ocorram na ponta. Por fim, atua também por meio de investigações conduzidas por seus membros, dependendo da realização de denúncias também, as quais são de suma importância para o combate desta chaga social. Frise-se que o combate à informalidade, às fraudes e ao trabalho infantil, além da promoção da igualdade de oportunidades, também são medidas que impactam no combate ao trabalho escravo contemporâneo, pois proporcionam condições dignas de trabalho, prevenindo a vulnerabilidade social.
Texto: Jefferson Pinheiro
Arte: Italo de Paula
Fotos: Divulgação MPT e PRF
Assessoria de imprensa da Sedufsm
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