Condenação de golpistas é avaliada como um momento histórico do Brasil
Publicada em
19/09/25
Atualizada em
22/09/25 15h45m
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Docentes alertam que vitória da democracia ainda não está consolidada, pois a extrema-direita segue mobilizada

27 anos e 3 meses de prisão em regime inicial fechado. Esse foi o tamanho da pena recebida pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), que junto com mais sete outros réus, em sua maioria militares de alta patente, foi condenado por tentativa de golpe de Estado e abolição da democracia a partir de ações ocorridas em seu mandato e que se estenderam até 8 de janeiro de 2023. A decisão foi tomada na quinta, 11 de setembro, através dos cinco ministros da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), com um placar de 4 votos a 1 (foto mais abaixo).
No entanto, apesar de muito comemorada por representar algo inédito na história do país, que é a punição a golpistas antidemocráticos, a decisão da Suprema Corte passou a ser, menos de uma semana depois, ameaçada de anulação através de ações da extrema-direita no parlamento brasileiro, que se mobiliza para aprovar uma anistia geral aos condenados.
Positivo e pedagógico
Everton Picolotto, professor do departamento de Ciências Sociais da UFSM e presidente da Sedufsm, avalia a condenação dos responsáveis pela tentativa de golpe como uma vitória indispensável para a democracia. “A decisão reafirma o compromisso das instituições com o Estado Democrático de Direito e envia uma mensagem clara de que atos contra a soberania popular e a Constituição não serão tolerados”. Considera ainda que a decisão é positiva para a universidade pública, que só existe e prospera em um ambiente de liberdade. Nesse sentido, argumenta que a responsabilização de quem ataca a democracia significa “um pilar fundamental para a continuidade do pensamento crítico, da ciência e da educação em nosso país”.
Para Diorge Konrad, professor do departamento de História da UFSM e que também fez parte da Comissão da Verdade na instituição, além de histórico, o julgamento que resultou na condenação de Bolsonaro e dos outros réus foi pedagógico. “A condenação ocorrida no nosso 11 de setembro, após dias de julgamento no Supremo Tribunal Federal, foi um alento e um presente para aqueles que lutaram pela democracia, mesmo com suas vidas, e todos que se consideram seus herdeiros, a fim de que não se esqueça, para que nunca mais aconteça.”
Marília De Nardin Budó, professora de Direito Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), destaca que a partir da sentença de Bolsonaro e demais réus, o país está diante de algo inédito: “a mais alta corte do país nomeou esses atos como tentativa de golpe, não deixando margem para interpretações outras, tal como ocorreu em outros momentos da história do Brasil – por exemplo, o uso do termo ‘revolução’ para nomear o golpe de 1964, ou mesmo – e ainda que em outras proporções – o golpe midiático, empresarial e parlamentar, contra a presidente Dilma Rousseff em 2016, tratado política e juridicamente como um impeachment operado dentro da legalidade.”
A docente, que também coordena o grupo de pesquisa “Poder, controle e dano social”, acrescenta também como elemento importante que a investigação como um todo tem uma importância histórica, pois, através da apreensão de celulares, computadores, documentos, depoimentos, acareações etc., ficou explícita “a permanência não somente da índole golpista do exército e das elites brasileiras que financiaram o golpe, mas também a causa disso, ou seja, a ausência de uma real justiça de transição no Brasil no contexto pós-ditadura”.
Marília elenca no mesmo patamar, outros processos mais antigos de mudanças institucionais no país que não tiveram o resguardo da memória, como a história dos ecogenocídios durante o colonialismo português, bem como a do fim da escravidão.
Do ponto de vista jurídico, ela também sublinha a utilização, pela primeira vez, da lei dos crimes contra o Estado democrático de direito, que tomou o lugar da legislação oriunda do período da ditadura, que era a Lei de Segurança Nacional (LSN). No caso do uso contra Bolsonaro e demais réus, destaca a jurista, o objetivo não foi o de perseguir os descontentes com um ou outro governo, como acontecia na aplicação da LSN, que era baseada na doutrina de segurança nacional e na caça ao inimigo interno. “Agora, o objetivo foi salvaguardar a possibilidade da dissidência, ou seja, salvaguardar a própria democracia, preservando as regras do jogo”.
O julgamento no STF: foto de Fabio Pozzebom (Agência Brasil)
Freios e contrapesos
Em sua recente passagem pelo Brasil, o professor de Ciência Política norte-americano, Steven Levitsky, elogiou as instituições brasileiras no processo de julgamento dos que tentaram o golpe contra a democracia. O autor de “Como as democracias morrem” comentou que no quesito de julgamento dos golpistas, o Brasil estava à frente dos Estados Unidos, em que, por exemplo, no caso da invasão do Capitólio, em 2021, poucos foram punidos.
Na prática, o que ocorreu em nosso país apontaria para o chamado bom funcionamento do sistema de freios e contrapesos (checks and balances), mecanismo constitucional que garante que cada um dos três poderes controle o limite dos outros sem excessos?
Para o professor de Ciência Política do departamento de Ciências Sociais da UFSM, Cleber Martins, os regimes democráticos têm suas especificidades e, às vezes, com características paradoxais. Segundo ele, parte da literatura no campo da ciência política argumenta que, por ser um regime político aberto à competição política, incluindo, entre outros fatores, direitos políticos amplos, a incorporação institucionalizada dos conflitos e divergências, com instâncias decisórias específicas e normatizadas, produz um contexto no qual as relações de poder e a correlação de forças seja permanente. “Portanto, a consolidação das democracias não exclui as crises, ocasionadas por motivos variados, como a economia capitalista, desigualdade, interesses, demandas, níveis diferentes de mobilização, ação política e influência nas decisões políticas”.
Com base nessa estruturação, destaca o professor, que também coordena o Núcleo de Pesquisa e Estudos em Ciência Política na UFSM, consolida-se o entendimento de que democracias são estáveis e, ao mesmo tempo, incertas, pelas características da disputa política, e que, paradoxalmente, posições políticas antidemocráticas podem angariar adeptos na base social e integrarem a estratégia política de lideranças ou grupos políticos. “O limite da crise em democracias está no processo permanente de fazer valer as garantias constitucionais que sustentam o Estado democrático de direito, processando e penalizando quem atuar em sentido diferente”, frisa Martins.
A quem serve a anistia?
Os condenados: fotos da Agência Brasil
Antes mesmo da condenação dos oito réus, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro, já havia um clamor de grupos bolsonaristas em relação a uma anistia ampla, geral e irrestrita. O deputado e filho do ex-presidente, Eduardo Bolsonaro, foi para os Estados Unidos e de lá lidera uma campanha pela impunidade de todos e todas que participaram dos atos golpistas, ganhando adeptos poderosos como o do governo de Donald Trump, que já promoveu sanções ao nosso país.
O que era uma possibilidade ganhou ares de concretude na última quarta, 17 de setembro, quando a Câmara Federal aprovou regime de urgência para a discussão de um projeto de anistia. Mas, afinal, o que pensar sobre mais essa tentativa de manter a impunidade de quem cometeu crimes contra a democracia?
O presidente da Sedufsm, professor Everton Picolotto, analisa que “conceder anistia a golpistas não é um ato de pacificação, mas sim um passaporte para a impunidade de criminosos condenados ou em via de serem julgados e um incentivo a futuras rupturas democráticas”. Na visão dele, atentar contra o Estado de Direito é um crime gravíssimo contra toda a nação, não um delito de opinião. E acrescenta: “A defesa da democracia exige memória, justiça e responsabilização. Portanto, nossa posição é intransigente: sem anistia para golpistas. A plena justiça é a única garantia para que o autoritarismo não volte a ameaçar o Brasil.”
Picolotto recorda que no passado já houve anistias favorecendo golpistas, torturadores e outros criminosos, e isso nada teve de bom, pois só aliviou a pena dos que praticaram crimes contra o país e pessoas. “Acabam servindo de exemplos negativos para que estas práticas voltem e os responsáveis, criminosos confessos, peçam anistia novamente”, frisa o professor.
Na avaliação do professor Diorge Konrad, a condenação foi pedagógica e historicamente exemplar para que seja tirada a sombra golpista da tradição política brasileira. Por isso, argumenta ele, é “absolutamente infame” querer comparar a anistia de 1979, dos que lutaram contra o Golpe e a Ditadura, com as tentativas de golpe do 8 de janeiro de 2023.
Todavia, pondera o historiador, mesmo a Anistia de 1979 já trouxera um problema consigo, que era a liberação geral, inclusive daqueles que haviam cometido crimes contra os direitos humanos, não tendo sido revisada até hoje. Piorando ainda mais o quadro, o fato dessa anistia (1979) ter sido referendada em 2010, por um erro de avaliação do STF. E por que um erro? “Na Anistia de 1979, os crimes de lesa-humanidade cometidos pelo Terrorismo de Estado pós-1964 foram colocados como ‘crimes conexos’, anistiando torturadores e outros tipos de criminosos civis e militares, numa estratégia dos próprios ditadores, tendo na linha de frente (o general e presidente)João Batista Figueiredo, a fim de salvarem-se a si mesmos.”
Dessa forma, conclui Diorge, o terrorismo de Estado perpetrado por diversos agentes foi perdoado, legitimando estes crimes, impedindo de fato que o Brasil fizesse justiça de transição até hoje. Assim, complementa ele, o julgamento do 11 de setembro de 2025 pode representar um passo importante para esta justiça de transição, iniciada com a Comissão Nacional da Verdade, cujo relatório final veio a público em 2014.
Marília Budó destaca que o STF já tem pontuado que, nos crimes contra o estado democrático de direito, não há possibilidade de anistia, graça ou indulto. Isso, diz ela, foi reiterado no voto do ministro-relator do processo contra os golpistas, Alexandre de Moraes. No caso de Mauro Cid (tenente-coronel, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro), não foi concedido o perdão judicial possível pela lei que regula a colaboração premiada. Isso, pelo entendimento de que, em situações onde não cabem graça, anistia ou indulto, tampouco pode caber o perdão judicial. “Por isso que, colaborando, Mauro Cid teve pena aplicada de dois anos de detenção, como previsto no acordo.”
A professora de Direito da UFSC também enfatiza que não há qualquer relação entre a anistia de 1979 e o que se está propondo no momento. “Não estamos lidando com uma insurreição por direitos e em nome da democracia, ao contrário, estamos lidando com uma insurreição para rasgar a constituição, destruir os direitos fundamentais e a própria democracia. A proposta de anistia nesse caso, além de inconstitucional, seria trágica do ponto de vista político, pois estaríamos repetindo um histórico muito mais antigo de anistiar golpistas e assim permitir o fortalecimento desse ideário já presente em setores mais privilegiados da população”.
Cleber Martins assinala que uma das questões relevantes da política brasileira, especialmente nos últimos dez anos, mas que pode ser observada em outros períodos da história do país, está na formação de uma base de apoio mobilizada e engajada às posições conservadoras e, em parte, reacionárias. “O caso do apoio significativo, não necessariamente majoritário, à anistia, aproxima parte do eleitorado da maioria parlamentar.” Situação que, na avaliação do professor, ao mesmo tempo produz e é produzida por interpretações divergentes sobre a legalidade e legitimidade de decisões tomadas por instâncias judiciais, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal.
Em decorrência disso, avalia Martins, há, por vezes, um limite frágil entre a disputa política, com os conflitos mais ou menos acirrados, dentro da constitucionalidade, e a contestação à própria constitucionalidade e suas instituições. “Quando este limite é ultrapassado, o problema se agrava. Por outro lado, contestar, dentro das normativas legais, faz parte do jogo político em democracias liberais”, acrescenta ele.
Conforme o ponto de vista do professor, um fator relevante na questão da reivindicação da anistia, atualmente, está na atuação do Congresso Nacional, pois parlamentares, na Câmara dos Deputados, em sua maioria, apoiam algum nível de anistia para quem foi condenado pelas ações ocorridas em 2022 e início de 2023. “Caso a anistia, ao término do processo, seja aprovada e entre em vigor, provavelmente será aberta a discussão sobre sua constitucionalidade, além de acirrar ainda mais o ambiente político no meio social”.
O que será o amanhã?
Apesar de a história do golpismo no Brasil estar recebendo uma configuração diferente do que vinha acontecendo em episódios anteriores- conforme um estudo do professor de História da UFRJ, Carlos Fico (ver ilustração/tabela abaixo), desde 1889 ocorreram vários golpes e deposições de governantes brasileiros, com situações em que os golpes prevaleciam ou fracassavam, mas ninguém era punido-, a condenação dos bolsonaristas não pode ser comemorada, ainda, como efetiva, na visão do professor da UFSM, Diorge Konrad.
Na ótica do historiador, estamos no meio do jogo e os golpistas e seus defensores podem virar esse resultado, sobretudo com os movimentos da extrema-direita e fascista, da base parlamentar bolsonarista e seus cúmplices do chamado Centrão, além do apoio político-militar do imperialismo estadunidense. “Não podemos subestimar estas forças que não admitem sequer um governo progressista dentro da ordem liberal democrática, como o fizeram historicamente com governos trabalhistas como o de João Goulart ou reformistas como o de Dilma Roussef."
Para Diorge, a sociedade civil deve garantir nas ruas, através de movimentos das dimensões do “Diretas Já” ou do “Fora Collor”, não apenas na institucionalidade, a condenação aos golpistas. Na visão do docente, a anistia, se ocorrer, representará a continuidade do golpe em curso, passando um recado importante contra o Congresso mais reacionário de nossa História, de uma maioria parlamentar que está de costas para a maioria trabalhadora de nosso país.
Por isso, acrescenta Diorge, a história só será reescrita com outars tintas se os golpistas, além de condenados, cumprirem suas penas, a fim de que a justiça de transição dê um passo a mais no Brasil, sempre acompanhada da consigna “Ditadura Nunca Mais”.
Na avaliação do professor, a luta de classes está em uma encruzilhada neste momento no Brasil. “Nada nos garante que os golpistas sairão derrotados da atual batalha, sobretudo, porque eles trazem consigo a pauta ultraliberal com diretrizes de tipo fascista para ser levada adiante, além de terem no centro o ataque à soberania nacional e a retirada ainda maior de direitos sociais, parcamente conquistados pelas trabalhadoras e pelos trabalhadores brasileiros”.
Marília Budó lança um olhar ainda mais ampliado. Para ela, o julgamento e condenação do núcleo principal bolsonarista deveria abrir ainda mais portas no sentido de revisar outros momentos históricos, como por exemplo, os crimes cometidos por agentes do Estado brasileiro durante o período 1964-1984. Ela lembra que, inclusive, o Brasil já foi condenado (internacionalmente) por não ter julgado os crimes da ditadura.
Para a docente da UFSC, respeitadas as regras, como a da prescrição, por exemplo, os crimes da ditadura precisam ser julgados e a memória precisa ser produzida, não somente no que se refere àquilo que costuma ser lembrado a respeito desses crimes, como aqueles cometidos nas universidades, contra a intelectualidade branca de esquerda, mas também aqueles cometidos contra camponeses, indígenas, população negra urbana e rural, quilombolas e outras comunidades tradicionais destroçadas pelo terrível racismo antinegro e anti-indígena da ditadura.
“Há uma caixa preta a ser ainda aberta e interpretada. Não temos ideia do número de pessoas que foram torturadas, mortas e desaparecidas no regime ditatorial brasileiro. A falta de memória em relação a essas populações mais marginalizadas em razão do bem conhecido destruidor colonialismo interno brasileiro tem permitido que atualmente, em plena democracia, destruições semelhantes continuem ocorrendo”, finaliza Marília.
Texto: Fritz R. Nunes
Arte: Italo de Paula
Fotos: Agência Brasil
Assessoria de imprensa da Sedufsm
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