A luta das mulheres com deficiência SVG: calendario Publicada em 05/03/2025 SVG: views 265 Visualizações

Mulheres com deficiência são aquelas mulheres que diariamente precisam estar prontas mentalmente e fisicamente para lutas fora de casa. Eu, por exemplo, que sou pessoa surda e com deficiência auditiva, sempre tenho que estar pronta para adversidades que encontro no caminho ou sofro por antecipação, pois eu sempre sei que não terei surpresa boa ao chegar no lugar. Para eu comprar ingressos para assistir peças de teatro, sempre preciso perguntar antes à administração se eu terei acessibilidade garantida. Se eu não perguntar, sofro por antecipação, e depois me decepciono ao chegar nos lugares. Nos cinemas também preciso procurar nos sites ou me informar se o filme terá legendas.

Em novembro do ano passado, a minha filha Sofia, que é ouvinte, me fez um convite para assistir ao filme nacional “Ainda estou aqui”. Ela me disse que seria o filme do ano, com indicação do Oscar. Fiquei animada, adoro assistir filmes. Fui atrás das informações sobre legendas. No site aparecia um ícone de que eu teria legendas. Aí fomos assistir ao filme, com a sala de cinema lotadíssima. Antes de entrar na sala, uma funcionária me deu um dispositivo que é um celular para eu colocar na minha poltrona da sala do cinema e ter acesso a legendas. Bom, fiquei curiosa, mas já adianto que isso não é algo pensado com respeito a pessoas surdas. Por que separar as legendas da tela do cinema?! Surdos com legendas num celularzinho de quinta na poltrona e ver o filme na tela. Dois olhos?! Se conseguem me entender o que quero explicar?! Um olho na tela para assistir ao filme e outro olho no celularzinho. Seria muito mais respeitoso e prático colocar legendas na tela mesmo.

Os filmes nacionais, nós, surdos, não temos legendas, infelizmente. E não há lei brasileira que obrigue legendas nos filmes nacionais. Surdos não conseguem desfrutar os filmes do próprio país e nos excluem do lazer, da cultura, da arte e da história também. O filme vencedor do Oscar transmite a história que tivemos aqui no Brasil e muitos de nós, surdos, não podemos saber da história dos tempos ditadura. A minha filha não é obrigada a traduzir o filme no cinema para mim, mas ela traduziu algumas partes para mim e a vi chorando em algumas partes do filme, assim como muitas pessoas da sala do cinema também choraram. E eu meio perdida. Meio, porque sei bem da história da ditadura brasileira que existiu. Quando o filme acabou fomos ao banheiro e encontrei as minhas alunas da turma de Medicina me dizendo em Libras que era triste demais a história do filme e eu só acenei que sim, mas não tinha entendido todo o filme.  Depois, tive que ler o livro do Marcelo Rubens Paiva para poder entender melhor.

Em 2005, foi criada a campanha ‘Legendas’ para quem não ouve, mas se emociona pelo Marcelo Pedrosa, surdo de Pernambuco. E eu movimentei muito a campanha aqui no Rio Grande do Sul tanto que tive uma lei aprovada na minha cidade natal, Caxias do Sul, com apoio do vereador Rafael Bueno. Nem tudo é perfeito. A lei de Caxias do Sul só cumpre um filme legendado por dia e no pior horário, aquele horário de almoço ou da noite. Ou seja, a hora que a gente almoça ou a hora que temos afazeres da casa com filhos. O tal dispositivo que os cinemas dão para nós, surdos, pensando que estão prestando acessibilidade para nós, não presta para nada. Não tive legendas no celularzinho que recebi do referido filme no cinema. Só teve falhas e fiquei só assistindo o filme tentando entender tudo pela leitura  labial e, em algumas partes, minha filha traduziu para mim. 

Minha vida como mulher sempre é ficar atenta em tudo. Nas viagens de avião tenho que ficar grudada com painel para ver se não mudou o portão porque não escuto nada do alto falante e corro risco de perder voo se não prestar atenção no painel. Nos bancos e nos hospitais sempre preciso recorrer à comunicação escrita, sempre com um bloco na bolsa para eu escrever e tentar comunicar com as pessoas, porque não dependo de pessoas ouvintes. A minha família, que é toda ouvinte, sempre me ensinou a independência desde cedo. Aos 9 anos, já pegava ônibus sozinha, e antes dos 15, já ia ao banco levar papeladas do serviço do meu pai. A minha esposa, que também é surda, não tem uma boa leitura labial e eu tenho que acompanhá-la para ser o suporte dela nas comunicações por muitas vezes. Mesmo eu tendo uma ótima leitura labial, as pessoas ficam com medo da gente. Ficam assustadas e se afastam.

A gente tenta aprender a falar e ter leitura labial para poder se comunicar com quem ouve, mas, por outro lado, quem ouve não tenta aprender Libras para se comunicar com a gente. Poucos tentam. Nós, surdos, temos que ir até quem é ouvinte para ter acesso em diversas coisas. O correto seria o contrário. São vocês, ouvintes, que deveriam aprender Libras para nos atender. A minha consciência fica tão pesada quando preciso depender de ouvintes, quando não há acessibilidade. É diferente quando eu tenho acessibilidade garantida. Em Porto Alegre, eu tenho oportunidade de assistir peças teatrais em Libras e a minha saúde mental fica tão leve e feliz em poder ter acesso à cultura. 

Ah, lembrando! Muitas vezes tive que ir às delegacias para colaborar com mulheres surdas, vítimas das violências domésticas. As delegacias não têm intérprete de Libras (até hoje) e eu tive que aceitar ir para delegacias com as mulheres surdas, pois elas não tinham condições de escrever com o estado que elas se encontravam, cheias de marcas de violência. Alguns policiais me perguntavam se eram verdades as histórias que as surdas estavam me passando e muitas vezes vi policiais homens rindo das histórias que elas contavam, lamentavelmente. Já não temos acessibilidade e ainda temos que passar pelos episódios de machismo.  Daria um livro se escrevesse tudo.

Finalizo o texto citando uma vitória para nós, mulheres com deficiência. Ana Paula Moreira é a primeira vereadora surda, eleita pelo Partido de Trabalhadores, na cidade de Bagé.  A luta das mulheres sem deficiência já é difícil, imaginem das mulheres com deficiência. A Vida PRESTA! 

 

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por Carilissa Dall'alba
Professora do departamento de Educação Especial da UFSM. Ativista e militante do Movimento Surdo

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