O Autoritarismo Estrutural na Sociedade Brasileira. SVG: calendario Publicada em 16/02/2022 SVG: views 2854 Visualizações

Periodicamente o país se depara com situações-limite que expõem o colapso civilizatório em que estamos imersos. Estes eventos provocam comoção e horror.  O choque se dá por conta que estas situações são aquelas que, uma vez midiatizadas, ocupam redes sociais, geram polêmicas e debates, críticas e apoios, causam repulsa (ou são saudadas), levam especialistas aos jornais e programas televisivos. Mas logo caem no esquecimento. No entanto, há um número incalculável de casos anônimos de racismo, misoginia, homofobia, xenofobia e tantas outras ações que atingem parcelas consideráveis da população, essencialmente os desvalidos e os mais vulneráveis. Raramente a sociedade brasileira se identifica com vítimas de vários processos violentos no Brasil, tal como as vítimas de preconceito racial ou ações ilegais da polícia.

Não faltam elementos para entender como se constituiu esse processo: uma sociedade historicamente violenta e extremamente desigual fruto de uma brutal concentração de riqueza; o apelo recorrente a soluções salvacionistas e de força (quer vinculadas às Forças Armadas ou às polícias civis e militares, quer aos próceres defensores dos cidadãos de bem); uma crescente sedução pelos discursos de ódio; um passado de quase quatro séculos de escravidão; instituições que reafirmam as desigualdades; o descrédito nos sistemas políticos...

Também, nestes momentos se ressalta uma tendência em defender um regime de força com ações violentas como mecanismo de controle social. Parte dessa “solução” reivindicada por amplos setores sociais está ligada à ausência de uma memória pública dos períodos explicitamente autoritários (o Estado Novo de Getúlio Vargas 1937 a 1945 e, principalmente, o regime civil-militar, 1964-1985) tendo a violação de direitos fundamentais no centro de qualquer análise ou retrospectiva como característica que definiram tais regimes. A “desmemória” possibilitou a construção de pontes entre o passado e o presente mantendo um “patrimônio ditatorial” intacto.

O “entulho autoritário” não foi tratado e assim não há, pedagógica e civicamente, uma cultura e uma identidade democrática e de direitos humanos. Por exemplo, no trato da história recente não há uma análise crítica do golpe e do regime civil-militar nos processos de ensino-aprendizagem formalizados nos Planos Nacionais de Educação e componentes das bases curriculares. Da mesma forma não foram criados lugares de memória da ditadura, ou seja, na edificação ou preservação de patrimônios culturais materiais vinculados à memória do regime civil-militar.

Desde a transição de ordenamentos, são comuns os sussurros antidemocráticos. Contudo, em um momento propício, estes sussurros deram impulso a práticas extremadas antidemocráticas com tamanha relevância e abrangência que assumiram o protagonismo político e, ao o fazerem, colocaram em risco as frágeis conquistas democráticas. Desde a virada do século XXI, rápidas e drásticas transformações na sociedade brasileira favoreceram este cenário delicado. Entre tantas, o empoderamento de grupos identitários e a reação conservadora a estes e o ingresso de novas gerações no mundo da política forjadas com outras perspectivas acerca da democracia, com a convicção de uma liberdade de expressão ilimitada e sem interdições éticas e mesmo morais.

Neste contexto foi possível ao então secretário nacional da Cultura em 2020, Roberto Alvim, divulgar em vídeo uma fala sobre artes reproduzindo trechos do discurso do ministro da comunicação do regime nazista, Joseph Goebbels, sobre arte nacional com “Lohengrin” de Richard Wagner como fundo musical. Devido à grande repercussão negativa, o secretario foi exonerado. A substituta de Alvim, a atriz Regina Duarte, em entrevista, minimizou as mortes e torturas cometidas pelo Estado durante o regime civil-militar. O presidente Bolsonaro ainda em 2020, ao defender o golpe de 1964 e a ditadura, ironizou e revelou saber as circunstâncias da morte do desaparecido político durante o regime civil-militar Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, insinuando que seus próprios companheiros o teriam matado. Sérgio Camargo, o nefasto presidente da Fundação Palmares, atacou em suas redes sociais o congolês Moïse Kabagambeespancado até a morte em um quiosque na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro.

Regime civil-militar, ditadura, autoritarismo, nazismo, fascismo etc., são, para o conjunto da sociedade, temas desconhecidos e alienígenas. Para grande parte da população historicamente excluída dos processos de decisão e desamparada pelo Estado no atendimento de suas necessidades essenciais, as alterações de sistemas políticos, as ideologias predominantes e os sucessivos governos não representaram efetivas rupturas, nem política, nem social, nem cultural, muito menos econômica. Quer no regime civil-militar entre 1964 e 1985, quer na democracia posterior, não houve drástica alteração no cotidiano dos indivíduos, na forma de atuação das instituições e no modo com que o Estado se relacionava com a sociedade.

A condução elitista das instituições do Estado, a censura, a precariedade dos serviços públicos, o descrédito nas instituições públicas, o preconceito, a exclusão, os abusos, a violência estatal extrema, a repressão e as desigualdades seguem fazendo parte do cotidiano de consideráveis parcelas sociais. Por mais delicada que possa parecer esta afirmação, dada a estrutura desigual, elitista, violenta e por isso injusta da sociedade brasileira, em certas regiões e para determinadas pessoas, viver na democracia ou no regime civil-militar não trouxe significativas mudanças no cotidiano.