Nenhum a Menos Com a Volta do Vestibular na UFSM? Publicada em 12/04/2023 3693 Visualizações
Sou do Rio Grande do Sul, o que não quer dizer quase nada, mas cresci sonhando em vir para a UFSM. Cresci entre Cruz Alta, Três Passos, Três de Maio, São Borja e Santo Ângelo, e sempre me imaginei, algum dia, como estudante da UFSM, assim como os irmãos mais velhos dos amigos que ali estudavam.
Filho da classe trabalhadora, até chegar na graduação, entre 1985 (História) e 1986 (Direito), achava que passar no vestibular era uma questão de mérito. Sem poder pagar por cursinhos (e não existiam os pré-vestibulares populares), restou a dedicação no ensino médio, pais sacrificando-se para comprar fascículos semanais vendidos em bancas de revistas, com os conteúdos, e estudo extraclasse com colegas, inclusive na Biblioteca Municipal, no ano anterior à chegada em Santa Maria.
Mesmo sendo de família que chegou à Universidade pela primeira vez entre os ascendentes e colaterais diretos, fiquei sabendo muito mais tarde do privilégio branco, olhando para os lados e não vendo a diversidade étnica e social do Brasil presente entre meus colegas.
Já como docente da UFSM, nos anos 1990, coordenando o Curso de História, me foi solicitada uma “audiência” por uma coordenadora de cursinho pré-vestibular de Santa Maria, quando ela veio fazer uma “crítica construtiva” sobre nossa “precária formação de professores” para trabalhar nos mesmos. Respondi para ela que não entendia por que ela falou em “crítica” se estava a nos elogiar, pois, de fato, nosso trabalho era formar professores para qualificar o ensino médio e fundamental, a fim de que não precisássemos mais de pré-vestibulares, enquanto só descansaríamos quando o acesso ao ensino superior fosse universal. Nunca entendi por que, dali em diante, ela deixou de me cumprimentar.
Pertenço a um Departamento que unanimemente questionou o PEIES, ainda nos anos 1990, acertadamente afirmando que ele não acabaria com os cursinhos, como se propagandeava, mas que, como aconteceu, seriam criadas preparação por turmas do ensino médio, sem contar que, pedagogicamente, este nível no ensino seria transformado em um pré-vestibular para as escolas que aderissem ao Programa, como também se concretizou. Fiz parte daqueles que fizeram estes questionamentos no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, quando ele foi aprovado.
Há 20 anos coordeno um coletivo de educação popular na UFSM, o Práxis, o qual, entre suas ações, passou de Pré-Vestibular Popular para Pré-ENEM. Em duas décadas, tenho reiterado: quando não tivermos qualquer seleção (certa vez tivemos mais de 600 candidatos oriundos de famílias em situação econômica vulnerável e só tínhamos 150 vagas) e o acesso ao ensino superior for universal, daí descansaremos.
Sou de uma Instituição que o Conselho Superior aprovou as cotas por diferença de apenas um voto, em 2007, isto em um momento de avanços democráticos. Se fosse hoje, conjuntura de retrocesso conservador, elas passariam? Mas o mais simbólico dos que defendem a meritocracia e o privilégio daquela conjuntura foi a Marcha dos Cursinhos, protagonizada por estudantes que bradavam nas ruas de Santa Maria, a favor das vagas para si, ou seja, para aqueles que podiam pagar.
Por que este relato pessoal? Porque presenciei os avanços e conquistas das últimas décadas em minha Instituição, onde tenho dois terços da vida entre estudante e trabalhador em educação. Tenho orgulho disso, mas também aprendi que minhas conquistas de nada valem, se elas não forem dos filhos de toda a classe trabalhadora, incluindo sua diversidade de gênero e étnica.
Assim foi com o Sistema de Ingresso em Universidades Públicas Brasileiras (SISU), que foi criado não para atender os interesses privados de cursinhos, hotéis, restaurantes, mas para ampliar a democratização do acesso ao ensino superior. Juntamente com o aumento de vagas, o ENEM, as cotas e outras políticas públicas, sabemos que o SISU diversificou as possibilidades de acesso dos candidatos ao processo seletivo para a educação superior devido a ampliação dos locais de realização das provas bem como de maior cobertura de isenção da taxa de inscrição, beneficiando o acesso dos filhos de famílias economicamente mais vulneráveis, assim como aumentou, significativamente, a circularidade de estudantes pelas regiões do País e as opções de acesso a cursos não existentes em seus locais de moradia. O que qualifica ainda mais o nome de uma Universidade como Federal, não local ou regional.
Os que estão lendo isso, sobreviveram ao COVID-19, mas seus reflexos (desemprego, estudantes abandonando a escola e a universidade para auxiliarem suas famílias, todas as formas de adoecimento etc.) se fazem sentir na evasão, na contramão do aumento de vagas das primeira e segunda décadas do século XXI. Aqui está o eixo explicativo do aumento da evasão, na contramão dos argumentos centrais que condenam o SISU. Por isto, as decisões de diminuir suas vagas para o acesso ao ensino superior beneficiará quem mesmo?
Sempre defendi que a memória pessoal é coadjuvante diante da ciência histórica. Mas se os argumentos do conhecimento, nestes ainda tempos sombrios, não têm servido muito para o convencimento, diante de tanto irracionalismo, quem sabe, na emoção da derrota, possamos profetizar que não desistiremos diante do retrocesso. Vim de fora e tenho gratidão por Santa Maria e pela UFSM, mas ela não é minha e de minha família, nem deve ser para os de Santa Maria e Região, mas, sem excluí-los, ela é pública, estatal e Federal.
Aprendi isto mais ainda quando assisti ao filme Nenhum a menos, de Zhang Yimou (1999), contando a trajetória da professora substituta, de apenas 13 anos, e sua obstinada luta para cuidar de uma escola com apenas uma sala de aula, em um pobre vilarejo, Shuiquan, no interior da China, diante do desaparecimento de um dos alunos, fazendo de tudo para encontrá-lo, a fim de que retornasse à sala de aula. Ou seja, enquanto tiver alguém sem escola ou sem universidade, NÃO DESISTIREMOS, pois elas não são apenas para filhas e filhos de comerciantes, industriais e proprietários de terras e imóveis. Nenhum a menos nas universidades, não apenas para poucos.
Sobre o(a) autor(a)
Por Diorge Alceno KonradProfessor Titular do departamento de História da UFSM