Cineclubes: espaços de organização do público e de resistência SVG: calendario Publicada em 29/06/2022 SVG: views 2883 Visualizações

O desenvolvimento do “cinema” em fábricas e laboratórios (iniciativa de empresários como Edison e os Lumière) fez com que este fosse sendo aprimorado como produto de mercado em máquinas ainda rudimentares e em projeções pagas; o cinema se desenvolvia como as relações de produção, visando o lucro. O pesquisador Felipe Macedo definiu como “institucionalização do cinema” o processo iniciado com a proliferação das salas fixas a partir de 1905, os nickelodeons — salas que apresentavam programas sucessivos a preços populares. Esse público em formação, se adaptando à uma linguagem inovadora, pela primeira vez incorporava a mulher e a criança no espaço público. Tido e visto como vulgar e ambiente perigoso pelas elites, esse público era composto basicamente pela classe operária e pelos imigrantes.

No mesmo processo do rápido surgimento e institucionalização do cinema, tendo por marco a sessão dos irmãos Lumiéré do dia 28 de dezembro de 1895 no Salon Indien - Grand Café, e da estruturação progressiva da organização das lutas operárias na França (a Confédération Générale du Travail – CGT criada em setembro de 1895), ocorre o fenômeno da “organização de público” para a apropriação dos filmes enquanto bem comum.

Os espaços de “organização do público” são os cineclubes e estes estão diretamente ligados em sua origem ao movimento operário francês no período de 1895 a 1914. Os militantes do movimento operário (majoritariamente de inspiração anarquista) tomaram consciência para a importância do domínio do cinema e por isso criaram pioneiramente a cooperativa Cinema do Povo, em outubro de 1913. Era a primeira organização que envolveu o domínio do tripé cinematográfico: produção, distribuição e exibição de filmes em um circuito não comercial.

A cooperativa Cinema do Povo desenvolveu práticas cineclubistas com projeções periódicas, debates, conferências e, por fim, buscou a criação de uma produção de cinema própria ligada às necessidades do proletariado. O Cinema do Povo foi uma das primeiras organizações do público estruturada como um cineclube (associação democrática sem fins lucrativos e com o projeto de, através do cinema, garantir ao público acesso e participação na construção de um cinema que o representasse) cujo lema ilustra as tarefas do cineclube: "Divertir, instruir, emancipar."

Assim, o cineclubismo se estabeleceu, como uma rede não comercial de exibições e de resposta à imposição de um público consumidor formado por espectadores. Diferentemente dos clubes de cinema (que proliferaram a partir dos anos 20) os cineclubes se constituem em espaços para o exercício de direitos culturais - que são direitos fundamentais, portanto, essenciais à própria existência. O que distingue o cineclube dos espaços formais de exibição é a valorização do fato de que nas criações audiovisuais, cinema sem público inexiste.

Um dos papéis da prática cineclubista é o despertar de uma consciência crítica frente à obra audiovisual, inserindo o público em um espaço organizado de apropriação dos sentidos da obra. Depois, a própria ocupação do espaço coletivo viabilizado pelo cineclube em contraposição à passividade individual do espectador frente à televisão ou ao cinema comercial. Se as salas de cinema comercial são inacessíveis e obedecem à lógica do mercado com necessidades de um circuito comercial e o consumo domiciliar se estabelece na esfera da individualização não atendendo ou não dialogando com as dinâmicas e práticas culturais locais, são os cineclubes que estabelecem esse contato com práticas de lazer, com a construção do conhecimento, com o debate e a interpretação dos conteúdos exibidos e o confronto com as políticas públicas ligadas à cultura e à educação.

Ao democratizar o acesso a bens culturais materiais (o produto fílmico em si) e imateriais (a da fruição cultural e os sentidos a ela dados), os cineclubes assumem uma dimensão político cultural na medida em que atuam em conformidade com as necessidades e aspirações do público (que é resultado das identidades locais), formam e ressignificam gostos e olhares, viabilizam o acesso à cultura através das inúmeras possibilidades de utilização do conteúdo audiovisual, o qual confronta realidades sociais, culturais e políticas exteriores.

Os cineclubes concretizam direitos fundamentais, o direito ao acesso a bens culturais imateriais e o direito de participação na vida cultural; não concorrem com a exibição comercial (se não há salas de cinema quem garante o acesso?); equilibram o direito patrimonial e o interesse público; colaboram na educação cultural na medida em que ninguém faz filme sem ver filmes; e são elementos na garantia da democratização cultural, pois pressupõem exposição às obras artísticas.

Até hoje (e em Santa Maria são dois cineclubes em atividade: Lanterninha Aurélio desde 1978 na Cooperativa dos Estudantes de Santa Maria/Cesma e Cineclube da Boca da UFSM, desde 2016), a prática cineclubista busca garantir acesso de filmes e conteúdos que não os veiculados pelas grandes distribuidoras: curtas e médias metragens, filmografias asiáticas, africanas, latinas..., documentários, animações, filmes experimentais, vídeo-art, produções de realizadores locais; produções que não vendem seus direitos comerciais pelo simples fato de que esse tipo de produto audiovisual não tem mercado, ou não tem exploração comercial que chame a atenção das grandes empresas de entretenimento.

O papel dos cineclubes no Brasil atual assume uma importância fundamental ao não apenas democratizar o acesso a produtos audiovisuais, mas, e aí está seu potencial transformador, criar um espaço base para a organização do público em cada comunidade, sujeitos de sua história e não consumidores passivos e inertes frente ao caos e à crise civilizatória porque passamos.