Que águas esperam as mulheres brasileiras em 2023? SVG: calendario Publicada em 26/10/2022 SVG: views 2540 Visualizações

A poucos dias do segundo turno das eleições presidenciais de 2022 me ponho a imaginar o que nos espera em 2023.  Por mais tranquila e esperançosa que eu queira me sentir, confesso que meu estômago me trai: fico nauseada, um ‘friozão’ na barriga, coração bate mais rápido. A imagem de um rio turbulento e ruidoso me vem à mente e, como não poderia deixar de ser, lá adiante ele se bifurca como a mostrar a polarização atual do Brasil e o divisor de águas que essa eleição representa. De um lado, águas que buscam a luz e a transparência no resgate de nossa jovem democracia em processo de pavimentação há pouco mais de 30 anos. Do outro lado, águas pesadas, obscuras, que acirram posturas autoritárias em curso desde o golpe de 2016.

Em quais águas o povo brasileiro vai navegar (ou naufragar)? Nas águas frescas do trabalhoso processo coletivo de reconstrução ética, social, cultural, política do Brasil; ou nas águas lamacentas do ódio, da intolerância, da violência, do retrocesso da democracia e da podridão política?

Feminista com foco nos estudos de gênero e na luta pelos direitos das mulheres que sou, não posso deixar de me perguntar ‘que águas esperam as mulheres brasileiras em toda sua diversidade de cores e de culturas?’  Águas turbulentas da luta feminista pela igualdade de direitos e de oportunidades que vínhamos trilhando de 2003 à 2016? Ou  águas paradas e ‘rançosas’ que mergulharam a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), desde 2016, em concepções religiosas, preconceituosas e ultrapassadas cristalizadas no pensamento miúdo de que as meninas devem usar rosa e os meninos devem usar azul?

Meu olhar, nebuloso por instantes, logo se alinha e recobro a visão progressista que me inspira. Meu olhar se encaminha, então, para a primeira opção, trabalhosa obviamente, mas a que nos oferece perspectiva de retomada do rumo interrompido com a extinção da Secretaria de Políticas para Mulheres (SMP).

A SPM foi criada com a intenção de desenvolver ações políticas na direção da superação de lógicas desiguais entre homens e mulheres. Seu desmonte após a queda da Presidenta Dilma, são visíveis e marcantes, transparecendo, dentre outras coisas, no orçamento reduzido para a pasta. Para se ter uma ideia, o período 2020-2023 abriga um orçamento medíocre, 94% menor nas ações dirigidas à autonomia econômica e ao combate à violência contra as mulheres, se comparado ao exercício 2016–2019 (Sigabrasil, 2022). Este desmonte abrigou também o apagamento da memória da SPM mediante a extinção da página on line; a falta de transparência nos dados e ações; a falta de pessoal técnico e comprometido com a desigualdade de gênero; e a falta de diálogo/articulações com outras secretarias/ministérios/ organismos internacionais. Esse cenário foi decisivo para a estagnação do processo de construção de políticas públicas para as mulheres, impedindo que iniciativas necessárias fossem implementadas, sobretudo para atender mulheres em situação de vulnerabilidade social.

Esse quadro de perdas, ameaças e incertezas deve nos convocar à luta. Por isso, navegar nas águas turbulentas da luta feminista em 2023 é preciso! Para voltarmos a ter brilho nos olhos, a vivermos com esperança, a sonharmos de novo com a possibilidade de nos emanciparmos das garras de uma cultura que nos submete e tenta, de todas as formas, desqualificar nossa voz, nosso modo de sentir e de ser no mundo.

Temos muito trabalho pela frente. Não vai ser fácil, a navegação será longa, árdua, mas promissora. Não podemos naufragar. Teremos que rever conhecimentos básicos que foram totalmente deturpados, como estratégia para desvalorizar e apagar nossas lutas e conquistas. Mas não temos outra saída se quisermos seguir na trilha já iniciada em 2003. É uma oportunidade única, talvez a última para superação desses tempos sombrios.

 

LANDERDAHL, M.C. e CORTES, L.F. Políticas públicas para as mulheres no Brasil: algumas considerações pós golpe de 2016. In: PEREIRA, A.R.; BUDÓ, M.D.N.; DEBONA, V. (Orgs.). Ensaios de resistência: retrocessos, denúncias e apostas sobre o Brasil golpeado. Belo Horizonte: Dialética, 2020. p 138 – 155.

SIGA BRASIL. Programa "Política para mulheres: promoção da autonomia e enfrentamento à violência". 2022. INESC. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/09/29/governo-bolsonaro-propoe-94percent-menos-de-recursos-no-orcamento-para-combate-a-violencia-contra-mulheres-diz-levantamento.ghtml

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por Maria Celeste Landerdahl
Professora aposentada do departamento de Enfermagem da UFSM

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