Das ruas ao caos, do caos às ruas: Dez anos das “Jornadas de Junho” Publicada em 12/07/2023 2734 Visualizações
Lembrar o passado, assim como analisar o passado, é um exercício que diz mais sobre a forma como nos posicionamos frente às questões do presente do que propriamente sobre o ato/fato/processo pretérito em si. Parece óbvio, mas os usos e abusos da memória e da história acabam por definir as possibilidades, amplitudes, intencionalidades e limites de compreensão dos processos vividos.
Dez anos passados e as chamadas “Jornadas de Junho” ainda estão em disputa e seguem sendo enigmáticas. Até 2010, apesar de todo o desgaste das denúncias de compra de votos, propinas e adjacências que o escândalo do chamado “Mensalão” provocou no governo Lula ainda em 2005, o país vivia um imaginário coletivo de uma democracia consolidada, de estabilidade política e econômica, de crescimento, inflação sob controle, inclusão social etc. Os grandes eventos internacionais que se avizinhavam (Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016) corroboravam que o progresso parecia a caminho. De certa forma, a euforia foi transformada em transtorno quando foi evidenciado o descompasso entre as classes políticas e as classes populares, que logo, transformado em crise das instituições, levou ao questionamento da própria democracia representativa e por consequência a um processo amplo de crise da representação.
As narrativas destes eventos, dos seus significados e legados, apontam para motivações e caminhos distintos. Para setores ligados aos movimentos e partidos de esquerda, o desfecho das “Jornadas de Junho” e os brados “que se vayam todos” ou “não me representa” abriram o caminho definitivo para a ascensão da extrema direita no país e na adoção de um discurso de ódio de forma disseminada e que culminariam no impedimento da presidenta Dilma Rousseff e na eleição de Jair Bolsonaro. Para setores conservadores, os eventos explicitavam a insatisfação da sociedade com a corrupção galopante, com a inoperância do Estado, com a falência das estruturas políticas institucionais e com a quebra de valores morais que abalavam a nação. O que parece consenso é que o Brasil pós 2013 pouco parece ao do pré-2013 (apesar de lembrar muito o Brasil de 1964).
Pouco se questiona que os eventos de junho de 2013, as ondas de protestos e mobilizações de enorme amplitude, são um ponto de referência que marca uma nova configuração de sociabilidade brasileira (como foram as séries de revoltas mundo afora com bandeiras e objetivos diversos desde 2011, como a conhecida “Primavera Árabe”, o Occupy Wall Street, mas também a ascensão de novas ditaduras como na Turquia, a eleição de Donald Trump em 2016 e o crescimento da extrema direita na França, Alemanha e Itália).
Desde 2011 havia uma crescente mobilização pela recusa dos partidos políticos e pela aversão dos movimentos com lideranças centralizadas, se apontava uma crítica cada vez maior e mais ampla à democracia representativa e aos processos de desenvolvimento que cobravam alto preço, quer no meio ambiente, quer na degradação da vida nas cidades. Se não se percebia a validade das instituições políticas formais, a ágora do século XXI foi a politização do espaço público e a autorrepresentação como mecanismo da política possível e reconhecida democracia genuína.
Esta nova configuração já se estruturava antes das gigantescas manifestações que tomaram conta das principais cidades brasileiras. Ao contrário das manifestações precedentes na história dos movimentos de luta, como a campanha pelas “Diretas Já” em 1983/1984 ou mesmo o “Fora Collor” de 1992, em que a pressão popular propunha redefinir o sistema político a partir de dentro, as “Jornadas de Junho” apontavam para o esvaziamento de sentido da política formal.
Nas ruas naquele mês, a multidão, que não se identificava com uma liderança ou um credo ideológico organizado, se utilizava das mais variadas formas de manifestar: da festa e irreverência à ação direta dos black blocs. A luta pela radicalização da democracia não encontrou guarida no sistema político, e este reagiu da pior forma.
Atos convocados pelo Movimento Passe Livre (MPL, movimento de quase uma década de experiência em manifestações de rua e com sólido trabalho de base em escolas secundárias) não eram novidade (nem mesmo a repressão policial que seguiu). Contudo, este que teve início em 6 de junho como uma demanda específica, o protesto contra o aumento de vinte centavos na tarifa de transporte público em São Paulo (também em Porto Alegre, Rio de Janeiro e Natal) assumiu enorme repercussão e, em pouco mais de duas semanas, atingiu o país inteiro com contornos muito distintos da reivindicação original. A partir das gigantescas mobilizações e a potencialidade das ruas, a condução e o “tom” dos eventos passaram a ser disputados também por grupos conservadores, de direitas e da extrema direita (como o Movimento Vem Pra rua e o Movimento Brasil Livre, MBL).
Inicialmente pautada pelos princípios fundantes do MPL (autonomia, independência, horizontalidade e apartidarismo) e com um ideário de questões identificados com a esquerda, as manifestações assumiram posturas diversas, mas, sempre combinando um caráter de “antissistema” e rechaço generalizado da política formal, chegando mesmo a uma aversão aos partidos e instituições políticas. Não demorou para a ampliação da radicalização e descontrole das ações, sendo comuns posturas abertamente conservadoras e antidemocráticas.
Nesse caldeirão de posições e ideias, a primeira reação, fruto da inabilidade políticas dos governos, da surpresa das forças políticas locais e nacionais, do conservadorismo da imprensa brasileira (a tradicional, escrita e televisiva) e da violência e da truculência da polícia militar, foi a de desqualificar as manifestações, transformando os manifestantes (o MPL) em radicais de esquerda (punks, anarquistas, black blocs), violentos e vândalos.
Contudo, a indiscriminada repressão policial do dia 13 de junho, que não poupou nem mesmo os jornalistas, e o crescente apoio de segmentos da sociedade, acabaram por alterar o discurso da imprensa, que passou a defender o direito de manifestação, mas, importante, criou uma narrativa de que os protestos eram frutos de uma insatisfação generalizada com o governo federal, com a situação do país e com as instituições políticas tradicionais. O brado então era contra a “corrupção”, “contra os gastos com a Copa do Mundo e Olimpíadas” e gradativamente se ouvia o início de um tom nacionalista que se tornou cada vez mais presente (“o gigante acordou...”), culminando em uma renovada onda “anticomunista” e nas manifestações contra o governo Dilma Rousseff em 2015.
As “Jornadas de junho” definiram que o sistema político institucional já não controlava mais a política e, nesse vácuo, se afirmou a incapacidade dos projetos, táticas e estratégias dos partidos políticos. Os gritos da rua, a mensagem da multidão, o cyberativismo, não tiveram eco, nem à direita tradicional (simbolizada nos partidos como PSDB e PP) muito menos à esquerda (sobretudo o PT). De forma inversa, a multidão acuou os governantes e o sistema político, que, antes de se oxigenar com uma renovação, se fechou mais ainda, o que decretou seu enfraquecimento sem precedentes.
Desde a redemocratização, tendo como marco o ano de 1985, em nenhum momento e em nenhum governo (de Sarney a Collor, de FHC ao primeiro mandato de Dilma) a democracia esteve sob ameaça. Mas isso foi alterado.
As “Jornadas de junho” fazem parte de um conjunto de elementos que mesmo se sucedendo, não estavam ligados, mas quando conjugados, produziram uma série de consequências fazendo com que o país adentrasse em uma frenética e explosiva crise estrutural e social.
Entre estes elementos é possível citar a Operação Lava Jato, que, não obstante apurar denúncias de corrupção, ao criminalizar o conjunto da política institucional distanciou de vez o sistema político da sociedade e acabou por se transformar no grande aglutinador das novas direitas; o descrédito nos partidos e instituições políticas; a crise econômica mundial e a política econômica do governo Dilma que interrompeu um ciclo de avanços e conquistas de camadas médias e setores menos favorecidos; a emergência de grupos que estavam à margem do sistema político que foram ampliando sua voz e presença, dos neopentecostais à segmentos ligados à segurança pública; a emergência das redes sociais digitais e uma sociabilidade digital (novo e mais relevante espaço da política mas hegemonizado pelo pensamento de direita, vide as comunidades conservadoras e extremistas na rede social Orkut antes mesmo de junho de 2013); e algo no mais das vezes menosprezado nas análises mas que teve grande impacto na oficialidade militar (na ativa e na reserva): a criação, operação e divulgação do relatório final da Comissão da Verdade em 2014, apontando as violações dos direitos humanos cometidos pelo regime civil-militar (1964-1985).
A cizânia entre o mundo político e a caserna foi a deflagração para a quebra do pacto celebrado desde a abertura e que garantiu a redemocratização: os militares avançaram sobre a esfera política, assumindo cada vez mais posições de mando...
Nesse contexto se deu a prisão de Lula, a projeção de Jair Bolsonaro e o avanço de um campo político relevante identificado como nova direita extremada. Mas não apenas. A sociedade se viu em meio a uma polarização política radicalizada. Na sequência, a verdadeira batalha (em alguns casos literalmente) presenciada nas eleições de 2018 e de 2022, os acampamentos em frente aos quartéis pedindo intervenção militar e por fim a tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023.
Mas, engana-se quem tenta encaixar esses acontecimentos como uma relação “causa-efeito”, ou seja, as “Jornadas de junho” levaram à derrocada do governo Dilma Rousseff e à eleição de Jair Bolsonaro. Há ainda muita complexidade a ser examinada.
O ciclo de revoltas, as “Jornadas de Junho”, solicitaram respostas que o Estado não deu ou não entendeu como proceder. Nesse processo, a democracia perdeu seu lastro social e possou a ser questionada e relativizada. Resta saber se a recomposição do ambiente institucional em curso superará os desafios do porvir.
Sobre o(a) autor(a)
Por Gilvan Veiga DockhornProfessor do departamento de Gestão emTurismo da UFSM. Graduado, mestre e doutor em História.