Livrai-vos Publicada em 27/04/2022 5103 Visualizações
Para se ter uma ideia que explicaria, em parte, o avanço do negacionismo no país e o império das fake news, basta olhar os dados de leitura no Brasil. Nesta semana, na qual começa a Feira do Livro em nossa cidade, é providencial pensarmos o significado que tem um evento desta magnitude voltar a ocupar a Praça central de Santa Maria. E para além disso ocupar o centro de nossa formação cidadã.
Na segunda metade do século passado, consolidou-se um processo da sociedade de consumo identificado como “obsolescência programada”. Na segunda década deste século XXI, o que presenciamos, com uma sociedade tecnologicamente conectada (popularização das redes sociais e banalização da opinião pessoal) é algo que parece ser a “ignorância programada”. Em nosso país, isso se tornou agudo, endêmico, tóxico, com a proliferação de notícias falsas, a cultura do ódio e até mesmo a eleição de um presidente que se esmera em provocar com manifestações bizarras.
A única vacina contra esta moléstia que afeta o cérebro foi inventada por volta do século II d.C. Passou pelo aperfeiçoamento da invenção de Gutemberg no século XIV e ganhou forma definitiva com a segunda revolução industrial e cultural do século XIX. Trata-se do livro.
Maiores doses dessa vacina são necessárias nos dias atuais. A neurocientista, Maryanne Wolf, pesquisadora da Universidade da Califórnia (UCLA) alerta que os hábitos digitais estão atrofiando a habilidade de leitura e compreensão. Ela explica que “como leitores cada vez mais digitais e desatentos, podemos comprometer nossa capacidade de entender textos complexos, de desenvolver empatia e de pensar criticamente.” A dieta de leitura baseada apenas em “passar os olhos em um texto”, está fazendo com que as pessoas também passem por cima da argumentação, dos pontos mais sofisticados do texto. Com isso estão recebendo menos da substância do pensamento que o constituiu, algo muito importante para a formação da análise crítica.
É preciso considerar que, ao contrário da visão e da linguagem oral, a habilidade da leitura é resultado de um longo caminho percorrido pelos nossos antepassados. Esse circuito cerebral vem se desenvolvendo há pelo menos 6 mil anos, passando pelo processamento de ideias, argumentos e sutilezas apresentadas aos leitores nas páginas de livros e jornais, nos últimos séculos. "Não existe, portanto, um circuito genético para ler, que se desenvolva logo que uma criança nasce", explica Wolf. A habilidade de “ler é algo que precisa ser criada no cérebro”, como efeito da linguagem que a pessoa usa e seu sistema de escrita. Com o regime de leitura rápida, os jovens estão desenvolvendo uma impaciência cognitiva. Sem o engajamento no que se lê, o efeito colateral negativo é que se torna improvável ser transportado “para um entendimento real dos sentimentos e pensamentos de outra pessoa", nas palavras da neurocientista americana.
Em 1973, a primeira Feira do Livro desta sequência que chega ao número de 49 edições, trazia o slogan dos realizadores (alunos do Curso de Comunicação da UFSM): “Quem não lê, mal ouve, mal sente, mal vê”. Na atualidade, vivemos a era do descartável, do fast food, em que até mesmo a cultura passa como produto efêmero. No entanto, é dela que depende a identidade e a cidadania, o convívio sadio em uma sociedade (realmente) humana.
Nesta semana, a Feira do Livro traz a oportunidade de que se deixe de lado smartphones e redes sociais, para que se adquira doses massivas do antídoto contra a ignorância e o obscurantismo, através da palavra impressa, a saúde mental pela literatura. Contra a praga da soberba ignorância, quanto mais santa-marienses saírem de lá com livros embaixo do braço, adquirindo uma imunidade coletiva, melhor para a sociedade, melhor para o mundo. Livrai-vos da ignorância epidêmica, todos à Feira!
Sobre o(a) autor(a)
Por Orlando FonsecaEscritor e professor aposentado do departamento de Letras Vernáculas da UFSM