Apesar da Lei de Cotas, desigualdade racial na UFSM ainda permanece
Publicada em
16/05/25
Atualizada em
16/05/25 18h12m
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Mesmo com políticas afirmativas em vigor há uma década, presença de pessoas negras e pardas é minoritária entre servidores e servidoras

A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) é marcada por uma grande diversidade de estudantes, servidores e projetos. No entanto, essa pluralidade não se reflete de forma equitativa na composição racial de seu quadro funcional. Os dados oficiais revelam uma presença massiva de pessoas brancas entre os servidores e servidoras, especialmente nos cargos docentes e de direção, evidenciando uma estrutura institucional que ainda não espelha a diversidade racial brasileira. De acordo com a Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (Progep), são 101 servidores e servidoras autodeclarados/as pretos/as e 247 autodeclarados/as pardos/as. Esse número é pequeno em um universo de mais de 7 mil servidores e servidoras da universidade (de acordo com os dados atuais do UFSM em Números). Na docência, os cotistas não ocupam nem 20% das vagas abertas na última década.
Nesta reportagem, convidados servidores(as) negros(as) para discutirem sobre a sua experiência na UFSM diante do cenário de 10 anos completos da Lei de Cotas para o serviço público no país.
A universidade é diversa, mas não igualitária: do total de servidores(as), negros e negras somam apenas 4,5% do quadro
O professor Anderson Santos, do departamento de Geociências da UFSM e integrante do NEABI (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas), é um servidor que ingressou no serviço público por meio da Lei de Cotas. Segundo ele, é necessário contextualizar o cenário que permeia esta condição para a compreensão dos motivos de tamanha desigualdade. “O Brasil é um país com a maior população negra fora de África, um país no qual mais de 50% de sua população se autodeclara como negros e negras. Entretanto, esse país é marcado por um racismo estrutural, institucional e cotidiano, e creio que este é um elemento fundamental para pensarmos a nossa condição na universidade brasileira. Infelizmente, as universidades no Brasil não foram pensadas para contemplar a presença dos povos, sobretudo dos povos originários, dos povos negros e negras, em sua configuração”, reforça Anderson.
Os dados obtidos pela assessoria de imprensa da Sedufsm através da Progep mostram que, atualmente, dentre os servidores(as) que atuam na UFSM, 348 se autodeclaram negros, sendo 101 pretos e 247 pardos. Isso representa apenas cerca de 4,5% do total de servidores da universidade (considerando um total de 7.693 servidores/as, dado disponibilizado no UFSM em Números). Dentre esses, 99 são docentes (10 pretos e 89 pardos). Os dados da Progep consideram MS, EBTT, visitantes e substitutos/as no cálculo. Se levarmos em consideração apenas efetivos/as, em 2025, os números se reduzem: são 333 servidores(as) negros e negras; 86 docentes (79 pardos e sete pretos) e 247 TAEs (156 pardos e 91 pretos).
Lei de Cotas na UFSM: apenas seis docentes são cotistas em 2025
Em junho de 2014, foi sancionada a Lei 12.990/2014, mais conhecida como política de cotas raciais de ingresso ao Serviço Público Federal, ou Lei de Cotas, válida por 10 anos. Esta lei estabeleceu que 20% das vagas oferecidas em concursos públicos para administração pública federal fossem reservadas a candidatos autodeclarados pretos ou pardos.
A Lei 12.990/2014 perdeu vigência em junho do ano passado e, recentemente, em 7 de maio de 2025, o Senado Federal aprovou um novo Projeto de Lei (1958/21), que a reserva de 30% de vagas para pessoas negras, indígenas e quilombolas em concursos públicos federais, diferindo da Lei anterior que previa a reserva de vagas apenas para pretos e pardos. O texto, que substitui a Lei 12.990/2014, segue no momento para sanção presidencial.
As atualizações da Lei de Cotas projetam a contemplação da diversidade brasileira nas universidades. No entanto, passados 10 anos da implementação da Lei, são evidentes os pontos que ainda carecem de mais atenção. Mesmo com a política de cotas raciais de ingresso ao serviço público federal tendo sido decretada em 2014, apenas em 2018, após uma interferência do Supremo Tribunal Federal (STF), é que a mesma realmente começou a ser cumprida. Antes disso, se valendo de pequenas brechas na lei, algumas manobras eram executadas para o seu não cumprimento nos processos seletivos federais, exemplificando de forma clara e cruel o racismo institucional existente no país. Assim, o STF precisou intervir e garantir o cumprimento da determinação de 2014. Passados os 10 anos de vigor da lei que buscou justamente promover a igualdade racial e a diversidade no serviço público, os números oficiais mostram que continuamos muito longe de uma situação equilibrada.
Na UFSM, segundo dados da Progep, 99 servidores negros ingressaram na instituição através da política de cotas raciais do serviço público federal. Destes, 93 são TAEs (43 pretos e 50 pardos) e apenas seis docentes (cinco pardos e um preto). Ao considerarmos, novamente, apenas o quadro de efetivos, o número de docentes cai para quatro pardos e nenhum preto. “Quantos concursos para docentes e quantas vagas tivemos no período de 10 anos? Os números mostram que, efetivamente, ainda falta para a lei de cotas ser cumprida dentro da instituição”, afirma a diretora da Sedufsm Neila Baldi, integrante Grupo de Trabalho de Políticas de Classe para as Questões Étnico-raciais , de Gênero e Diversidade Sexual (GTPCEGDS). Dados da Progep mostram que na década foram 663 vagas para docentes, com ingresso de quatro cotistas e 275 para técnicos e técnicas, sendo 93 cotistas. “Precisamos questionar porque não conseguimos cumprir as cotas entre as vagas para o magistério e o que devemos fazer para mudar este quadro. Dentro do sindicato nacional, por exemplo, tem se debatido cotas de reparação, nos próximos concursos, para que se atinja o percentual mínimo e tenhamos maior diversidade no quadro. É uma questão que levaremos para discussão no GTPCEDS”, explica a diretora.
Entre os docentes cotistas está o professor do curso de Dança do Centro de Artes e Letras (CAL), Jessé da Cruz, que topou conversar conosco sobre a sua experiência na universidade. Jessé se apresenta e se afirma como “um homem pardo, periférico, da favela, gay, pai solo e cotista”. Questionado sobre seu ingresso na UFSM, o docente respondeu o seguinte: “o meu processo de concurso, que é uma semana repleta de movimentos, de várias etapas da prova, inicialmente foi tranquilo. Mas a primeira proposição que me incomodou — salientando que a minha área de conhecimento é culturas populares brasileiras — foi uma banca formada por três pessoas, dermicamente claras, das quais duas não teriam um envolvimento adequado com a minha área de conhecimento, especificamente”, ressaltou o professor.
Em meio ao seu cotidiano na instituição, Jessé reforça mais um elemento a ser considerado na equação: a importância da representatividade e do acolhimento também de alunos cotistas. Segundo Jessé, sua trajetória como professor cotista o aproximou de estudantes que também ingressaram na universidade por meio das cotas. Essa proximidade tem revelado relatos preocupantes sobre o preconceito ainda presente no ambiente acadêmico. “Ouvi de alunos, por exemplo, que um docente disse que cotistas são um atraso para a universidade. Isso aconteceu no ano passado, 2024”, relatou. Episódios como esse evidenciam que o acolhimento — tanto de servidores quanto de estudantes cotistas — ainda é um desafio a ser enfrentado com seriedade na UFSM.
No caso da servidora Ângela Souza, que é assistente social e técnica-administrativa em educação (TAE) na UFSM, o processo de ingresso para o serviço público federal apresentou uma peculiaridade. Ângela conta que, "coincidentemente”, só foi contatada para assumir o cargo após ingressar judicialmente com questionamentos sobre o processo de chamada. Ela é uma das profissionais que utilizou a reserva de vagas prevista pela Lei de Cotas para o seu ingresso e comenta: “[...] estar na UFSM é a realização de um sonho, [a possibilidade] de outras [mulheres negras] acreditarem e de construirmos referências positivas para as nossas gerações. E, ao mesmo tempo, é um processo contínuo de enfrentamento. Cotidianamente, me deparo com uma estrutura racista que invisibiliza nossos corpos e saberes, silenciando nossas vozes e descredibilizando nossas experiências vividas e nossas epistemologias negras. Em muitos espaços continuamos como única representação negra”, salienta. Tanto Ângela quanto Jessé apontam para o fato de, em diversos ambientes, serem o único e a única representante negro e negra.
Porém, mesmo que a política de cotas já tenha chegado na UFSM através destes profissionais, ainda há um longo caminho a ser percorrido. O professor Anderson salienta que foi a partir da conferência de Durban, ocorrida em 2001 na África do Sul e promovida pela ONU, que se iniciou um ciclo de elaboração de políticas públicas afirmativas no Brasil. “São políticas de valorização, de reconhecimento e também de redistribuição de direitos que nos foram historicamente negados”, avalia.
Em relação à UFSM, Anderson traz outro ponto a ser debatido, que é a falta de profissionais negros e negras nos cargos de direção: “os dados evidenciam o quanto a população negra ainda se situa numa condição extremamente subalternizada e precarizada no mundo do trabalho, ocupando os piores postos, tendo os menores salários, sobretudo com destaque para as mulheres negras. [...] E na universidade, que é um reflexo da sociedade, estes aspectos também continuam a ser evidentes, tendo em vista o baixo número de servidores e servidoras negros e negras na nossa instituição em especial, a ausência do seu papel como dirigentes dessas instituições, uma subrepresentatividade da população negra na universidade”.
Ou seja, ainda há muito que se buscar para que as políticas de reparação resultem em uma universidade mais democrática e igualitária. Anderson salienta que “para além de aspectos de um plano de carreira, onde nós tenhamos essa valorização também do ponto de vista da nossa continuidade e progressão no ensino superior e da nossa progressão salarial, isso precisa passar também por essa dimensão reflexiva, epistemológica e de diálogo de saberes, que não estão acontecendo ou que não estão presentes, muitas vezes, nas nossas salas de aula, nos nossos projetos de pesquisa, nos nossos programas de extensão, por conta de uma concepção colonizadora e eurocêntrica do conhecimento. Então, debater a carreira também é debater esses aspectos”, reforça.
Além do ingresso, a importância da permanência e do acolhimento
Garantir o acesso é fundamental, mas também é muito importante que o acolhimento e a permanência das pessoas pretas e pardas na universidade seja eficiente. Conversamos com o professor moçambicano Celestino Joanguete, que é professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFSM (Poscom). Ao ser questionado sobre o acolhimento que recebeu ao chegar na UFSM, Celestino respondeu que teve uma boa experiência: “Tive uma recepção muito positiva tanto pela Secretaria de Apoio Internacional (SAI UFSM) quanto pelo Poscom, que ofereceram apoio eficiente na integração ao departamento, no tratamento da documentação junto à Polícia Federal e na partilha de informações importantes sobre segurança e adaptação à cidade”, relata o docente.
No entanto, ainda que haja uma boa percepção relatada pelo professor visitante sobre sua recepção, não existe uma política institucional para o acolhimento de servidores e servidoras negros e negras na UFSM. O que existe “[...] são rodas de conversa, que acontecem geralmente ou em eventos ou no próprio novembro negro, onde temos realizado rodas de conversa com docentes, TAE’s, estudantes também, negros e negras, e que se configuram como um momento muito significativo de partilha dos nossos saberes, de compreensão dos lugares onde estamos e das formas como temos contribuído para a universidade e também para a nossa comunidade”, relata Anderson. Segundo o docente, uma política de acolhimento institucional específica para servidores e servidoras negros e negras é um ponto a ser sensibilizado, debatido e implantado na UFSM.
Ângela também pontua sobre esta questão: “uma política efetiva de permanência e valorização de TAE’s negros e negras na UFSM deve ser estruturada com base em princípios de equidade, reparação histórica e combate ao racismo estrutural”. Além disso, ela também fala que programas de formação e capacitação permanente para todos(as) servidores(as) são necessários e fundamentais para promover a conscientização sobre questões raciais e práticas antirracistas. “A UFSM deve, ainda, implementar as políticas de ascensão profissional e liderança de servidores(as) negros(as), para cargos de gestão e direção. Por fim, é imprescindível estabelecer mecanismos de monitoramento, avaliação e prestação de contas das políticas implementadas, com a participação ativa da comunidade negra da universidade, garantindo a publicização e a efetividade das ações afirmativas”. A servidora relata que, com frequência, acontecem reuniões com a gestão atual para o desenvolvimento de estratégias e ferramentas para superar os desafios que as barreiras do racismo estrutural, institucional e a falta de uma conexão entre as ações causam, dificultando a promoção da igualdade racial e, consequentemente, a ascenção e reconhecimento profissional de TAEs negros e negras.
Em meio ao seu cotidiano na instituição, Jessé reforça mais um elemento a ser considerado na equação: a importância da representatividade e o acolhimento de estudantes cotistas. Segundo Jessé, sua trajetória como professor cotista o aproximou de estudantes que também ingressaram na universidade por meio das cotas. Essa proximidade tem revelado relatos preocupantes sobre o preconceito ainda presente no ambiente acadêmico. “Ouvi de alunos, por exemplo, que um docente disse que cotistas são um atraso para a universidade. Isso aconteceu no ano passado, 2024, né?”, relatou. Episódios como esse evidenciam que o acolhimento, tanto de servidores/as quanto de estudantes cotistas, ainda é um desafio a ser enfrentado com seriedade na UFSM.
O desafio de construir e manter uma política de equidade étnico-racial na UFSM
Com o novo Projeto de Lei aprovado pelo Senado e encaminhado para sanção presidencial, podemos esperar uma continuidade nesta trajetória em busca de igualdade racial no serviço público federal. Segundo Anderson Santos, o NEABI já iniciou a elaboração de uma campanha antirracista na UFSM, que deve vir à público ainda em 2025. Mas, mesmo que este seja um aspecto importante a ser abordado, Anderson afirma que a pauta principal do NEABI é a elaboração de uma política de promoção da equidade étnico-racial na UFSM. “Esse é um debate que nós iniciamos alguns anos atrás e pretendemos retomar - uma política que permeia todos os aspectos da universidade, seja para estudantes, para docentes, para técnicas e técnicos, no âmbito do ensino, da pesquisa, da extensão, e nessa discussão sobre os cargos de direção na instituição”, salienta.
Jessé, que também é integrante do NEABI, entende que uma política dentro da UFSM é necessária para que avanços neste sentido continuem acontecendo: “Falta uma política pública um pouco mais efetiva e que não seja como foi a minha. Eu poderia estar fora se tivéssemos outros colegas concorrendo, no sentido de que, em outras áreas, nós nem chegamos, como medicinas e outras”.
Em 2021, a UFSM lançou a campanha “UFSM Sem”, desenvolvida pela Unidade de Comunicação Integrada (Unicom), vinculada à Coordenadoria de Comunicação Social da UFSM. A campanha, que se renova anualmente, busca construir um ambiente acadêmico livre de preconceito, assédio, discriminação e outras formas de violência, por meio da conscientização e do incentivo à denúncia de atos discriminatórios. Para denunciar casos de racismo, a UFSM disponibiliza as seguintes informações:
- Portal da UFSM: ufsm.br/ouvidoria
- Telefone da Ouvidoria: (55) 3220-8673
- E-mail: ouvidoria@ufsm.br
A instituição também possui a atuação do Observatório de Direitos Humanos da UFSM, um ponto de referência para a discussão e a promoção da luta antirracista. As respostas que a Progep encaminhou para a nossa equipe também informam que a UFSM oferece e promove uma série de cursos, palestras e oficinas sobre racismo, com o objetivo de capacitar servidores/as e estudantes na identificação e no combate às práticas discriminatórias.
“O desafio é este: produzir uma política de promoção da equidade étnico-racial na UFSM e que ela permeia os diversos aspectos da construção da vida na universidade e as respostas também que a universidade precisa dar para a sociedade [...] Então, são alguns aspectos que nós temos defendido e que acreditamos que são possíveis de serem realizados e que farão com que a nossa universidade seja mais plural, mais diversa e que contemple não só os corpos territórios negros, mas também seus saberes e fazeres na sua pluralidade e na sua diversidade”, reforça Anderson.
Texto: Paola Matos (estagiária de Jornalismo)
Edição: Nathália Costa (jornalista)
Imagem: Italo de Paula
Assessoria de Imprensa da Sedufsm
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