Pandemia e vida literária SVG: calendario Publicada em 09/02/2022 SVG: views 2520 Visualizações

Em Florença, durante a peste de 1348, sete moças e três rapazes se encontraram na igreja de Santa Maria Novella e decidiram partir para um palácio, afastado da cidade, no alto de uma montanha. Levaram seus respectivos criados e se isolaram completamente. A partir daí, passaram a narrar histórias uns para os outros. Dez novelas cada um, cem relatos ao final.

Claro que isso é um relato ficcional – está no Decamerão, de Boccaccio –, mas é uma referência quando se fala em epidemia e do que fazer diante dela. Segundo o relato do livro, “nem conselho de médico, nem virtude de mezinha (...) parecia trazer cura ou proveito para o tratamento”. Após o terceiro dia do surgimento dos sintomas, “a maioria ia-se para o túmulo”.

A peste que nos acomete desde março de 2020 não é tão terrível como a da Florença medieval, mas nem por isso deixou de causar terror e abalar todas as esferas das nossas vidas – a vida literária entre elas. Não sei de grupos de escritores que se isolaram do mundo para contar e escrever suas histórias, mas sei que aumentaram consideravelmente os encontros virtuais e escassearam os presenciais. Durante mais de um ano (até o segundo semestre de 2021) eu não soube de nenhum lançamento presencial de livros nem de mesas-redondas, debates, confraternizações de autores e leitores. Uma falta foi suprida com encontros virtuais, que muitos de nós sequer sabíamos existir.

Participei de alguns desses eventos – lançamentos de livros, inclusive – e deles guardo pouca lembrança. Serviram para tomar conhecimento deste ou daquele livro, saber que os amigos, colegas e conhecidos passavam bem, estavam levando a vida e ponto final. Às vezes encontros desalentadores, apesar de algumas gargalhadas. Os que tiveram o privilégio de cumprir o isolamento social com algum conforto geralmente finalizaram obras, iniciaram outras e publicaram alguma coisa. Isto, ao menos, o que ocorreu no meu círculo de relações. Desânimos à parte, mais preocupações generalizadas em abundância, houve aumento da produção literária. Em Santa Maria, no primeiro ano da peste, não houve Feira do Livro, mas no segundo ano, seguindo os protocolos recomendados pelas entidades científicas, ocorreu uma feira de menor tamanho e lá estiveram os escritores locais, muitos de nós com obras finalizadas durante a pandemia.

Participando de alguns eventos da Feira, no Teatro Treze de Maio e na barraca de autógrafos – com autores, editores, livreiros e leitores rigorosamente mascarados –, tive a impressão de que estávamos vivendo cenas de ficção científica. Eram (e ainda são) tempos muito estranhos esses que nos couberam viver.

Agora, no entanto, mais ambientados a esse clima de pandemia (confiantes na proteção proporcionada pelas vacinas), muitos de nós ensaiam, cautelosamente, a volta a antigos costumes. Poucas semanas atrás, ouvi de conhecida agitadora cultural da cidade, que já está em planejamento a volta de saraus literários... Na certa saraus de mascarados, com álcool gel ao alcance das mãos e o devido distanciamento social – mas saraus presenciais em bares da cidade, ao que tudo indica. Pois literatura não se alimenta apenas do “vício solitário da leitura” (a expressão é de Mário Quintana), mas também do encontro, do congraçamento, que reunião virtual alguma é capaz de substituir.

 

Vitor Biasoli

(prof. de História aposentado)