Projeto Esperança/Cooesperança: ameaças a uma trajetória exitosa de construção de uma sociedade ética e solidária SVG: calendario Publicada em 19/01/2022 SVG: views 1670 Visualizações

O projeto Esperança/Cooesperança consiste em um movimento de combate de problemas sociais a partir do cooperativismo. Desde o princípio, o núcleo norteador da Cooesperança congrega produtores rurais e urbanos articulando grupos organizados sob a forma jurídica de associações que, em conjunto, formam esta cooperativa, viabilizando a produção e comercialização direta do artesanato, manufaturas e alimentos produzidos pelos empreendimentos de economia solidária.

Trata-se de um longo processo de estudos e discussões acerca do ideal funcionamento desse empreendimento de economia solidária a partir de lideranças locais - capitaneadas pela Irmã Lourdes Dill por 35 anos – para o desenvolvimento e consolidação desse grande projeto.  Com relação à produção, a ênfase inicial consistia em auxiliar e incentivar o fomento de tecnologias sociais profissionalizando atividades artesanais capazes de se constituir em demandas de mercado.

Com o passar do tempo, a produção artesanal do segmento urbano dos associados ao projeto manteve capacidade própria no âmbito produtivo, todavia, a parte agrícola da produção de alimentos incitou maior apoio da Universidade Federal de Santa Maria para garantir a produção de alimentos saudáveis. Isto não equivale afirmar que, dentre um grande grupo de produtores, não houvesse conhecimento acumulado em princípios basilares da agroecologia e agricultura orgânica.

Desde o princípio observava-se a preocupação dos associados em relação à necessidade de preservação da fertilidade da terra, - portanto, sem adoção da tecnologia hegemônica de uso de agrotóxicos destrutiva da biodiversidade, condição sine qua non para uma produção alimentar sustentável.   

Para além da produção havia necessidade de criar espaços de comercialização.  O principal local de comercialização viabilizado em 1989 pelo projeto Esperança é o Terminal de Comercialização Direta com recursos financeiros da Misereor via Zentralstelle für Entwicklungshilfe. O reconhecimento de que a manutenção econômica das famílias exigia de ampliação de canais de distribuição em anos subsequentes triplicou estes espaços com recursos provenientes de instituições brasileiras e, ao longo de sua trajetória promoveu outros canais de comercialização com apoio da prefeitura local, tais como: feirão colonial agroecológico, feiras da praça, feiras estaduais, armazém da colônia, Feiras estaduais, nacionais e internacionais do cooperativismo.

Todo esse envolvimento de manutenção econômica dos cooperados a partir da produção e comercialização é central uma vez que a necessidade de geração de renda para as famílias envolvidas é fator de sobrevivência em um mundo capitalista que tem por base o livre jogo das forças de mercado e, que, por isso, cria contingentes de desempregados para servir a uma lógica de manutenção de níveis de salários em patamares baixos, para permitir em termos macroeconômicos uma crescente acumulação de capital. Contudo, a importância do projeto Esperança/Cooesperança não reside exclusivamente na sua capacidade de se constituir em uma alternativa de renda para as famílias diretamente envolvidas neste projeto, mas pela participação ativa na busca por políticas públicas capazes de promover a inclusão produtiva de todos aqueles que creem na possibilidade de abertura de espaços para a realização de um tipo de economia baseada nos princípios da solidariedade e do cooperativismo.

A liderança desse movimento vem tornando esse modelo de economia solidária conhecido pelos diferentes recantos do país e do mundo, a partir da participação de seus integrantes em Fóruns nacionais e internacionais. Mais do que a participação, vem protagonizando esses Fóruns colocando em pauta bandeiras de luta de defesa da criação de políticas públicas capazes de fomentar um contingente maior da população empobrecida e/ou aquela que acredita na possibilidade de uma transformação social via uma economia ética e criativa que privilegia os princípios da solidariedade. 

A criação da SENAES (Secretaria Nacional de Economia Solidária), conquistada na segunda metade da década de 2.000, foi extinta em 2016. Sua criação deve-se, em grande medida, por iniciativas e pressões iniciadas pelas lideranças de Santa Maria. Dos mais de 20 mil Empreendimentos de Economia Solidária, a Cooesperança está no pequeno grupo das mais importantes. 

Em nível regional e local, o projeto Esperança/Cooesperança tem atuação direta em 35 municípios do centro do estado do Rio Grande do Sul. Vale ressaltar sua participação incisiva no movimento de reconversão produtiva de áreas de produção de tabaco. Desde 1991 vem desenvolvendo seminários de alternativas para a cultura do fumo a partir de parcerias com o INCA (Instituto Nacional do Câncer) e desde 2004 com o MDA (Ministério de Desenvolvimento Agrário /SDT - Secretaria do Desenvolvimento Territorial).  

Reitera-se que o projeto Esperança/Cooesperança vem mostrando sua capacidade de incursões prospectivas do ponto de vista de redução de iniquidades sociais, amenizando contradições típicas da lógica capitalista. Este formato produtivo é almejado pelos grupos sociais e potencializado pelas lideranças locais e instituições públicas locais, especificamente no concernente à inclusão de grande parcela de agricultores familiares que produzem alimentos agroecológicos e orgânicos vem abastecendo a cidade, principalmente daquela parcela de consumidores que não aceitam consumir produtos com agroquímicos e transgênicos. Neste aspecto, atua intersetorialmente e vem beneficiando além das próprias famílias que produzem tais produtos, as pessoas da cidade de diferentes classes sociais.

Este processo vem gerando uma produção rural com respeito à biodiversidade, preservando o solo e a água e promovendo desta forma a sustentabilidade.  Juntamente com outras políticas públicas tal como o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), vem permitindo que as crianças das escolas municipais e estaduais tenham acesso a uma alimentação escolar segura e saudável.  É necessário entender que esse processo tem potencial de redução de gastos governamentais com saúde, e que pode aumentar a longevidade promovendo desenvolvimento em um escopo analítico ampliado.

Após 35 anos de existência, o projeto Esperança/COOESPERANÇA reitera sua importância e comprometimento de inovação social que antecipa e informa aos poderes públicos as linhas de ações que necessitam de apoio desde grupos de catadores de lixo, grupos de indígenas, quilombolas, assentados de reforma agrária, escolas de jovens rurais, grupos de produtores de sementes crioulas, grupos de criação de cisternas e placas, etc.

Todas essas iniciativas indicam a necessidade de permanência de forte liderança, especialmente após o desmonte da SENAES. O reconhecimento social dessas iniciativas precisa ser percebido e apoiado por todos: a) as Universidades públicas e privadas precisam além de produzir conhecimento engajar-se nas suas lutas, via extensão podem a partir do respeito mútuo, também aprender com esse movimento; b) as empresas privadas precisam compreender que ao aliviar as tensões sociais, a economia solidária vem reduzindo a criminalidade e promovendo maior equilíbrio econômico e social local, necessárias a sua própria existência; c) as Prefeituras municipais, governo do estado e União precisam continuar reconhecendo, respeitando e apoiando  esse movimento, e demais  movimentos  de economia solidária com vistas a reduzir as desigualdades econômicas e sociais; d)os movimentos religiosos,  ONGS e consumidores organizados ou não, podem e devem contribuir de diferentes formas para continuar promovendo a sustentabilidade, tão necessária à promoção saudável das gerações futuras.

Um importante artigo científico publicado em 2016 pelo IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), mostra o que poucos em Santa Maria sabem. “A feira mais conhecida no campo da economia solidária e que mobiliza o maior número de atores sociais no país é a Feira Nacional de Economia Solidária, que ocorre anualmente no município de Santa Maria (RS) há mais de duas décadas, organizada por um conjunto de organizações, entre elas, a Cáritas Brasileira e o FBES. A Feira de Santa Maria, como é comumente conhecida, conta não apenas com a participação de empreendimentos e grupos de apoio à economia solidária de todas as regiões do Brasil, mas também de outros países.

Finalmente, ressalta-se que, após o grande ciclo exitoso, a continuidade do projeto Esperança/Cooesperança está sendo ameaçado pela transferência da Irmã Lourdes Dill para uma região distante do Rio Grande do Sul. Irmã Lourdes, com 70 anos de idade, ainda com tanta capacidade de trabalho vem liderando por mais de três décadas um movimento que envolve tanta amplitude e complexidade é afastada arbitrariamente daquilo que sabe e mais gosta de fazer, dedicando quase tempo integral a essa importante causa.  Se há consenso em relação a importância desse projeto para o município de Santa Maria e região pergunta-se: o que pode ser feito para que ela permaneça por aqui por mais tempo? Não há dúvidas de que uma transição feita às pressas abrirá caminho para estagnação ou retrocessos. O projeto Esperança/COOESPERANÇA com a liderança atual tem incorporado na dinâmica da sociedade local e regional a transformação dentro de uma via possível para o momento, de uma significativa parcela da sociedade  a partir de uma atuação digna e ética: a solidariedade.  

 

Sobre o(a) autor(a)

SVG: autor Por Rita Inês Paetzhold Pauli
Professora do departamento de Economia e Relações Internacionais

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