A lenda que nunca foi lenda SVG: calendario Publicada em 03/08/2022 SVG: views 2825 Visualizações

Quem chega a Santa Maria, muitas vezes é apresentado a uma lenda que, na verdade, é um conto com autoria e data de publicação. A lenda que nunca foi lenda que trata da índia Ymembuy que se enamora de um bandeirante (depois chamado Morotin) e vai viver com o rapaz um casamento feliz e, dessa forma, promover a integração entre os nativos e os luso-brasileiros.

Um conto escrito por João Cezimbra Jacques, publicado em livro em 1912, no qual o autor, escrupulosamente, indica aos leitores que está exercendo a sua imaginação criativa ao narrar um “tão singelo conto” intitulado “Ymembuy”. Uma história que foi recontada pelo poeta e historiador João Belém como se fosse lenda – sem citar a fonte, com a “omissão do nome aureolado de Cezimbra”, como escreveu Getúlio Schilling – no primeiro capítulo do seu livro “História do Município de Santa”, de 1933. A partir daí Ymembuy e Morotin passaram a ser figuras lendárias, personagens daqueles casos que correm de boca em boca, desde os tempos imemoriais.

Quando cheguei em Santa Maria, no início dos anos 90, era assim que a história de Ymembuy e Morotin era encarada – como lenda e sem autoria –, inclusive na comunidade acadêmica. Mas, naquela época, o jornalista Chico Sosa já prendia o grito e avisava: é conto publicado em 1912, no livro “Assuntos do Rio Grande do Sul”, de autoria de João Cezimbra Jacques (santa-mariense nascido em 1849, militar e pesquisador de assuntos regionais, ficcionista também, falecido no Rio de Janeiro, em 1922).

Motivados por Chico Sosa, pesquisadores da UFSM passaram a investigar o assunto e, em 2000, os professores Júlio Quevedo e Orlando Fonseca publicaram “Cezimbra Jacques passado & presente”, com artigo de vários autores, restabelecendo a autoria da lenda, a primazia do autor, a ação inventiva de João Cezimbra Jacques na escrita de uma história ficcional com sabor de lenda, tal qual José de Alencar fez (guardada as devidas diferenças estilísticas) no romance “Iracema: uma lenda do Ceará”. Um conto que se insere na tradição das narrativas que romantizaram o duro embate entre os povos nativos americanos e os conquistadores europeus, da qual são representativas as obras de François Chateaubriand, Fenimore Cooper e José de Alencar.

Quanto a João Belém (para não dizer que cometeu uma fraude) a explicação mais aceita é a de que o modelo historiográfico que ele utilizava necessitava de uma lenda como ponto de partida. A lenda que abriga uma verdade histórica, que o historiador (e também poeta e dramaturgo, no caso de Belém) desvela a partir da documentação existente (como Belém faz no final do primeiro capítulo). Era uma exigência da concepção historiográfica adotada por João Belém, como a historiadora Ieda Gudfreind indica na apresentação da terceira edição da “História do Município de Santa Maria” (publicada pela Editora UFSM, em 2000).

Com isso, se poderia concluir que o assunto está encerrado, o conto “Ymembuy” não é lenda e ponto final. Mas a realidade é sempre mais complicada, as lendas muito mais atrativas e ainda circulam publicações (inclusive livros didáticos) que reproduzem a construção fantasiosa de João Belém. Alguns autores locais não desistem de restabelecer a veracidade dos fatos e duas obras são importantes nesse esforço.

Em “Imembuy em versos” (2013), de Humberto Gabbi Zanatta, o conto é reescrito ao gosto do leitor infanto-juvenil, com a ressalva que se trata de uma criação literária (de intenção patriótica) do escritor João Cezimbra Jacques. Com o mesmo cuidado, o livro premiado e publicado pela Câmara de Vereadores de Santa Maria, em 2022, “Uma história de Santa Maria”, de Denise Quaiatto e José Iran Ribeiro, também adverte ao leitor escolar (o livro é endereçado aos alunos do ensino fundamental) que “Ymembuy” é conto de escritor santa-mariense, conto que inventa uma história bonita – como se fosse lenda – para explicar a origem da nossa cidade.

Afinal, quem aqui vive, não consegue deixar de se encantar com a índia que se apaixona pelo bandeirante conquistador e juntos vão viver uma “felicidade risonha”. Não consegue deixar de sonhar que o encontro entre os nativos e os luso-brasileiros bem poderia ter sido diferente. Mas é preciso, ao mesmo tempo, compreender que a romantização do encontro entre índios e brancos é criação de literatos que não suportaram viver a dura realidade da implantação da civilização ocidental nas nossas plagas. História cruel que até hoje damos voltas para contar.