Ódio Publicada em 19/04/2023 3163 Visualizações
Atônitos e chocados, grande parte da sociedade brasileira acompanhou mais um caso de atentados cometidos por estudantes contra colegas, crianças, professores e funcionários em escolas e creches. Na ampla divulgação do caso, o horror e a incompreensão faziam as pessoas questionar o que leva alguém a assassinar a facadas uma professora de 71 anos (em São Paulo, no mês de março) ou a atacar e assassinar à machadadas crianças de quatro anos a sete anos (caso recente em Blumenau).
Exemplos são inúmeros e os ataques, quer físicos ou discursivos, vivenciados nas escolas são repetidos nas ruas, nas universidades, nos locais de trabalho, nos estádios de futebol, em supermercados, em bares e restaurantes. Os discursos de ódio, que campeiam em redes sociais, jogos e chats de conversas, dão vazão aos atos mais covardes que atingem grupos étnicos, identitários e religiosos.
Essa sociedade, ao menos a parcela que manifesta indignação com esse tipo de violência e brada por mais segurança, parece surpresa que os conflitos tenham atingido os patamares atuais. Assim, a violência em escolas e entre crianças e adolescentes passou a pautar debates e a suscitou da dúvida de onde estaria o fiat lux et facta est lux, o marco inaugural, a faísca que provocou o incêndio e que abriu definitivamente os portões da desqualificação completa da vida, do desprezo às diferenças e aos diferentes; quando começou ou, quando percebemos que, o ódio e o descaso com determinados grupos estavam incrustrados na sociedade brasileira?
A escola é um fractal da sociedade, e a violência, o preconceito e a intolerância que habitam as escolas refletem a violência, o preconceito e a intolerância da sociedade. Se a vivência em sociedade relativiza a democracia e desconsidera temas centrais como o combate ao racismo, à misoginia, ao extremismo e ao ódio contra a comunidade LGBTQIA+, não se pode exigir que a comunidade escolar o faça. Também por isso, o universo da comunidade escolar se torna expressão de uma sociedade mediada por estas questões, suscetível aos discursos e práticas de ódio e palco da violência manifestada em agressão a professores, em brigas entre alunas e alunos que viralizam nas redes sociais, em casos de bullying, em discursos preconceituosos, na intolerância ao pensamento diferente, no ataque às religiões.
De outro modo, a escola foi sendo vulnerabilizada conforme diminuía seu papel central na formação de cidadãs e cidadãos (quer pela ausência de investimentos e sucateamento de estruturas, quer pelo descaso da própria sociedade, a mesma que desqualificou a ciência e o papel de educadores com ataques à atividade de professores e criminalização do pensamento crítico).
Levantamento feito pela pesquisadora Michele Prado, do “Monitor do Debate Político no Meio Digital” da USP (Universidade de São Paulo), registrou 22 ataques a escolas entre outubro 2002 e março de 2023. Somente em 2022 e 2023, o número de ataques em escolas no Brasil (11 casos) já superou o total registrado nos 20 anos anteriores. Especialistas atribuem esta radicalização de jovens a diferentes fatores, mas certo é que a maioria destes atentados deixou pistas digitais vinculando-os às comunidades on-line que cultuam massacres e veiculam discursos de ódio.
Por óbvio, a violência e o ódio, apesar de fenômenos relevantes e de notoriedade por conta da sociabilidade digital via redes sociais, não são elementos novos no cotidiano. A forma, a intensidade e os recursos utilizados, estes sim, dialogam com o tempo que vivemos, com a tecnologia que temos à mão e com as relações sociais que construímos e alimentamos. Nesse sentido, pelo menos três violências institucionalizadas e seus posteriores apagamentos, desmemórias ou silenciamentos cobram seu preço.
Primeiro o desprezo pelos povos originais, atualmente travestido de invisibilização e genocídio indígena: no início do ano, grande parte do país se comoveu com as imagens de indígenas yanomami doentes e desnutridos. Especialistas apontam que a tragédia humanitária, desde muito denunciada por entidades indigenistas, está ligada ao garimpo ilegal em terra indígena e ao descaso das políticas públicas.
Depois, o não encaminhamento da questão da escravidão, resultando no racismo estrutural que vivenciamos: casos são diários e somente em 2023, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, mais de 500 pessoas foram resgatadas vítimas de trabalho análogo à escravidão. Em São Conrado, no Rio de Janeiro, uma mulher branca foi filmada agredindo entregadores negros, desferindo chibatadas!
Por fim, o não trato com a ditadura e seu entulho autoritário que resultam no acolhimento de soluções extremistas: além dos eventos terroristas de Brasília em 8 de janeiro e a tentativa de golpe de Estado, ganhou manchetes a descoberta ainda no final de 2022, de um encontro de uma célula neonazista em São Pedro de Alcântara (SC) onde oito integrantes foram presos (posteriormente mais dois membros presos em Caxias do Sul) pertencentes a um braço da Hammerskins, grupo de supremacia branca e neonazista fundado nos Estados Unidos. No início de abril deste ano, em Maquiné (RS) um adolescente de 14 anos e seus pais foram presos por manterem materiais neonazistas em casa. É bom lembrar que, como comprovou a historiadora Heloísa Starling da UFMG, no período entre 1933 e 1945, a maior sessão em número de membros do partido nazista fora da Alemanha, era a brasileira; ainda aqui o integralismo, nosso fascismo tropical, teve força considerável sendo seu lema ressignificado recentemente por “pessoas de bem”, as mesmas que estiveram em 8 de janeiro em Brasília: “deus, pátria e família”.
Portanto, em rápida análise do processo histórico no Brasil, se identifica que os brasileiros nunca foram pacíficos, nunca deixaram de abraçar a violência e o preconceito como mecanismos de relação e solução de conflitos.
Como se retomada a obra de Sérgio Buarque de Holanda (“Raízes do Brasil” de 1936), nos surpreendemos com “a descoberta” de que inexiste o “homem cordial” e de que o Brasil não é a terra do homem não violento; de que a imagem estereotipada de que homens e mulheres brasileiros são alegres, avessos à guerras e brigas tem relação com a idealização de que se faz para encobrir um passado e um presente extremamente violentos e sem a harmonia tão festejada na percepção de que há um “espírito” nacional generoso, hospitaleiro e incapaz de manifestar racismo e ressentimento social (herança de Gilberto Freyre de “Casa Grande & Senzala” de 1933?).
Dados recentes afirmam que o Brasil teve em 2021 mais de 47.000 mortes violentas intencionais (Atlas da Violência de 2021, https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes), 20,5% dos homicídios cometidos no mundo foram no Brasil (só perdemos para Índia e México). Negros, jovens e mulheres da periferia são as maiores vítimas de agressão e homicídio. Somos cordiais? Segundo Sérgio Buarque de Holanda, certamente. Porém, isso nada tem de afável ou pacífico, mas sim de passional, que vem da impulsividade e não da razão, e a violência se inscreve nesta irracionalidade.
Grande parte deste ódio endêmico também se relaciona à forma como tratamos nosso passado de violências, como lidamos com o presente de intolerâncias e como projetamos as soluções para um futuro.
Nesse sentido, tem fundamental importância a nova sociabilidade digital, que atinge crianças, jovens e velhos indiscriminadamente (segundo estudo de Andrew Guess, da Universidade Princeton, e Jonathan Nagler e Joshua Tucker, da Universidade de Nova York, pessoas com mais de 65 anos são mais propensas a divulgar na internet notícias falsas). Essa nova sociabilidade funciona na base de formação de “bolhas” as quais reafirmam as próprias convicções do grupo e escapa a qualquer forma de gerenciamento em nome de uma liberdade de expressão ilimitada. Esta “liberdade” absoluta permite que qualquer manifestação, mesmo as mais absurdas e de posições indefensáveis da perspectiva dos avanços civilizatórios, não tenham restrições por parte das plataformas digitais que não possuem qualquer regulamentação efetiva. As empresas e oligopólios de comunicação lucram muito estimulando este conteúdo com a espetacularização do ódio e das tragédias e garantem espaços e público na disseminação de discursos (que viram práticas) extremistas, misóginos, homofóbicos, racistas e de todo o tipo de preconceito imaginável.
Sobre o(a) autor(a)
Por Gilvan Veiga DockhornProfessor do departamento de Gestão emTurismo da UFSM. Graduado, mestre e doutor em História.
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