Docência Acadêmica, Usos do Tempo e Cansaço Publicada em 27/03/2024 2394 Visualizações
Considero, como bel hooks, que feminismo não trata apenas dos interesses, questões e desigualdades das mulheres. O feminismo é para todo mundo porque se interessa pela construção de uma sociedade menos desigual em todos os âmbitos da vida. Neste texto alusivo às lutas e conquistas das mulheres, gostaria de refletir sobre experiências na carreira acadêmica e os usos do tempo. Partirei de alguns cenários comuns a todos os docentes e também apontarei algumas questões nas quais os marcadores sociais de gênero são importantes.
Nos poucos espaços de conversa com os colegas nos corredores das universidades, nos intervalos entre uma reunião e outra, no momento que esperamos que todos entrem online para uma defesa de tese ou palestra é comum ouvir as queixas sobre a enorme carga de trabalho docente, sobre o aumento da burocracia, das métricas, dos relatórios, sobre não ter férias nas férias porque sempre se está corrigindo algum trabalho, orientando alguém, dando um parecer, escrevendo um artigo. Tudo isso invisibilizado porque a sociedade em geral (e muitas vezes as políticas universitárias também) só enxergam um pedacinho mínimo do enorme iceberg, a Sala de Aula.
Há uma sensação generalizada de falta de tempo. Os espaços cada vez mais racionalizados não preveem mais o encontro, o riso, o descanso tão importantes na construção da criatividade intelectual. Não há mais salas de professores que possamos desfrutar de um cafezinho e trocar com alguma colega sobre determinado tema, seja acadêmico ou pessoal. Como muitos colegas meus dizem, temos a impressão de gastar um tempo enorme com atividades administrativas, com relatórios, respondendo a métricas que muitas vezes não tem relação com a nossa atividade fim: pesquisar, estudar, ensinar. Podemos incluir aí o distanciamento dos técnicos administrativos que tornavam nossa convivência entre colegas e com os estudantes mais humanizada. Cada um na sua cela, na sala de aula, na frente do computador em uma total falta de ritualização do fim do expediente. E prosseguimos gastando horas a fio respondendo questões de trabalho pelo WahtsApp. Uma pesquisa dos tempos gastos neste dispositivo certamente seria substitutiva dos marcadores de ponto. Mas também assinalaria que é um dos momentos que podemos encontrar com os colegas.
Sabemos que o ritmo acelerado e a intermitência do trabalho têm se agravado para quase todas as profissões (sejam elas de prestígio ou precarizada) na lógica neoliberal do produtivismo e do empreendedorismo de si. Mas é fundamental reconhecer como esta organização da produção tem conseguido entrar nos poros da vida, mesmo daqueles que se dedicam a investigar, criticar e buscar outros modelos societários.
O conceito de pobreza de tempo foi construído nos anos 70 para medir a pobreza bidimensionalmente, cruzando renda e tempo. A falta de tempo para investir na qualificação, a perda de tempo para sobreviver em lugares com infraestrutura insuficiente dificultam ainda mais a conjugação do trabalho remunerado com o trabalho de cuidado não remunerado, agravando as condições de vida e possibilidades de ascensão, sobretudo das mulheres culturalmente encarregadas dos afazeres domésticos. Raça, classe e gênero são marcadores que neste caso limitam o bem estar e ascensão destas mulheres.
O mais comum entre docentes universitários é a delegação do grosso dos afazeres domésticos (durty work) para mulheres contratadas, fora da família. Entretanto, são raros os lares, bem aquinhoados ou não, onde não são das mulheres as cargas mentais do cuidado. Desde marcar o pediatra das crianças, gerenciar o cuidado dos pais idosos, comprar o presente da sogra, planejar a festinha de aniversário, ser motorista particular dos filhos ou mesmo brigar por mais colaboração de todas as pessoas da família na organização do dia-a-dia fica a encargo das mulheres.
Esta discussão sobre cansaço, trabalho sem parar, preocupação com o cuidado tem sido um dos temas fulcrais de hoje e amanhã. Atualmente, há cerca de 2,1 bilhões de pessoas idosas do planeta; em 2030, as projeções indicam um índice de 3 bilhões. Uma política integral de cuidado vem sendo construída na América Latina a passos bem curtos. O desvelamento dessa problemática e luta política que a envolve conta com a reflexão de inúmeras pesquisadoras universitárias de diversas áreas. A profissionalização e a crítica a um regime familista de cuidados, a luta por equipamentos públicos e políticas públicas de qualidade para a articulação entre os trabalhos da vida familiar e da vida profissional, assim como a necessidade de diminuição da jornada de trabalho apoiam-se na mensuração dos usos do tempo. Esses são temas destacados por pesquisadoras feministas que atingem a todos nós.
(* A professora Jurema Brites é participante da pesquisa Famílias, Trabalho doméstico e Cuidado em perspectiva comparada e realidades singulares.)
Sobre o(a) autor(a)
Por Jurema Gorski BritesProfessora do departamento de Ciências Sociais da UFSM